Artigo – Deontologia Notarial: Introdução e Importância – Por Fernando Alves Montanari

* Fernando Alves Montanari

Este artigo busca, de alguma forma, contribuir para uma simples introdução no estudo da deontologia do campo notarial e o lançar de sua importância para o desenvolvimento do mesmo como um todo.

As atividades tabelioas que hoje podem ser experimentadas pela sociedade brasileira nos diversos cartórios de notas e de protestos que cobrem o país são fruto de uma historicidade forjada com o empenho e a dedicação dos tabeliães que as exercitam desde a Antiguidade (mormente as notas), somando-se a isso a ingerência do Poder Público desempenhado pelos representantes da coletividade, tudo para o bem e a dignidade daquelas, através da criação, implementação e fiscalização de políticas e de um arcabouço jurídico que garante às notas e protestos estofo.

Para que hodiernamente pudéssemos contar com o serviço público que nos beneficia de forma ímpar com a segurança jurídica que esperamos do mesmo, através dos titulares destes cartórios e seus prepostos, reforçando seu principal atributo (fé pública), foi necessária uma sucessão natural (às vezes, forçada) de acontecimentos que os livros e artigos especializados sobre a matéria dão conta de registrar, nos instruir e garantir que as futuras gerações deles tomem conhecimento.

Ao mesmo tempo em que estas atividades foram evoluindo com muito suor, determinação e o emprego da inteligência dos notários, necessário foi conceber, aplicar e desenvolver um conjunto de normas que pudessem regrar o serviço para que caminhos tortuosos não fossem percorridos, para que o bem geral fosse respeitado e para que esta aparelhagem pudesse dar conta das pretensões e necessidades que a sociedade carecia e carece.

Não por acaso, de nada adianta para o grupo social um cartório que seja conhecido somente pela praticidade com que executa seus serviços, mas que é deficiente em conhecimentos técnico-jurídicos. De outra banda, não cumpre seu papel um cartório que seja conhecido somente pela capacidade intelectual de seu delegatário, enquanto os seus misteres estão perdidos nos procedimentos mal concebidos e executados para seus interessados. A união entre a teoria e a prática e seu desempenhar harmônico faz o bom tabelionato, que deve possuir um responsável capaz de por fim aos reclames sociais das notas e dos protestos, bem como uma equipe capaz de bem executar seus deveres com o uso de técnicas administrativas e gerenciais próprias da natureza da serventia. Só assim os conhecidos e populares escritos públicos (estejam eles instrumentalizando uma venda e compra, um inventário, uma declaração antecipativa de vontade ou uma que discipline uma união estável – sem esquecer dos atos extraprotocolares de reconhecimento de assinaturas e autenticações de toda ordem) e protestos atingirão seus fins, garantirão e serão marcados pela segurança jurídica como atos perfeitos e acabados, pautados na publicidade, autenticidade e eficiência.

Todavia, da mesma forma que não só de pão vive o homem, as notas e protestos sobreviveram até hoje, dentre outros, graças a uma estrutura ética prática cumprida por parte daqueles que os anima.

Neste particular viés, se quisermos que as notas e protestos continuem evoluindo, cumpre-nos indagar: qual conduta deve animar aqueles que têm por profissão desempenhar o Direito através das funções registrais ou, mais particularmente, as tabelioas? Existem princípios capazes de orientar essa conduta para que seja adjetivada como “digna”, “ética” e “moralmente boa” não só pelos seus pares, mas pela própria sociedade e pelo Poder por ela constituído? Seria possível especular sobre um regime ético-jurídico que consiga estruturar a conduta do profissional das Notas e, uma vez inserido dentro deste sistema axiológico-normativo, classificar seu comportamento como aquele que atingiu o fim que destinava e que valeu: por si só, para aqueles que o demandaram e para todos que direta ou indiretamente tomaram ou tomarem contato com ele? Classificá-lo, enfim, como um bom comportamento ético profissional?

Tais indagações, pelo que se percebe, não querem saber se este ou aquele notário tem conhecimentos legais e jurídicos suficientes para confecção desta ou daquela escritura ou se é capaz de lavrar o instrumento de protesto adequado; se ele está a par das orientações jurisprudenciais que norteiam a sua atividade, das questões jurídicas em voga ou das exaustivamente discutidas; ou, ainda, se ele conhece o texto frio e os meandros das normas de serviços extrajudiciais emanadas da Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça a que esteja sob fiscalização direta ou indireta.

Elas escamoteiam a preocupação com o comportamento dos tabeliães no desempenho de suas funções para que esse seja o mais próximo de uma plausível e possível perfeição e possa ser destacado como portador da ideia de bom e digno para todos, ou seja, ser emplacado como um comportamento justo. Não são questões descabidas ou ultrapassadas. Pelo contrário! São perguntas que buscam enaltecer o respeito que os tabeliães devem nutrir pela profissão que envergam antes mesmo de colocarem no campo prático as normas jurídicas que tanto pelejam “saber”, “entender” e “compreender”, nos mais íntimos e escancarados sentidos que estas palavras carregam.

As faculdades de Direito gastam pouquíssimas aulas, geralmente no início de seus cursos, quando dos estudos das propedêuticas jurídicas, para diferenciarem e aproximarem a Moral e o Direito (e, em algumas, a Ética). Depois disso, talvez pelo enorme tamanho dos conteúdos programáticos, dão atenção quase que exclusiva às dogmáticas jurídicas, para não dizer uma atenção integral.

Para a maioria destas instituições de ensino, inclusive ditas “de escol”, infelizmente, a preocupação com a deontologia passa ao largo. No geral somente quando o profissional, neófito ou não, começa a esbarrar nos problemas que a falta de ética pode fazer emergir no exercício do Direito e, não raras vezes, quando ele próprio se percebe no cerne destes problemas, é que a preocupação com os deveres ou regras desta natureza desperta e/ou se acentua. Neste contexto, as perguntas formuladas acima deixam de parecer simples questionamentos de mais um artigo que versa sobre a prática da ética e se tornam essenciais (basilares mesmo!), na determinação de um sentido geral de regras de ação para a própria vida do(a) Tabelião(a), seja no campo profissional ou não, pois as notas são verdadeiro sacerdócio dentro e fora do cartório, facilmente perceptível por aqueles tabeliães que exercem suas funções fora dos grandes centros, onde são conhecidos por todos do município, fato que as metrópoles disfarçam.

