1VRP/SP: Registro de Imóveis. Escritura de divórcio com promessa de doação. Não se trata de promessa de doação. A doação ocorreu, postergando-se, tão somente, o registro do título para momento posterior, quando quitado o financiamento.


  
 

Processo 1001417-59.2023.8.26.0100

Dúvida – Registro de Imóveis – Enrico Russo – Diante do exposto, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE a dúvida suscitada para afastar o óbice registrário apontado pelo Registrador, observando, todavia, a necessidade de comprovação do recolhimento do imposto de transmissão devido para o registro da doação. Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios. Oportunamente, remetam-se os autos ao arquivo. P.R.I.C. – ADV: CELSO LUIZ GOMES (OAB 176456/SP)

Íntegra da decisão:

SENTENÇA

Processo Digital nº: 1001417-59.2023.8.26.0100

Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis

Requerente: Enrico Russo

Requerido: 15º Oficial de Registro de Imóveis da Capital

Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Vistos.

Trata-se de ação de obrigação de fazer movida por Enrico Russo contra o Oficial do 15º Registro de Imóveis da Capital, visando registro de escritura de divórcio com promessa de doação dos imóveis objeto das matrículas n. 179.188 e 179.189 daquela serventia.

Documentos vieram às fls.05/23.

O feito foi recebido como dúvida inversa, com determinação para comprovação de prenotação válida (fls.24/25).

Com o atendimento, o Oficial se manifestou às fls.32/35, confirmando a apresentação da via original da escritura sob prenotação n.982.623 e informando que a qualificação foi positiva para a averbação do divórcio, permanecendo os imóveis em comum aos divorciandos conforme definido no título.

No entanto, considerando o inconformismo manifestado pela parte, nova prenotação foi realizada, sob n.984.354, cuja qualificação restou negativa em relação ao lançamento, no fólio real, da promessa de doação e instituição de usufruto. A negativa se deu sob o argumento de o título conter promessa de doação futura condicionada à quitação das alienações fiduciárias que gravavam os imóveis, as quais somente foram canceladas em 14 de dezembro de 2021.

O Oficial esclareceu, ainda, que a promessa de doação não está elencada no rol taxativo do inciso I, do artigo 167, da LRP, pelo que depende de ação própria, juntando as certidões de fls.36/55.

O Ministério Público opinou pela manutenção parcial dos óbices (fls.59/61).

É o relatório

Fundamento e decido.

De início, vale ressaltar que o Oficial dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (art. 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.

Em outras palavras, o Oficial, quando da qualificação, perfaz exame dos elementos extrínsecos do título à luz dos princípios e normas do sistema jurídico (aspectos formais), devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.

Esta conclusão se reforça pelo fato de que vigora, para os registradores, ordem de controle rigoroso do recolhimento do imposto por ocasião do registro do título, sob pena de responsabilidade pessoal (artigo 289 da Lei n. 6.015/73; artigo 134, VI, do CTN e artigo 30, XI, da Lei 8.935/1994).

No mérito, a dúvida é parcialmente procedente. Vejamos os motivos.

O título apresentado consiste em escritura de divórcio consensual do casal Alexandre Spósito Manfredi e Rita de Cássia Leal Manfredi, lavrada em 13 de junho de 2007 pelo 12º Tabelião de Notas da Capital (fls.15/22).

Por meio de tal escritura, além de por fim à sociedade conjugal, o casal resolveu dispor sobre a partilha dos imóveis adquiridos durante o casamento nos seguintes termos (fls.17 e 19):

“10. DA AJUDA NA FORMAÇÃO DO FILHO DA CÔNJUGE VAROA:

(…) Declaram ainda os cônjuges que tão logo quitados os imóveis constantes os item 12. A e B, os mesmos serão transferidos em doação ao filho da cônjuge varoa, Enrico Russo, na mesma ocasião em que se instituirá o usufruto vitalício dos mesmos a favor da varoa.

(…)

13. DA PARTILHA DOS BENS; 13.1 PROMESSA DE DOAÇÃO E INSTITUIÇÃO DE USUFRUTO: As partes, de comum acordo, resolveram a partilha dos bens comuns do casal, decidindo que se obrigam, por ocasião da quitação das alienações fiduciárias retro mencionadas, a doar exclusivamente ao filho da cônjuge varoa, Enrico Russo, (…) que não é filho do casal, os bens abaixo relacionados, os quais terão os respectivos saldos devedores honrados até final liquidação pelo cônjuge varão, ALEXANDRE SPÓSITO MANFREDI, instituindo o usufruto vitalício para a cônjuge varoa”.

A seguir, relacionaram os imóveis objeto da matrícula n.327.552 do 11º Registro de Imóveis da Capital e das matrículas n.179.188 e n.179.189 do 15º Registro de Imóveis da Capital, que permaneceram em comum.

Em virtude da partilha em quinhões idênticos, sem reposição gratuita ou onerosa, não houve incidência de ITCMD ou de ITBI (item 15, fl.21).

