Artigo: Mudança no registro civil do transexual – Por Lívia Barboza Maia


*Lívia Barboza Maia

Importa quem a pessoa é e como se mostra à sociedade, o que ela leva de carga genética não deve ser primordial quando da lavratura de um registro de identificação.

O que é isso, a identidade? É estar em harmonia com você mesmo, descansar em você mesmo, no seu centro, saber quem você é e o seu valor. A ‘identidade’ é formada e definida por limites, limitações e por escolhas, não por opções ilimitadas e aleatórias. A identidade é moldada e produzida pela experiência. […].”1

A primeira premissa que deve restar incontroversa é que o transexual anatomicamente é um indivíduo normal2 (tanto anatomicamente quanto mentalmente) e saudável. Não há qualquer anomalia em seus órgãos sexuais.

O direito ao nome é elemento da identidade que possui tutela autônoma no ordenamento brasileiro ao ser positivado no Código Civil, nos artigos 16 ao 19. O nome, segundo conta a história, é “o primeiro direito da personalidade que foi objeto de preocupação específica dos juristas, isto muito antes que se cogitasse da própria categoria dos direitos da personalidade.”3Ainda que na Antiguidade houvesse regulação através dos usos e costumes, e também das práticas religiosas, o nome sempre figurou como instituto de grande importância.

Contudo, não é razoável a primazia do interesse social em detrimento da individualização pessoal no que tange ao nome. Tal primazia funciona de forma a perpetuar o princípio da imutabilidade do prenome4. Esse princípio é entendido por muitos como absoluto5 por força da antiga redação do art. 58 da lei de Registros Públicos6. Aliás, com a nova redação conferida pela lei 9.708 de 1998 o art. 58 passou a dispor que o prenome seria definitivo7.

Entretanto, importante considerar que o nome é elemento da personalidade individual8sendo um dos valores da personalidade dos mais relevantes ao ser humano. Portanto, não há qualquer primazia do interesse público que possa minimizar o direito que se tem de refletir no nome sua verdadeira essência enquanto pessoa. Considerando o nome como um valor da personalidade, e tendo como premissa ser a mesma construída ao longo da vida e, portanto, passível de modificação, não cabe adotar o princípio da imutabilidade como justificativa para negar a alteração do prenome no caso do transexual9.

Adentrando no caso dos transexuais, não há texto expresso quanto à autorização da mudança de prenome10, o que significa dizer que tais casos acabam por ficar ao crivo do judiciário11. Neste caso o justo motivo que enseja a alteração é o fato daquele prenome não mais refletir a verdadeira identidade pessoal/sexual12 do autor da demanda.

Ainda esbarra-se em mais uma crítica: a segurança jurídica de terceiros pode estar em risco quando da autorização para mudança do prenome. Neste ponto, conforme inclusive já procedeu o STJ em REsp da relatoria da ministra Nancy Andrighi13, basta exigir do interessado na mudança que ele apresente certidões que possam resguardar terceiros e, até mesmo, o Estado. Tais certidões são úteis a proteção de terceiros do que se manter na nova certidão averbado que houve mudança por decisão judicial14.

Diante da ausência de norma específica é possível que o transexual se socorra do próprio diploma dos Registros Públicos quando na busca pela mudança do prenome. Extrai-se do art. 55 deste diploma a proibição do registro de prenome que possa expor a pessoa ao ridículo.

Ao utilizar como fundamento o referido artigo a discussão quanto à mudança não, necessariamente, adentra no direito à identidade pessoal e sua tutela constitucional pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, é possível que evite qualquer teorização com base em conceitos e valores pessoais do magistrado (ou mesmo preconceitos arraigados) fazendo com que a discussão seja objetivamente focada nos danos existenciais que um nome masculino pode causar a uma pessoa do sexo feminino e vice e versa.

Outrossim, percebe-se que na prática dos tribunais, quando o pedido de mudança de prenome ocorre após a cirurgia de transgenitalização, há hoje pouca resistência em deferi-lo15. Apesar de haver discrepância quanto a informar ou não na nova certidão que houve mudança por decisão judicial16. Esta última observação mostra que ainda há resistência do judiciário em conceder a mudança concebendo ser esta a nova identidade do autor da demanda e descartando qualquer elo com o registro anterior por ele não expressar verdadeiramente quem é aquela pessoa.