Seria no mínimo leviandade olvidar que a técnica, o direito objetivo, o direito subjetivo e a própria dogmática sejam importantes para qualquer profissional do Direito e um completo absurdo esquecer que estes são basais para aqueles que desempenham os registros públicos, sobretudo os que devem formalizar a vontade das partes de modo jurídico. O notário não interpreta em termos médicos ou só em fórmulas aritméticas o querer dos interessados que o procuram. Ele verte e formaliza esta vontade em termos jurídicos e, portanto, é indispensável o bom conhecimento do Direito como um todo.

Mas, só isso não basta. Como também não basta todo o arcabouço de instrumentalização, aumento de competências e atribuições que dotem as Notas de uma maior gama de serviços a serem disponibilizados à população.

Os preceitos jurídicos trazidos pelas normas (dever-ser) não alcançam por si mesmos a produção de efeitos. Eles precisam ser exercitados e conjugados com as vontades das partes para se tornarem uma escritura pública (ser) através da figura do notário, que tem por dever a Prudência, a Imparcialidade, a Igualdade e a legalidade, mas que carrega consigo seus conhecimentos, seus desconhecimentos, suas habilidades, suas inabilidades e, também, como não poderia ser diferente, suas disposições éticas.

Tais disposições variam de profissional para profissional, nada mais natural.

O entrave surge quando estas disposições não são consolidadas como virtudes do(a) Tabelião(ã), que deixa de dar cumprimento à norma e, talvez, à ética que deveria bem conduzir a função notarial, fugindo do dever moral-ético-jurídico que lhe cabia, prejudicando os interessados que o procuram, lesando a sociedade em que inserido e traindo a confiança de seus pares. Quando assim age, este profissional está maculando a ética profissional e aquele que dá fé se torna indigno de fé, subvertendo e manchando o sistema das notas e do protesto e, a partir daí, em cadeia, desrespeitando os interessados, aqueles que se envolverão com seu ato, seus pares, seus funcionários, suas associações representativas e a sociedade como um todo. A inclinação ética deficiente repercute, portanto, em toda a cadeia.

Por isso, o estudo, a formação, o debate, a reflexão e o desenvolvimento de uma ciência que trate dos deveres profissionais a que estão submetidos os notários, tal como a deontologia se propõe, é fundamental e tende a resultados mais salutares das funções desenvolvidas por estes profissionais e dos objetivos visados.

A deontologia notarial, que podemos entender de forma bem simplista como o conjunto de princípios e deveres que regula a atuação do Tabelião na prática para o bem da sociedade em que inserido e que dignificam a sua profissão, não é uma balela que deixará de existir dentro em breve. Trata-se de uma questão que todos devemos enfrentar para sabermos, em nossas vidas profissionais, distinguir o bom do mal procedimento, o correto do incorreto, o justo do injusto. Propõe o estudo e desenvolvimento dos deveres dos Notários do ponto de vista empírico.

Disso advém que uma ética notarial com deveres elevados reforça a fé que a sociedade deposita nas funções notariais, assegurando e alicerçando a Justiça, pois quanto maior for o empenho do Tabelião no bem agir profissional, maiores são os campos de aplicação e de extensão do seu ato, com uma maior incidência do princípio profilático de prevenção de litígios.

Se concordamos até aqui, fica fácil perceber, por via direta, que uma ética notarial com deveres elevados faz assegurar a própria solidariedade social, um objetivo fundamental da República Federativa do Brasil e um princípio (vetor) que se esparge por todo o sistema. Trata-se de uma forma de relacionamento capaz de aproximar ainda mais o notariado da sociedade, de modo que a concretização dos direitos e garantias, fundamentais ou não, se integram e são alcançados de forma mais justa (equânime para todos).

Os deveres éticos profissionais do notariado não são insossos. Representam o sabor da dignidade que deve revestir as notas, muito além de uma fria “instrumentalização da vontade das partes”. Extrapolam, por isso, uma espécie de “mecanicidade das notas”, para um instrumentalizar mais humano e ético.

A diferença entre saber essas coisas no mundo ideal e aplicá-las na prática está, entre outros, na coragem que cada Tabelião empenha no exercício das notas e protestos e na força vital que o anima para persistir no caminho certo, sem derrogações.

São Marcos evangelizou no sentido de que “qualquer que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á” (Marcos 8:35). O agir ético profissional exige de todos os tabeliães uma força ética positiva para a vida tabelioa e manobras de coragem para não sucumbir àquilo que é tido por um comportamento indigno. São justamente estas virtudes que o tornam forte no desempenho de sua função, digno não só de apor fé notarial nos atos que pratica, mas de ser reconhecido como um profissional pela distinta confiança daqueles que o procuram, por encarnar a segurança e a prudência. Se optar por agir de forma diversa (antiética), ou seja, se optar por agir apenas por si e para salvar os seus particulares interesses ou as escusas vontades dos interessados que o procurarem para tanto, começará a se distanciar da Justiça e da solidariedade social e, dessarte, angariará o proceder em insegurança (com os famosos “jeitinhos”), representando em um perigo para si, para os demais e para as próprias notas e protestos.

A par disso, finalizando este, incumbe-nos indagar: importa refletir sobre a deontologia notarial hodierna?

A resposta positiva salta à mente pela própria essencialidade de aplicação dos princípios éticos profissionais que ela estuda, explica e desenvolve, possibilitando o correto exercício da função notarial em respeito à Justiça, à Solidariedade social, à Prudência, ao sacerdócio da Prevenção dos Litígios e à Fé Pública, seu principal atributo; e, por consequência, subsistência, engrandecimento e evolução das notas e dos protestos.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

Para acompanhar as notícias do Portal do RI, siga-nos no twitter, curta a nossa página no facebook, assine nosso boletim eletrônico (newsletter), diário e gratuito, ou cadastre-se em nosso site.


Artigo: É possível revogar uma procuração com cláusula de irrevogabilidade? – Por Luis Flávio Fidelis Gonçalves

* Luis Flávio Fidelis Gonçalves

É POSSÍVEL REVOGAR UMA PROCURAÇÃO COM CLÁUSULA DE IRREVOGABILIDADE?