Quase dois anos depois, por meio de instrumento particular de 23 de abril de 2009, a credora autorizou o cancelamento das alienações fiduciárias que gravavam as matrículas n.179.188 e n.179.189, o que foi averbado em dezembro de 2021 (Av.9, fls.42 e 52), cumprindo-se a condição para doação e instituição do usufruto.

Apresentada a escritura de divórcio para registro da doação, o registrador somente admitiu o título para averbação do divórcio, anotando a permanência da comunhão (Av.11, fls.43/44 e 53/54), sob o fundamento de que o ato notarial se restringiu à dissolução do matrimônio (item d, fl.34).

A forma como redigidos os termos do acordo induz, de fato, à conclusão de que se firmou mera promessa de futura doação do patrimônio.

Como regra, a promessa se distingue da formalização de seu objeto, uma vez que permite arrependimento. Contudo, dadas as peculiaridades da partilha ajustada em separações e divórcios, cuja finalidade é a dissolução pacificada e a contento da sociedade conjugal, há que se reconhecer verdadeiro pacto concretizado com relação ao ato prometido.

É essa a orientação mais recente do C. Superior Tribunal de Justiça, da qual destacamos o seguinte julgado:

“RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. DIVÓRCIO CONSENSUAL. PARTILHA DE BENS. ACORDO. DOAÇÃO AOS FILHOS. HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL. SENTENÇA COM EFICÁCIA DE ESCRITURA PÚBLICA. FORMAL DE PARTILHA. REGISTRO NO CARTÓRIO DE IMÓVEIS. POSSIBILIDADE. 1. Não constitui ato de mera liberalidade a promessa de doação aos filhos como condição para a realização de acordo referente à partilha de bens em processo de separação ou divórcio dos pais, razão pela qual pode ser exigida pelos beneficiários do respectivo ato. 2. A sentença homologatória de acordo celebrado por ex-casal, com a doação de imóvel aos filhos comuns, possui idêntica eficácia da escritura pública. 3. Possibilidade de expedição de alvará judicial para o fim de se proceder ao registro do formal de partilha. 4. Recurso especial provido” (REsp n. 1.537.287/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 18/10/2016, DJe de 28/10/2016).

Em outras palavras, também extraídas de precedente da Corte Superior, há “tese pacificada pela Segunda Seção no sentido da validade e eficácia do compromisso de transferência de bens assumidos pelos cônjuges na separação judicial, pois, nestes casos, não se trataria de mera promessa de liberalidade, mas de promessa de um fato futuro que entrou na composição do acordo de partilha dos bens do casal” (REsp n. 1.355.007/SP, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 27/6/2017, DJe de 10/8/2017).

Na esteira desse entendimento, já se pronunciou o E. Conselho Superior da Magistratura, afastando a obrigatoriedade de se lavrar escritura pública em complemento ao acordo homologado em juízo:

“Registro de Imóveis – Dúvida julgada procedente, impedindo-se o registro de Carta de Sentença, oriunda de separação judicial, com doação de imóvel a filha menor – Desnecessidade de escritura pública – Precedentes – Desnecessidade de aceitação da donatária (art. 543 do Código Civil) – Não incidência de emolumentos, por haver gratuidade expressamente exposta no título – Necessidade, contudo, de recolhimento dos tributos – Dúvida prejudicada e recurso não conhecido” (TJSP; Apelação Cível 1000762-62.2014.8.26.0663; Relator (a): Pereira Calças; Órgão Julgador: Conselho Superior da Magistratura; Foro de Votorantim – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 24/05/2016; Data de Registro: 15/09/2016).

No corpo do v. acórdão, fica clara a equivalência entre o presente feito e aquele já apreciado:

“Aliás, isso leva à terceira oposição do Oficial. A de que não teria havido doação, mas promessa de doação, visto que ela se ligava à futura quitação de financiamento que pendia sobre o imóvel.

O título levado a registro deixa claro que, quitado o financiamento, o imóvel seria revertido à filha menor, com reserva de usufruto para a mãe. O financiamento foi quitado, cancelando-se a hipoteca inscrita na matrícula (fl. 35).

Não se trata de promessa de doação. A doação ocorreu, postergando-se, tão somente, o registro do título para momento posterior, quando quitado o financiamento.

Aliás, se bem vistas as coisas, mesmo a quitação do financiamento era dispensável, já que, a teor do art. 1.475, do Código Civil, a existência de hipoteca não inibe o proprietário de alienar o imóvel.

Logo, perfeita a doação quando da expedição da carta de sentença, ela poderia, desde sempre, ser levada a registro”.

Note-se que tal solução em nada conflita com outros precedentes do E. CSM, que versam sobre casos em que havia expressa menção quanto à necessidade de escritura pública no próprio acordo de partilha dos cônjuges (Apelação nº 1002967-74.2019.8.26.0506, j. em 16/03/2020, e Apelação nº 1001280-43.2020.8.26.0404, j. em 13/05/2021, nas quais figurou como Relator o Des. Ricardo Anafe, então Corregedor Geral da Justiça).