Mudança no Registro Civil independente da realização da cirurgia de transgenitalização.

Verifica-se que tem sido muito comum o Judiciário permitir a mudança no registro civil adotando como um dos fortes argumentos o fato de que é preciso deferir a mudança para que ela espelhe a nova realidade daquela pessoa após a cirurgia de transgenitalização.

Ou seja, já que após a cirurgia o transexual passa a adotar o sexo físico compatível com o psicológico e, dessa forma, seria “titular do direito à alteração”17, afrontaria o princípio da dignidade humana deixar que o registro permaneça fazendo referência às características de nascimento. Ou ainda, que manter o registro conforme o originário e não sendo compatível com as atuais características das genitálias seria deixar a pessoa em “estado de anomalia”18. E, neste sentido, haveria negativa ao direito personalíssimo à orientação sexual, portanto, nítido que a orientação sexual somente ganhou tutela após a cirurgia de mudança de sexo.

Entretanto, vislumbra-se nestes julgados a dificuldade de o Judiciário entender o que de fato é o transexual e suas reais necessidades. Pois, continua-se conferindo maior importância ao sexo físico em detrimento do sexo psicossocial. Como se somente após a cirurgia a pessoa se transformasse naquele sexo, quando, na verdade, psicologicamente aquele sexo já era onatural. O que a cirurgia propicia é apenas um condicionamento externo a fim de que a genitália passe a expressar o seu sexo real.

Caso houvesse a real preocupação em tutelar essa minoria tendo em vista seu direito à identidade a alteração não deveria ser justificada ou ter como pré-requisito a realização da cirurgia de transgenitalização. A identidade não está condicionada somente às características físicas, ela deve expressar quem de fato se é. O que deve incluir a percepção que se tem através do psicológico, através do sentimento de pertencimento que a pessoa tem quanto a determinado aspecto da vida e como ela se comporta e se mostra aos outros nos diversos meios sociais em que transita.

Insta destacar que enquanto o Judiciário está nesse desencontro de decisões e entendimentos, o Poder Executivo Federal – através da portaria 233/10 do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão – e o do Estado do Rio de Janeiro – através do decreto 43.065/11 – já adotaram providências de modo a aceitar o uso do nome social pelo transexual em seus atos e procedimentos. Tal aceitação independe da comprovação da realização da cirurgia, em nítido apreço ao direito à identidade e contrário ao princípio da imutabilidade do prenome.

Portanto, a mudança no registro civil deve vir a espelhar essa identidade e não simplesmente vislumbrar possível a identidade física de acordo com a presença de determinada genitália. Importa quem a pessoa é e como se mostra à sociedade, o que ela leva de carga genética não deve ser primordial quando da lavratura de um registro de identificação.

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1 WENDERS, Wim. Cinema além das fronteiras. In MACHADO, Cassiano Elek (org.). Pensar a cultura: série Fronteiras do Pensamento. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2013. Página. 61.

2 “Interessante notar que, ao cuidar dos problemas sexuais, Goodwin e Guze, embora fazendo referência ao suicídio e à automutilação praticados pelos transexuais, não os rotulam de insanos. Igualmente Farina entende que o transexual não é doente, mas normal sob todos os aspectos.” SUTTER, Matilde Josefina. Determinação e mudança de sexo. Aspectos médicos legais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993.

3 DONEDA, Danilo. Os direitos da personalidade no novo Código Civil. In A parte geral do novo Código Civil. Estudos na perspectiva civil-constitucional. 3ª ed. revista. Coordenador Gustavo Tepedino. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. Página 51.

4 ALMEIDA, Vitor. A proteção do nome da pessoa humana entre a exigência registral e a identidade pessoal: a superação do princípio da imutabilidade do prenome no direito brasileiro. In Revista trimestral de direito civil – RTDC. Vol. 52, outubro a dezembro de 2012. Rio de Janeiro: Ed. Padma, 2000. Página 206.

5 Em sentido contrário: “O princípio, porém, nunca foi absoluto.” MORAES, Maria Celina Bodin de. Na Medida da Pessoa Humana: Estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro, Renovar: 2010. Página 152.