É comum aparecer na serventia um usuário solicitando a lavratura de um ato notarial de revogação de procuração que ele mesmo outorgou com cláusula de irrevogabilidade. Em um exame leigo e superficial do caso poder-se-ia concluir: ora, se ele deu uma procuração dizendo ser irrevogável, não pode agora querer revogar.

Porém, existem situações em que se torna inafastável a postura do Tabelião de lavrar a revogação da procuração, ainda que o outorgante tenha inserido cláusula de irrevogabilidade. Situações fáticas e questões jurídicas fundamentam esta conclusão.  

Veja-se o caso da esposa que outorga procuração com cláusula de irrevogabilidade ao marido para que ele administre o patrimônio da família. Havendo quebra de fidelidade, por exemplo, fatalmente estará aniquilada a confiança embasadora da outorga, não sendo crível que esta esposa fique impossibilitada de revogar os poderes que outorgou quando o afeto vigia.

Outra situação que se teve conhecimento foi a de uma pessoa que outorgou procuração para que um despachante procurasse e adquirisse um imóvel para ela. Esse despachante fez inserir outros poderes na procuração, passando a contrair obrigações em nome da mandante e ainda a gravou com cláusula de irrevogabilidade. Seria razoável impedir que a outorgante revogasse unilateralmente esta procuração pelo fato de conter cláusula de irrevogabilidade?

Diante dessas situações, o Tabelião deve se valer de alguns institutos jurídicos para embasar a sua decisão de lavrar ou não o pretendido ato.

Em primeiro lugar, importante diferenciar procuração e mandato, apesar de que em muitos momentos o próprio legislador confunde tais institutos.

Mandato é contrato, e pode ser bilateral quando o mandatário for remunerado ou unilateral quando gratuito. É ainda consensual, aperfeiçoando-se com a mera manifestação de vontade e informal, vez que sequer precisa ser instrumentalizado (Art. 656 do Código Civil). Finalmente, é um contrato preparatório que visa outra relação jurídica e também personalíssimo, calcado na confiança.

Por seu turno, a procuração é um ato jurídico unilateral, por meio do qual uma pessoa outorga poderes de representação para outrem. A outorga da procuração pode ser anterior, concomitante ou posterior ao contrato de mandato. Ela servirá apenas para instrumentalizar o mandato para um terceiro.

Com essas premissas, pode-se adentrar ao âmago da questão, ou seja, saber se é possível revogar uma procuração que contenha cláusula de irrevogabilidade.

As causas de extinção da procuração seguem as mesmas diretrizes da extinção do mandato, incluindo-se apenas a hipótese de substabelecimento sem reserva. Nesta senda, a revogação e a renúncia são formas de resilição unilateral, sendo permitidas apenas nas hipóteses previstas em lei.  Não se trata, então, de resilição bilateral que se daria por distrato, com a participação das duas partes, mas sim de ato unilateral de revogação quando a extinção se der pelo outorgante ou renúncia, quando pelo outorgado.

O Art. 683 do Código Civil trata exatamente da revogação do mandato (e procuração) que contém cláusula de irrevogabilidade, senão vejamos:
Quando o mandato contiver a cláusula de irrevogabilidade e o mandante o revogar, pagará perdas e danos”.

Nota-se que o dispositivo prevê expressamente a possibilidade de revogação de mandato ainda que haja cláusula de irrevogabilidade, fazendo apenas menção de que tal revogação poderá ensejar o pagamento de perdas e danos (se houver, é claro).

Neste mesmo sentido, basta uma análise superficial dos institutos mandato e procuração para que se possa concluir a possibilidade de sua revogação mesmo que haja cláusula de irrevogabilidade.

Etimologicamente, no direito romano, a palavra mandato provém da expressão “manus dare”, que significa “dar as mãos”, configurando contrato de confiança e amizade. Assim, a representação convencional é sempre temporária e excepcional, sendo que ninguém pode ser privado de retomar a direta administração de seus interesses quando lhe aprouver.

Conforme os ensinamentos de Carlos Roberto Gonçalves, o mandato “É contrato personalíssimo ou intuitu personae porque se baseia na confiança, na presunção de lealdade e probidade do mandatário, podendo ser revogado ou renunciado quando aquela cessar e extinguindo-se pela morte de qualquer das partes. Celebra-se o contrato em consideração à pessoa do mandatário, sendo, destarte, a fidúcia o seu pressuposto fundamental. Como conseqüência, é essencialmente revogável, salvo as hipóteses previstas nos arts. 683 a 686, parágrafo único, do Código Civil. Cessada a confiança, qualquer das partes pode promover a resilição unilateral (ad nutum), pondo termo ao contrato”.

Silvio de Salvo Venosa também trata da característica da revogabilidade intrínseca do mandato: “(…) Fundado na confiança, a qualquer momento pode o mandante revogá-lo, da mesma forma que pode o mandatário a ele renunciar. Pela revogação, o mandante suprime os poderes outorgados. Essa revogação constitui, na verdade, uma denúncia vazia ou imotivada do contrato de mandato, pois independe de qualquer justificativa. Ao mandante cabe julgar o interesse de manter ou não o mandatário. Essa revogação é ato unilateral, independe de justificação ou aceitação do mandatário. Pode ocorrer antes ou durante o desempenho do mandato."

Arrematando, Fábio Ulhôa Coelho assevera que: “Até mesmo quando a procuração contempla cláusula de irrevogabilidade, o mandante pode, em princípio, revogar o mandato. Nesse caso, está obrigado a arcar com a indenização pelos danos que isso trouxer ao mandatário (CC, art. 683), que terá, por exemplo, direito à remuneração proporcional à evolução das tratativas com os potenciais interessados”.

Desta forma, resta claro que a regra é da possibilidade de se lavrar um ato notarial de revogação de mandato e de procuração ainda que contenha cláusula de irrevogabilidade. Porém, existem situações em que efetivamente o mandato é irrevogável. São as hipóteses dos Art. 684 e 685 do Código Civil, que cominam de ineficaz eventual revogação.