No caso concreto, portanto, a escritura também é instrumento hábil para registro da doação e instituição do usufruto.

Vale ressaltar que a permanência dos imóveis em comunhão não é obstáculo à efetivação da vontade de doar manifestada pelos divorciandos.

À vista do contexto fático, encontra-se nas Normas de Serviço fundamento para se admitir que, com o divórcio ou a separação judicial, o regime de bens é extinto, de modo que a comunhão patrimonial se transforma em condomínio (nota lançada ao subitem 14, alínea “b”, do item 9, do Capítulo XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo, destaque nosso):

“9. No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos:

b) a averbação de:

(…)

14. escrituras públicas de separação, divórcio e dissolução de união estável, das sentenças de separação judicial, divórcio, nulidade ou anulação de casamento, quando nas respectivas partilhas existirem imóveis ou direitos reais sujeitos a registro;

NOTA: A escritura pública de separação, divórcio e dissolução de união estável, a sentença de separação judicial, divórcio, nulidade ou anulação de casamento será objeto de averbação, quando não decidir sobre a partilha de bens dos cônjuges, ou apenas afirmar permanecerem estes, em sua totalidade, em comunhão, atentando se, neste caso, para a mudança de seu caráter jurídico, com a dissolução da sociedade conjugal e surgimento do condomínio ‘pro indiviso”.

Assim, ex-cônjuges e proprietários registrários passam a poder dispor do patrimônio comum independentemente de partilha e sem violação ao princípio da continuidade, desde que averbada, previamente, a alteração do estado civil, o que já foi providenciado.

Da mesma forma, o falecimento posterior da doadora em fevereiro de 2019 somente impede o registro do usufruto que a favoreceria (fl.23), conforme entendimento firmado pelo E. Conselho Superior da Magistratura, caso em que o título deve ser cindido para a prática dos demais atos registrais nele consubstanciados:

“Dúvida Inversa. Recurso. Doação. Prova do Pagamento de Tributo. Usufruto. Morte dos Usufrutuários. Cindibilidade do Título” (CSMSP – Apel. Cível: 1058111-29.2015.8.26.0100. Data de Julgamento: 21/06/2016. Data DJ: 21/07/2016. RELATOR: Manoel de Queiroz Pereira Calças).

Extrai-se da referida decisão o seguinte excerto, com destaques nossos:

“(…) 4. Por fim, quanto ao registro stricto sensu do título de usufruto também mencionado no instrumento notarial, já a esta altura falecidos os usufrutuários, a inscrição é de todo desnecessária.

Com efeito, o registro constitutivo correspondente a este usufruto não produzirá ressonância jurídica alguma.

É contraeconômico, para logo, em todos os aspectos (economia de esforços, de tempo e de custos), efetivar-se uma inscrição registraria destituída de toda eficácia atual.

Além disso, tratar-se-ia de uma inscrição em maltrato da economia de espaço na matrícula, afligindo o interesse gráfico de sua visualização. Mais agudamente, o princípio da legalidade impõe que apenas se efetuem inscrições eficazes ‘in actu’, de modo que o registro não se converta em local de acesso para não importa quais títulos ou mesmo se confunda com um mero arquivo de informações. Daí o aforismo inutilitates in tabula illicita sunt. Ou seja, mais que desnecessário, o registro do título de usufruto, na espécie, seria ilegal.

Não custa acrescentar que o título notarial pode, tal o caso, dividir-se em capítulos, com correspondente eficácia analítica, admitindo-se, pois, sua cindibilidade, contanto que a ruptura da conexão dos capítulos não interfira com a integral validade dos fatos, atos ou negócios jurídicos objeto da escritura”.

É importante notar que, a despeito da abertura de inventário para transmissão do patrimônio, o recolhimento tributário devido deverá ser fiscalizado pelo Oficial, na forma da lei.

A qualificação realizada perante a serventia imobiliária afastou de plano a possibilidade de registro da doação prevista na escritura. Entretanto, admitida a habilidade do título para o registro pretendido, deve ser demonstrado o recolhimento do ITCMD sobre a doação, a qual constitui fato gerador distinto da partilha de bens avençada pelo casal na mesma escritura.

Nesse contexto, embora o óbice deva ser afastado, registro imediato ainda não é possível.

Diante do exposto, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE a dúvida suscitada para afastar o óbice registrário apontado pelo Registrador, observando, todavia, a necessidade de comprovação do recolhimento do imposto de transmissão devido para o registro da doação.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, remetam-se os autos ao arquivo.

P.R.I.C.

São Paulo, 15 de fevereiro de 2023.

Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Juiz de Direito (DJe de 16.02.2023 – SP)

Fonte: Diário da Justiça Eletrônico.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias.

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