6 Lei 6015/1973, art. 58: O prenome será imutável.

7 Lei 6015/1973, art. 58, nova redação: O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios.

8 MORAES, Maria Celina Bodin de. Ampliação da proteção ao nome da pessoa humana. In Manual de teoria geral do direito civil. TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite. Belo Horizonte: Del Rey, 2011. Página 250.

9 “[…] resulta estreme de dúvidas que, diante da excepcionalidade do caso em tela, é de prevalecer à regra da imutabilidade o direito à alteração do prenome, por força do art. 58 da Lei n.º 6.015/73. Inclusive, tem-se por desnecessária a prova a respeito das situações vexatórias vivenciadas pelo recorrente, sendo do conhecimento de todos os constrangimentos diários pelos quais passam pessoas como o apelante.” Brasil, TJRS, 7ª Câmara Cível, AC 70013909874, Rel. Des. Maria Berenice Dias, DJ 5/4/2006, fl. 179.

10 “Sem a qualificação civil adequada ao corpo que resultou do tratamento, um corpo de mulher ou de homem, o indivíduo vê frustradas todas as suas expectativas de vida, no âmbito público ou provado.” BARBOZA, Heloisa Helena. Disposição do próprio corpo em faze da bioética: o caso dos transexuais. In Bioética e direitos fundamentais. Organizadores Débora Gozzo e Wilson Ricardo Ligiera. São Paulo: Saraiva, 2012. Páginas 139.

11 “O magistrado não deve analisar a partir de conceitos pessoais o pedido de mudança de nome, mas sim as razões íntimas e psicológicas do autor da demanda, que devem refletir a identidade da pessoa de forma objetivamente externada.” ALMEIDA, Vitor. A proteção do nome da pessoa humana entre a exigência registral e a identidade pessoal: a superação do princípio da imutabilidade do prenome no direito brasileiro. In Revista trimestral de direito civil – RTDC. Vol. 52, outubro a dezembro de 2012. Rio de Janeiro: Ed. Padma, 2000. Página 218.

12 “[…] com os transexuais essa questão se tornou ainda mais emblemática e comprova que o prenome nem sempre serve de maneira eficaz como indicação do sexo, razão pela qual não deve figurar como uma de suas funções.” ALMEIDA, Vitor. A proteção do nome da pessoa humana entre a exigência registral e a identidade pessoal: a superação do princípio da imutabilidade do prenome no direito brasileiro. In Revista trimestral de direito civil – RTDC. Vol. 52, outubro a dezembro de 2012. Rio de Janeiro: Ed. Padma, 2000. Página 212.

13 “Por fim, destaca-se que o recorrido trouxe aos autos certidões expedidas por diversos órgãos federais e estaduais, de modo a resguardar eventuais direitos de terceiros.” Brasil, STJ, Terceira Turma, REsp 1.008.398, Ministra Relatora Nancy Andrighi, DJE 18.11.2009.

14 “Preservação da boa-fé de terceiros e das normas registrais, devendo ser averbada a decisão no registro civil, constando nas certidões que as alterações de nome e gênero decorrem de ato judicial. Precedente do STJ no Resp. 678.933. Inexistência de discriminação ilegítima.” Brasil, TJRJ, 12ª Câmara Cível, Apelação 0180968-76.2007.8.19.0001, Des. Rel. Nanci Mahfuz, Julgamento 08/09/2009.

15 “A interpretação conjugada dos arts. 55 e 58 da Lei n. 6.015/73 confere amparo legal para que transexual operado obtenha autorização judicial para a alteração de seu prenome, substituindo-o por apelido público e notório pelo qual é conhecido no meio em que vive. Não entender juridicamente possível o pedido formulado na exordial significa postergar o exercício do direito à identidade pessoal e subtrair do indivíduo a prerrogativa de adequar o registro do sexo à sua nova condição física, impedindo, assim, a sua integração na sociedade.” Brasil, STJ, REsp 737.993/MG, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 10/11/2009, DJe 18/12/2009.