A primeira hipótese de efetiva irrevogabilidade se dá quando a procuração estiver vinculada a outro contrato em que se firmou a irrevogabilidade. Ocorre normalmente quando há uma promessa irretratável de compra e venda juntamente com a outorga de procuração para a celebração do contrato definitivo.

Outra situação ocorre quando a procuração é outorgada no exclusivo interesse do outorgado, ou seja, quando os benefícios dos poderes conferidos são voltados ao próprio mandatário. Dá-se em regra quando a prestação que seria devida por uma das partes é substituída pela outorga de uma procuração.

Finalmente, será irrevogável o mandato conferido “em causa própria” ou “in rem suam”. Esta hipótese decorre normalmente de um contrato preliminar de compra e venda em que há quitação do preço, mas as partes de comum acordo firmam mandato irrevogável ao invés do contrato definitivo.

Somente nestas três hipóteses que o mandato e a procuração não poderão ser revogados. No mais, ainda que contenha cláusula de irrevogabilidade o Tabelião poderá lavrar o ato notarial de revogação da procuração.

Nota-se que este tema já foi objeto de aferição pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, cominando nos dois julgados dois julgados paradigmas que seguem:
Mandado de Segurança – Revogação de Mandato com cláusula de irrevogabilidade – Falta de notificação ao outorgado – Pretensão à nulificação da revogação da procuração pública – Rejeitado, liminarmente, com fundamento no art. 267, IV, do CPC – Admissibilidade da revogação, com fundamento no art. 683 do Código Civil – Recurso não provido. (TJSP – Apelação Cível nº 0013435–58.2011.8.26.0292 – Jacareí – 2ª Câmara de Direito Público – Rel. Des. Renato Delbianco – DJ 27.03.2013)

Neste processo o relator faz as seguintes ponderações:
… a cláusula de irrevogabilidade deixa de ter natureza absoluta, melhor comportando à situação a admissibilidade de revogação, assim estabelecida na hipótese disposta no art. 683 do Código Civil, que mesmo excetuando a regra geral da revogabilidade dos contratos de mandato, aventa a possibilidade de sua revogação com perdas e danos. Concluindo, possível sim a revogação do instrumento com cláusula de irrevogabilidade, consubstanciado no disposto trazido no art. 683 do Código Civil, recaindo o fato trazido na exordial, na excepcionalidade da regra geral do contrato de mandato, contudo com previsão de revogabilidade, com repercussão em perdas e danos. Assim sendo, não vislumbro ato abusivo ou ilícito do notário, acertada a decisão do MM. Juiz a quo, não merecendo o recurso acolhimento”.

Processo 0023661-82.2012.8.26.0100 da 2ª VRP|SP: Procuração com cláusula de irrevogabilidade. Revogação. Possibilidade. Contrato fundado na confiança que dura enquanto persistir essa confiança. O mandante pode proceder à revogação, respondendo, no entanto, pelas perdas e danos que causar (artigos 683 e 684 do Código Civil) 

O Relator do julgado assim assevera:
Inteiramente fundado na confiança, o mandato só deve durar enquanto persistir essa confiança. Portanto, mesmo que convencionada a irrevogabilidade, ou estabelecido um período de validade, nada impede possa a mandante proceder à revogação, sujeitando-se, no entanto, a responder pelas conseqüências que seu ato provocar. Nesse sentido, Ap. c/Revisão nº 583.486.00/9 9ª Câmara Rel. Juiz Gil Coelho J. 30.08.00 do 2º TAC e Apel. Cível do 1º TAC nº 0415249-8 1ª Câmara Rel. de Santi Ribeiro, J. 27.11.89, no sentido de que a existência de cláusula de irrevogabilidade e irretratabilidade é irrelevante para o deferimento da revogação do mandato, respondendo em tal hipótese pelas perdas e danos infligidas ao mandatário. A propósito, essa é a orientação traçada no atual Código Civil (artigos 683 e 684)”.

Portanto, caberá ao Tabelião analisar caso a caso para aferir se está diante de uma das hipóteses em que a lei veda a revogação da procuração que contenha cláusula de irrevogabilidade ou se mesmo contendo tal cláusula poderá lavrar a revogação apenas com a presença do outorgante.

Bibliografia
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2004, v. 3, p. 386.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2005, v. 3, p. 296.
COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2005, v. 3, p. 325.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

Para acompanhar as notícias do Portal do RI, siga-nos no twitter, curta a nossa página no facebook, assine nosso boletim eletrônico (newsletter), diário e gratuito, ou cadastre-se em nosso site.


Artigo – OBRIGATORIEDADE DA RESERVA LEGAL: CORRETA INTERPRETAÇÃO DO ORDENAMENTO JURÍDICO – Por Alexandre Scigliano Valerio

* Alexandre Scigliano Valerio

Artigo originalmente publicado no site do CoriMg- Colégio Registral Imobiliário do Estado de Minas Gerais

1.Introdução

O Ministério Público do Estado de Minas Gerais tem recomendado a diversos Oficiais de Registro de Imóveis do Estado que se abstenham de praticar vários atos nas matrículas de imóveis rurais que não possuam averbação de reserva legal (o chamado “bloqueio da matrícula”). Sobre o tema da reserva legal, referida Instituição propôs um Procedimento de Controle Administrativo perante o Conselho Nacional de Justiça, cujo pedido foi julgado procedente. A recomendação tem sido reafirmada mesmo após a implantação do Cadastro Ambiental Rural, solicitando-se que os Oficiais exijam mencionada averbação ou a comprovação do registro da reserva legal no novo Cadastro. O objetivo deste trabalho é dar a correta interpretação dos dispositivos normativos que tratam o tema, inclusive da decisão proferida pelo Conselho Nacional de Justiça.

2.Fatos

Em 26 de março de 2013, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais – MPMG instaurou, perante o Conselho Nacional de Justiça – CNJ, um Procedimento de Controle Administrativo– PCA, que recebeu o número 0002118-22.2013.2.00.0000 e que tinha por objeto o tema da reserva legal.

Em 25 de fevereiro de 2014, no âmbito do Procedimento em questão, o CNJ adotou decisão final que foi assim ementada:

PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. NOVO CÓDIGO FLORESTAL. RESERVA LEGAL. CADASTRO AMBIENTAL RURAL AINDA NÃO IMPLANTADO. AVERBAÇÃO NO CARTÓRIO DE REGISTRO DE IMÓVEIS. OBRIGATORIEDADE.

1. O texto do Novo Código Florestal (Lei n.º 12.651/2012, alterada pela Lei n.º 12.727/2012) provocou alterações no sistema de proteção e controle da área de reserva legal das propriedades rurais, uma vez que o referido dispositivo promove consistente modificação na forma de realização do seu registro junto aos órgãos competentes.

2. Somente o Cadastro Ambiental Rural desobriga a averbação no Cartório de Registro de Imóveis. Assim, considerando-se que o registro no “CAR” é fator imprescindível para a total aplicação do preceito legal, enquanto não implantado, permanece a obrigação imposta na Lei nº 6.015/73 para averbação na matrícula do imóvel, pois o Novo Código Florestal não preconiza liberação geral e abstrata.

3. A manutenção da obrigação de averbar no Registro de Imóveis, enquanto ainda não disponível o Cadastro Rural, atende, portanto, ao princípio da prevenção ambiental, tal qual previsto pela Lei nº 6.938, de 1981, em seu art. 2º.

4. Pedido que se julga procedente para manter hígida a obrigação daaverbação da Reserva Legal junto ao Cartório de Registro de Imóveis.

A parte dispositiva da decisão foi assim redigida (destaques nossos):

Pelo exposto, há que se julgar procedente o presente Procedimento de Controle Administrativo para determinar a suspensão da Orientação nº 59.512/2012 e do Provimento nº 242/2012, objetivando manter inalterada a obrigatoriedade da averbação junto aos Cartórios de Registro de Imóveis Rurais, até a efetiva implantação do Cadastro Ambiental Rural previsto na Lei n.º 12.651/12 (Novo Código Florestal).

A decisão vem sendo interpretada pelo MPMG, Requerente do PCA, como reforço de sua antiga orientação, no seguinte sentido: enquanto não averbada, na matrícula de imóvel rural, a especialização da reserva legal, o proprietário do imóvel que é seu objeto não pode ter deferidos, pelos Oficiais de Registro de Imóveis, diversos atos na mesma matrícula. Assim, enquanto não providenciada a averbação da especialização da reserva legal, não pode o proprietário, com relação a seu imóvel, praticar atos tais como vender, doar, alienar fiduciariamente, hipotecar, extinguir condomínio, adjudicar, arrematar, partilharinter vivos ou causa mortis, lotear, desmembrar, retificar área etc. É o que aqui se denominará bloqueio da matrícula.

Em 6 de maio de 2014, data da publicação da Instrução Normativa do Ministério do Meio Ambiente 2/2014, o Cadastro Ambiental Rural – CAR foi implantado (art. 21 do Decreto Federal 7.830/2012 e art. 64 da Instrução Normativa). Em 9 de maio de 2014, foi instalado, no Estado de Minas Gerais, o Cadastro Ambiental Rural, mencionado na decisão do PCA0002118-22.2013.2.00.0000. Em 2 de junho de 2004, a Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais expediu o Aviso 25/2014, dando notícia da referida instalação.

Não obstante (e mesmo após a implantação do CAR), o MPMG continua entendendo, e recomendando aos Oficiais de Registro de Imóveis do Estado, que a especialização da reserva legal deve ser providenciada pelos proprietários dos imóveis rurais, sob pena de não se proceder a nenhum ato na matrícula (in verbis: “como condição para a prática de todos os atos de registro relacionados à respectiva matrícula”). No entendimento do MPMG, ou o proprietário averba na matrícula a especialização da reserva legal ou comprova, no momento da solicitação de ato perante o Oficial de Registro de Imóveis, a inscrição da referida especialização no CAR – sob pena de não se praticar o ato, repita-se. A nova recomendação expressamente cita, em suas considerações, a decisão proferida no PCA 0002118-22.2013.2.00.0000 (penúltima consideração).

Observe-se que, tanto antes como depois da decisão proferida no PCA0002118-22.2013.2.00.0000, o não atendimento da “recomendação” do Ministério Público sujeitava e sujeita o Oficial de Registro de Imóveis a uma ação civil pública (daí a exigência, na nova recomendação, de que o Oficial responda se vai acatá-la ou não, falando-se ainda, nos consideranda, em “apuração de responsabilidade”).

3.Direito

Conforme se mostrará ao longo do presente artigo, a obrigação de se especializar a reserva legal não implica em bloqueio da matrícula, sendo questões absolutamente diversas e que foram confundidas ou deturpadas pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais.

3.1.Obrigatoriedade da reserva legal (questão pacífica 1)

Grosso modo, a reserva legal é a obrigação, imposta já por lei ao proprietário de imóvel rural, de não explorar ou explorar de forma limitada parte de seu imóvel, tendo em vista a finalidade de preservação do meio ambiente. O assunto era regulado pelo antigo Código Florestal – Lei Federal 4.771/1965 –, sendo hoje normatizado pela Lei Federal 12.651/2012.

Não há nenhuma dúvida sobre a obrigatoriedade da reserva legal e de sua especialização. Conforme a expressão já indica, a reserva é “legal”, ou seja, criada e imposta pela lei. A obrigação do proprietário do imóvel rural é especializar a reserva legal, localizando sua área, ou seja, descrevendo a área onde ela se situa. Desnecessário discutir o assunto, que não encontrará questionamento por quem quer que seja.

3.2.O local de publicidade da especialização da reserva legal (questão pacífica 2)

Tradicionalmente, a especialização da reserva legal ganhava publicidade mediante sua averbação na matrícula do imóvel, nos termos do art. 167, II, 22 da Lei Federal 6.015/1973 – Lei de Registros Públicos ou LRP e dos art. 16, § 2º e 44, parágrafo único da Lei Federal 4.771/1965, incluídos pela Lei Federal 7.803/1989 (com a Medida Provisória 2.166-67/2001, o dispositivo do art. 16, § 2º passou a estar previsto no mesmo artigo, § 8º, enquanto o art. 44 passou a tratar outro assunto).