16 Enquanto no julgado REsp 737.993 o Ministro João Otávio Noronha determina “No livro cartorário, deve ficar averbado, à margem do registro de prenome e de sexo, que as modificações procedidas decorreram de decisão judicial.”, no julgado REsp 1.008.398 a Ministra Nancy Andrighi determinou o contrário “Determino, outrossim, que das certidões do registro público competente não conste que a referida alteração é oriunda de decisão judicial, tampouco que ocorreu por motivo de redesignação sexual de transexual.”

17 “O autor se submeteu a cirurgia de transgenitalização de homem para mulher (orquiectomia bilateral, amputação peniana e neocolpovulvoplastia), tornando-se titular do direito à alteração do sexo no registro civil. Indeferi-la consubstanciaria afronta ao princípio universal da dignidade humana;” Brasil, TJRJ, 13ª Câmara Cível, Apelação 0003274-54.2008.8.19.0044, Des. Rel. Ademir Pimentel, Julgamento 05/09/2011.

18 “Transexual submetido à cirurgia de redesignação sexual.[…] A conservação do sexo masculino no assento de nascimento do recorrente, motivada pela realidade biológica em detrimento das realidades social, psicológica e morfológica, manteria o transexual em estado de anomalia, importando em violação ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana por negativa ao direito personalíssimo à orientação sexual.” Brasil, TJRJ, 9ª Câmara Cível, Apelação 0006662-91.2008.8.19.0002, Des. Rel. Carlos Eduardo Moreira Silva, Julgamento 07/12/2012.

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Lívia Barboza Maia é advogada do escritório Denis Borges Barbosa Advogados, mestranda em Direito Civil pela UERJ, especialista em Direito da Propriedade Intelectual pela PUC-Rio. livia@nbb.com.br

Fonte: Migalhas | 22/01/2016.

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Artigo: Alienação fiduciária e locação de imóveis – Por Mauro Antônio Rocha


Alienação fiduciária de bem imóvel. Repercussões da constituição da propriedade fiduciária na locação do imóvel perante o Registro de Imóveis.
Mauro Antônio Rocha [1]

– 1 –

Do contrato de alienação fiduciária decorre a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel da coisa imóvel (art.22, da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997) e a consequência primeira e fundamental resultante da constituição da propriedade fiduciária é o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel (art. 23, § único).

Dessa forma, com o registro da alienação fiduciária no competente Ofício de Registro, a propriedade é transferida ao fiduciário, com o escopo de garantia, juntamente com a posse indireta do imóvel, permanecendo o fiduciante, na posse direta, assegurada, enquanto adimplente, a livre utilização, por sua conta e risco, do imóvel objeto da alienação fiduciária (art. 24, V). 

A transferência da propriedade ao fiduciário, por seu caráter resolúvel, não modifica os termos, prazos e condições da locação do imóvel anteriormente contratada, permanecendo o fiduciante na condição de locador por conta dos direitos de uso e fruição legalmente assegurados.

Da mesma forma, a qualidade de possuidor direto confere legitimidade ao fiduciante para contratar a locação do imóvel a terceiros, a qualquer tempo, independentemente da concordância do fiduciário.

Nesse sentido, leciona Chalhub: é que o fiduciante (que, em geral, é o devedor na alienação fiduciária) tem legitimidade para alugar porque está investido no direito de uso e fruição do bem, do mesmo modo que o usufrutuário e o fiduciário (no fideicomisso), enquanto, ao contrário, o credor fiduciário não tem legitimidade para alugar porque não é o titular do direito de uso e fruição.[2]

É que, a rigor, a locação do imóvel alienado fiduciariamente só repercutirá em relação ao contrato de alienação fiduciária caso ocorra o inadimplemento das obrigações pelo devedor e a consequente consolidação da propriedade em nome do fiduciário.

– 2 –

A Lei nº 9.514/1997, trata da locação do bem alienado em garantia nos arts. 27, § 7º e 37–B cujos dispositivos tem a pretensão de proteger os interesses do fiduciário e conferir agilidade à realização da garantia.

Assim, o § único do art. 27 assegura ao proprietário o direito à denúncia da locação no prazo de noventa dias, contados da averbação da consolidação da propriedade no fiduciário, para a desocupação do imóvel pelo locatário em trinta dias.