Com a adoção da Lei Federal 12.651, de 25 de maio de 2012, que “dispõe sobre a vegetação nativa” e revogou a Lei Federal 4.771/1965, o assunto passou a estar regulado nos art. 12 a 25 da referida Lei. O local de publicidade da especialização da reserva legal deixou de ser a matrícula do imóvel nos Ofícios de Registro de Imóveis e passou a ser o Cadastro Ambiental Rural – CAR, cadastro eletrônico mantido pelas autoridades ambientais, conforme se verifica no art. 18, “caput” e § 4º da referida Lei, a seguir transcritos (destaques nossos):

Art. 18.  A área de Reserva Legal deverá ser registrada no órgão ambiental competente por meio de inscrição no CAR de que trata o art. 29, sendo vedada a alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, ou de desmembramento, com as exceções previstas nesta Lei.

[…]

§ 4o  O registro da Reserva Legal no CAR desobriga a averbação no Cartório de Registro de Imóveis, sendo que, no período entre a data da publicação desta Lei e o registro no CAR, o proprietário ou possuidor rural que desejar fazer a averbação terá direito à gratuidade deste ato.  (Redação dada pela Lei nº 12.727, de 2012).

A implantação do CAR demandou tempo, esforço e dinheiro por parte do governo. Dúvida surgiu quanto ao local de publicidade da especialização da reserva legal, enquanto não implantado (ou “efetivamente implantado”) o CAR. Parece-nos que a verdadeira utilidade da decisão proferida pelo CNJ no PCA 0002118-22.2013.2.00.0000 foi a de resolver esta dúvida, determinando que a especialização da reserva legal continuasse a ter publicidade na matrícula do imóvel, enquanto não implantado (ou “efetivamente implantado”) o CARDe fato, a decisão fala em “manutenção da obrigação de averbar [a especialização da reserva legal] no Registro de Imóveis, enquanto ainda não disponível o Cadastro Rural”.

3.3.A ausência de especialização da reserva legal não gera o bloqueio da matrícula; a correta interpretação da manutenção da reserva legal “nos casos de transmissão, a qualquer título, ou de desmembramento” do imóvel

O ordenamento jurídico é um conjunto de normas que podem ser divididas em princípios e regras. Na lição de Canotilho ([2000], p. 1124-1125[1], vários são os critérios sugeridos pela doutrina para diferenciar princípios de regras: o grau de abstração (os princípios possuem um grau de abstração relativamente elevado, enquanto as regras possuem um grau de abstração relativamente reduzido), o grau de determinabilidade (os princípios necessitam concretização, enquanto as regras são diretamente aplicáveis), o grau de fundamentalidade no sistema das fontes de direito (os princípios apresentam esse caráter fundamental, seja em virtude de sua posição hierárquica – princípios constitucionais – seja em virtude de sua natureza estruturante), o grau de proximidade da ideia de direito (os princípios se aproximam mais da ideia de direito e de justiça, enquanto as regras se orientam mais a um caráter funcional) e, por fim, o grau de capacidade normogenética (os princípios são o fundamento das regras, justificando sua existência).

É interessante mencionar, ainda segundo o mesmo Autor (obra citada, p. 1125-1126), que os princípios não são, a nível teórico, excludentes uns dos outros, podendo coexistir mesmo se forem eventualmente contraditórios. Enquanto um conflito entre regras deve ser resolvido pela prevalência de uma delas, uma vez que a regra ou é válida ou não, um conflito entre princípios não leva à mesma conclusão: torna-se necessário confrontá-los e ponderá-los de acordo com sua importância, a fim de decidir qual irá prevalecer no caso concreto. Isso se dá sem prejuízo de sua validade, pois os princípios conflitantes continuarão, ambos (ou todos), juridicamente vinculantes.

Assim, o legislador (constitucional, legal e infralegal) realiza a ponderação ou sopesamento dos valores ou princípios (normas abstratas), concretizando-os em regras (normas concretas).

No ordenamento jurídico brasileiro, tanto o direito à propriedade como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado são valores ou princípios constitucionais (art. 5º, XXII; 170, II e III; 186, II; e 225). A ponderação ou sopesamento desses valores ou princípios deve ser feito seguindo-se a hierarquia do ordenamento jurídico.

Nesse contexto, verifica-se, pela leitura do ordenamento jurídico brasileiro atualmente vigente, que o legislador, em nenhum momento, condicionou os atos na matrícula do imóvel rural à especialização da reserva legal (seja na própria matrícula, seja no Cadastro Ambiental Rural).

Um dispositivo usado pelos defensores da tese do bloqueio da matrícula era o hoje revogado art. 16, § 8º da Lei Federal 4.771/1965 (semelhante ao antigo art. 16, § 2º da mesma Lei), que dispunha o seguinte (destaques nossos):

A área de reserva legal deve ser averbada à margem da inscrição de matrícula do imóvel, no registro de imóveis competente, sendo vedada a alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, de desmembramento ou de retificação da área, com as exceções previstas neste Código.

Ora, o dispositivo revela norma óbvia, uma vez que a reserva legal é limitação administrativa ou obrigaçãopropter rem, que acompanha o imóvel; assim, as mutações jurídicas por que passa o imóvel (alienação, oneração, parcelamento etc.) não alterarão a reserva legalVejamos a opinião de alguns autores:

a) Antunes[2]:

A reserva legal é uma obrigação que recai diretamente sobre o proprietário do imóvel, independentemente de sua pessoa ou da forma pela qual tenha adquirido a propriedade; desta forma, ela está umbilicalmente ligada à própria coisa, permanecendo aderida ao bem. O proprietário, para se desonerar da obrigação, necessita, apenas, renunciar ao direito real que possui, mediante a utilização de qualquer uma das formas legais aptas para transferir a propriedade. […]

Efetivamente, a reserva legal é uma característica da propriedade florestal que se assemelha a um ônus real que recai sobre o imóvel e que obriga o proprietário e todos aqueles que venham a adquirir tal condição, quaisquer que sejam as circunstâncias. Trata-se de uma obrigação in rem, ob ou propter rem, ou seja, uma obrigação real ou mista[3]. Convém relembrar as palavras de Orlando Gomes sobre a matéria, in verbis: “(as obrigações reais) Caracterizam-se pela origem e transmissibilidade automática. Consideradas em sua origem, verifica-se que provêm da existência de um direito real, impondo-se ao seu titular. Esse cordão umbilical jamais se rompe. Se o direito de que se origina é transmitido, a obrigação o segue, seja qual for o título translativo.” O ilustre Professor Orlando Gomes não está solitário em sua concepção, sendo uma das mais abalizadas vozes de uma corrente amplamente majoritária sobre o tema. […]

b) Machado[4]

A lei visou a dar um caráter de relativa permanência à área florestada do País. A lei federal determina aimutabilidade da destinação da Reserva Legal Florestal de domínio privado, por vontade doproprietário. Nos casos de transmissão por compra e venda como, também, por acessão, usucapião epelo direito hereditário, a área da Reserva, a partir da promulgação da Lei 7.803/1989, continua com os novos proprietários numa cadeia infinita. O proprietário pode mudar, mas não muda a destinação da área da Reserva Legal Florestal.

c) Milaré[5]:

Cabe observar, por fim, que, à vista do caráter propter rem da reserva florestal legal, bem como considerando o seu objetivo precípuo de salvaguardar a manutenção de cobertura florestal necessária à estabilidade do ecossistema local, impõe o Código Florestal, ao proprietário da área averbada, a vedação da alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, de desmembramento ou de retificação de área, com as exceções previstas no Código.

Nenhum desses grandes autores de Direto Ambiental fala em bloqueio da matrícula[6].

O dispositivo atualmente vigente – art. 18, “caput” da Lei Federal 12.651/2012 – dispõe o seguinte (destaques nossos):

Art. 18.  A área de Reserva Legal deverá ser registrada no órgão ambiental competente por meio de inscrição no CAR de que trata o art. 29, sendo vedada a alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, ou de desmembramento, com as exceções previstas nesta Lei.

O novo dispositivo deve ser interpretado em consonância com o art. 2º, § 2º da mesma Lei, que prova que a correta interpretação não é o condicionamento dos atos referidos (transmissão e desmembramento) à especialização da reserva legal – o que não é dito – senão, somente, sua manutenção em tais situações, uma vez que a reserva legal, repita-se, acompanha o imóvel:

Art. 2º

§ 2o  As obrigações previstas nesta Lei têm natureza real e são transmitidas ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural.

A regra da transmissibilidade da obrigação é confirmada nos artigos 7º, § 2º (áreas de preservação permanente), 18, § 3º (reserva legal em caso de posse) e 66, § 1º (áreas consolidadas em áreas de reserva legal), todos da mesma Lei.

Frise-se, pois: não houve opção legislativa no sentido de se condicionar a transmissão ou o desmembramento (e nem a retificação de área) de imóvel à prévia especialização da reserva legal.

Quando a ponderação de valores levou ao condicionamento (restrição ao princípio da propriedade privada), o legislador o fez EXPRESSAMENTE, como é o caso da certificação de não sobreposição expedida pelo INCRA, a teor do disposto no art. 176, §§ 3º e 4º da LRP, a seguir transcritos:

Art. 176

§ 3º Nos casos de desmembramento, parcelamento ou remembramento de imóveis rurais, a identificação prevista na alínea a do item 3 do inciso II do § 1o será obtida a partir de memorial descritivo, assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica – ART, contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo INCRA, garantida a isenção de custos financeiros aos proprietários de imóveis rurais cuja somatória da área não exceda a quatro módulos fiscais.

§ 4o A identificação de que trata o § 3º tornar‑se‑á obrigatória para efetivação de registro, em qualquer situação de transferência de imóvel rural, nos prazos fixados por ato do Poder Executivo.

Observe-se que, no caso da certificação do INCRA, houve um escalonamento, ou seja, um cronograma estabelecido pelo governo, e não a extensão da obrigação, restringindo o exercício do direito de propriedade, de forma imediata a todos os proprietários de imóveis rurais. Na presente data, por exemplo, somente matrículas de imóveis rurais acima de 250 ha estão bloqueadas na ausência de certificação do INCRA.

Ora, os mesmos dispositivos acima são inexistentes no caso da reserva legal (!)

Nesse contexto – condicionar – com base em uma “recomendação” do Ministério Público ou em uma decisão do Conselho Nacional de Justiça, que, numa leitura atenta, assim não o diz – atos na matrícula à prévia especialização da reserva legal (averbada na própria matrícula ou inscrita no CAR) configura ato inconstitucional, ilegal e atentatório ao direito de propriedade (CF, art. 5º, XXII), sujeitando o Oficial de Registro de Imóveis a medidas judiciais por parte dos proprietários dos imóveis rurais.

Os Oficiais de Registro de Imóveis não têm, certamente, posição contrária à preservação do meio ambiente. Não é disso que se trata. O que não se pode é, sob o pretexto de se defender o meio ambiente, DISTORCER o ordenamento jurídico vigente, criando uma obrigação e impondo uma sanção que não foram previstas em lei, em completo ferimento, pois, ao princípio da legalidade.

3.4.Qual é a sanção para a ausência de especialização da reserva legal?

As sanções a serem impostas ao proprietário de imóvel rural que não especializa a reserva legal estão previstas no art. 55 do Decreto Federal 6.514/2008: elas são advertência e multa. Transcrevemos o artigo, que descreve, inclusive, o procedimento para regularizar a situação:

Art. 55.  Deixar de averbar a reserva legal: (Vide Decreto nº 6.686, de 2008) (Vide Decreto nº 7.029, de 2009) (Vide Decreto nº 7.497, de 2011) (Vide Decreto nº 7.640, de 2011) (Vide Decreto nº 7.719, de 2012)

Penalidade de advertência e multa diária de R$ 50,00 (cinquenta reais) a R$ 500,00 (quinhentos reais) por hectare ou fração da área de reserva legal.