De outro lado, o art. 37 – B dispõe ser ineficaz, com a consequência de não produzir qualquer efeito perante o fiduciário ou seus sucessores, tanto a contratação quanto a prorrogação de locação por prazo superior a um ano sem a concordância por escrito do fiduciário.

– 3 –

É possível destacar na locação – para efeitos meramente expositivos – as seguintes situações, com consequências e repercussões contratuais próprias:

– 3.1 –

O primeiro destaque diz respeito ao contrato de locação existente e vigente no momento da constituição da propriedade fiduciária.

Nesta hipótese a alienação fiduciária não provocará repercussão imediata em relação à locação, presumidamente conhecida pelo fiduciário que deverá respeitar os termos, prazos e condições contratadas.

O contrato de locação poderá ser prorrogado por qualquer prazo, porém, quando superior a doze meses, a ausência de concordância expressa o tornará ineficaz perante o fiduciário ou seus sucessores. Da mesma forma, ocorrendo a consolidação da propriedade no fiduciário a repercussão em relação ao contrato de locação será imediata, assegurado ao agora proprietário pleno o direito de, no prazo de noventa dias da averbação, denunciar a locação para desocupação do imóvel pelo locatário em trinta dias.

Com relação ao contrato registrado no Ofício de Imóveis, no entanto, estarão o fiduciário, seu cessionário ou seus sucessores, inclusive o adquirente do imóvel em leilão público, obrigados a respeitar a locação, assegurado ao locatário de imóvel comercial o direito à renovação, nos termos da lei de inquilinato, mesmo no curso da alienação fiduciária.

Se o fiduciário que não quiser correr o risco da locação deverá propor, como condição ‘sine qua non’ para a realização do negócio, o cancelamento do registro da locação antes da constituição da garantia fiduciária, caso contrário submeter-se-á a todos os termos e prazos estipulados no contato de locação. [3]

– 3.2 –

O segundo destaque diz respeito à locação contratada após a constituição da propriedade fiduciária.

Conforme já informado acima, o fiduciante tem o direito de alugar o bem com ou sem a aquiescência do fiduciário, mas, a locação ou prorrogação com prazo superior a doze meses é ineficaz em relação ao fiduciário.

Aqui, na hipótese da consolidação da propriedade, o fiduciário poderá denunciar a locação, no prazo legal, para desocupação em trinta dias, salvo se houver concordado por escrito, situação em que estará obrigado a respeitar o contrato, independentemente do registro.

A Lei n° 10.931, de 02 de agosto de 2004, que alterou substancialmente a Lei n° 9.514/1997, dispôs sobre a inclusão de cláusula específica no contrato de alienação fiduciária relativa à denúncia da locação e ao prazo de desocupação do imóvel.

– 4 –

Assim, o § 7º, do art. 27, da Lei nº 9.514, ao cuidar da denúncia da locação e da aquiescência do fiduciário, determinou que deverá essa condição constar expressamente em cláusula contratual específica, destacando-se das demais por sua apresentação gráfica.

A exigência legal – pela dubiedade do substantivo condição –  pode se referir tanto à transcrição literal, em forma clausular, do texto de introdução do parágrafo (se o imóvel estiver locado, a locação poderá ser denunciada com o prazo de trinta dias para desocupação, salvo se tiver havido aquiescência do fiduciário, devendo a denúncia ser realizada no prazo de noventa dias a contar da data da consolidação da propriedade no fiduciário), quanto à uma possível cláusula informativa da existência, prazos e condições da locação vigente.

Da mesma forma, o § único do art. 32 da Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991 (lei do inquilinato) dispõe, com a redação dada pela Lei nº 10.931/2004, que nos contratos firmados a partir de 1º de outubro de 2001, o direito de preferência de que trata este artigo não alcançará também os casos de constituição da propriedade fiduciária e de perda da propriedade ou venda por quaisquer formas de realização da garantia, inclusive leilão extrajudicial, devendo essa condição constar expressamente em cláusula contratual específica, destacando-se das demais por sua apresentação gráfica.

Também aqui, o vocábulo condição pode se referir à transcrição literal da introdução do parágrafo, ou, como parece mais provável, a uma cláusula específica que informe estar o imóvel alienado fiduciariamente, não sendo aplicável o direito de preferência à locação contratada.

– 5 –

Em que pese a relativa simplicidade das disposições legais aplicáveis ao assunto, contratos de locação têm sido recusados por excesso de zelo de alguns registradores e considerados inaptos para registro por faltar a cláusula específica acima referida ou pela ausência de concordância expressa do fiduciário.

Alegam que a cláusula específica de que trata o § único do art. 32 da Lei nº 8.245 é obrigatória e que sua ausência invalida o contrato de locação apresentado a registro. No entanto, consideram satisfeita a exigência com a simples transcrição da norma legal no corpo contratual.

Ora, o direito de preferência não alcançará o imóvel objeto do contrato – enquanto vigente a alienação fiduciária – independentemente da existência da referida cláusula, tornando essa exigência despicienda, não se admitindo sequer a alegação de possível prejuízo ao locatário, uma vez que ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece (art. 3º doDecreto-Lei n° 4.657, de 04 de setembro de 1942).

Muito mais desconcertante, no entanto, é a negativa de registro baseada na ausência de concordância do fiduciário no contrato de locação ou de prorrogação por prazo superior a doze meses.

Não há, sequer, fundamento legal que justifique a exigência do registrador. Com efeito, a lei não exige a concordância por escrito do fiduciário.

Basta ver que o art. 37–B da Lei nº 9.514 apenas declara ineficaz, e sem qualquer efeito perante o fiduciário ou seus sucessores, a contratação ou a prorrogação de locação de imóvel alienado fiduciariamente por prazo superior a um ano. O que a lei declara ineficaz perante o fiduciário ou seus sucessores será, evidentemente, válido e eficaz em relação a quaisquer outros terceiros.

No entanto, recentes decisões do Conselho Superior de Magistratura[4] e da Vara de Registros Públicos da Capital de São Paulo[5] têm ratificado o entendimento desacertado dos registradores, com argumentos que, com o devido respeito, nos parecem equivocados.

Por primeiro porque, como já dito anteriormente, a lei não exige anuência do fiduciário para a locação do imóvel. Ademais, a hipotética negativa de aquiescência poderá ser suprida judicialmente e, se injustificada, configurará ato ilícito (arts. 186 e seguintes do Código Civil) ficando o fiduciário obrigado a repará-lo (art. 927) mediante o pagamento de indenização compatível com a extensão do dano (art. 944).

Por segundo, porque a anuência do credor fiduciário não é elemento de existência nem requisito de validade do contrato de locação, o qual existe, é válido e eficaz entre locador e locatário. Feito o registro desse contrato será também eficaz em relação a terceiros, com exceção do credor fiduciário e sucessores, por não haver anuência escrita respectiva. [6]

– 6 –

A alienação fiduciária que foi introduzida na legislação brasileira com o intuito de simplificar e agilizar a concessão de crédito e a realização das garantias nos casos de inadimplemento contratual do fiduciante não pode ser invocada para prejudicar, retardar ou impedir a contratação de outros negócios jurídicos correlatos e intermediários, mas igualmente importantes para o crescimento econômico do país. Exigências registrais descabidas e decisões administrativas infundadas ferem de morte os objetivos da lei.

NOTAS

[1] O autor é advogado graduado pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduado em Direito Imobiliário e Direito Registral e Notarial. Coordenador Jurídico de Contratos Imobiliários da Caixa Econômica Federal.

[2] Chalub, Melhin Namem. Alienação Fiduciária, Incorporação Imobiliária e Mercado de Capitais – Estudos e Pareceres. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 25.

[3] Dantzger, Afranio Carlos Camargo. Alienação Fiduciária de Bens Imóveis. São Paulo: Método, 3 ed., 2010.

[4] CSM – Apelação nº 0065836-57.2013.8.26.0100, DJE/SP 08/10/2014 [NE: v. decisão de primeiro grau aqui]

[5] 1VRSP – Processo nº 1104526-70.2015.8.26.0100 e 1VRSP – Processo nº 1104533-62.2015.8.26.0100, DJE/SP 16/11/2015

[6] Declaração de voto divergente. Des. Ricardo Anafe – Presidente da Seção de Direito Privado. Apelação nº 0065836-57.2013.8.26.0100, DJE/SP 08/10/2014

Fonte: Observatório do Registro | 25/01/2016.

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