§ 1o  O autuado será advertido para que, no prazo de cento e oitenta dias, apresente termo de compromisso de regularização da reserva legal na forma das alternativas previstas na Lei no 4.771, de 15 de setembro de 1965. (Redação dada pelo Decreto nº 7.029, de 2009)

§ 2o  Durante o período previsto no § 1o, a multa diária será suspensa. (Redação dada pelo Decreto nº 6.686, de 2008)

§ 3o  Caso o autuado não apresente o termo de compromisso previsto no § 1o nos cento e vinte dias assinalados, deverá a autoridade ambiental cobrar a multa diária desde o dia da lavratura do auto de infração, na forma estipulada neste Decreto. (Incluído pelo Decreto nº 6.686, de 2008)

§ 4o As sanções previstas neste artigo não serão aplicadas quando o prazo previsto não for cumprido por culpa imputável exclusivamente ao órgão ambiental. (Incluído pelo Decreto nº 6.686, de 2008)

§ 5o  O proprietário ou possuidor terá prazo de cento e vinte dias para averbar a localização, compensação ou desoneração da reserva legal, contados da emissão dos documentos por parte do órgão ambiental competente ou instituição habilitada. (Incluído pelo Decreto nº 7.029, de 2009)

§ 6º  No prazo a que se refere o § 5º, as sanções previstas neste artigo não serão aplicadas. (Incluído pelo Decreto nº 7.029, de 2009)

Se, durante muito tempo, houve um “clarão normativo” (ausência de sanção específica para o descumprimento da obrigação de especialização da reserva legal), em 2008 tal lacuna foi preenchida. Nesse sentido: Milaré[7] e Melo[8].

3.5.PCA 0002118-22.2013.2.00.0000

Na petição inicial do PCA0002118-22.2013.2.00.0000, o MPMG, somente em um único parágrafo, revelou suareal intenção de condicionar atos na matrícula à especialização da reserva legal.

A partir daí, em todas as 18páginas da exordial –ou seja, em todo o desenvolvimento e na conclusão –a argumentação do Ministério Público é no sentido da obrigatoriedade da reserva legal e da sua publicidade na matrícula enquanto não implantado o CAR, ambos os assuntos, como dito acima, absolutamente pacíficos (!)

A decisão do Conselho Nacional de Justiça, no mesmo Procedimento, e numa leitura atenta, em nenhum momento condiciona atos na matrícula à especialização da reserva legal. O que ela faz é esclarecer que, enquanto não implantado o CAR, a publicidade da especialização da reserva legal continua devendo ser feita na matricula.

Observe-se que, posteriormente à decisão definitiva, o Ministério Público do Estado de Goiás peticionou nos autos alegando seu descumprimento por parte do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, defendendo, especificamente, a tese do bloqueio da matrícula. A decisão proferida pela d. Relatora do Procedimento, datada de 25 de março de 2014, parece ser contrária à tese:

Considerando que o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás tem adotado medidas em consonância com o entendimento firmado pelo Plenário deste Conselho no bojo do presente feito, não há providências a serem tomadas.

3.6.Atos normativos estaduais

Em 30.10.2013, foi publicado, no Diário do Judiciário Eletrônico/TJMG, o Provimento nº 260/CGJ/2013, que “codifica os atos normativos da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais relativos aos serviços notariais e de registro”. Por se estar em fase de transição – obrigatoriedade de especialização da reserva legal no CAR, ainda não implantado à época – a e. CGJMG preferiu não tratar especificamente o assunto “reserva legal”.

A Lei Estadual revogada (14.309/2002), bem como a Lei Estadual vigente (20.922/2013) contêm dispositivos semelhantes aos das Leis Federais vigentes à época de suas adoções (4.771/1965 e 12.651/2012, respectivamente), nada acrescentando à presente controvérsia.

3.7.Regularização fundiária realizada pelo Estado de Minas Gerais

O Estado de Minas Gerais possui um programa de regularização fundiária, disciplinado pela Lei Estadual 11.020/1993, que implica na discriminação de terras devolutas e transferência de seu domínio aos posseiros.

A vingar o entendimento do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, como a regularização fundiária gera um ato de registro de transferência de propriedade, o programa estadual deveria ser paralisado enquanto o Estado não providenciar a especialização da reserva legal de todos os imóveis rurais por ele discriminados[9].

A consequência social de tal paralisação não é, certamente, irrelevante.

3.8.Efeito prático da exigência

Por orientação (“recomendação”) do Ministério Público Estadual atuante em uma das Comarcas do Estado de Minas Gerais (cujo nome será mantido em sigilo), o Oficial de Registro de Imóveis respectivo passou a condicionar os atos nas matrículas de imóveis rurais à averbação da especialização da reserva legal. Após um ano, referido Oficial realizou um levantamento cuja conclusão foi a seguinte:

a) No ano anterior ao da “recomendação” (período de 12 meses): 246 protocolos de títulos relativos a imóveis rurais;

b) No ano posterior ao da “recomendação”, exigindo-se a prévia averbação da especialização da reserva legal(período de 12 meses): 97 protocolos, sendo que destes em apenas 22 a exigência foi cumprida e os títulos puderam ser registrados.

O caso prático revela uma consequência não prevista para a interpretação do Ministério Público: a desatualização da situação jurídica dos imóveis, haja vista que suas matrículas não revelarão seus verdadeiros proprietários, que serão levados para a informalidade.

Para Melo[10]:

A maior consequência de eventual vinculação da reserva florestal legal a atos de registro seria a criação de um mercado imobiliário informal no âmbito rural, já que a economia tem seu ritmo próprio e sempre está à frente do direito, dificultando ainda mais o trabalho das autoridades ambientais.

4.Possível atuação dos Oficiais de Registro de Imóveis

A função dos Oficiais de Registro de Imóveis é conferir publicidade, autenticidade, segurança e eficácia aos atos jurídicos relativos a imóveis. Os Oficiais de Registro de Imóveis não podem adotar conduta ilegal e não podem converter-se em fiscais ambientais, assumindo um papel que não lhes é conferido legalmente.

Não obstante, os Oficiais de Registro de Imóveis praticam serviço público absolutamente relevante, devendo estar conscientes de sua função social. Sendo assim, e uma vez que já obrigados a comunicar seus atos a uma série de entidades e órgãos públicos, os Oficiais de Registro de Imóveis devem colocar-se à disposição para acordar, com as autoridades ambientais ou com os Promotores e Procuradores de Justiça que atuam em suas Comarcas, se assim solicitados, um cronograma ou um plano de trabalho para o fornecimento decertidões de imóveis rurais que não possuem averbação de especialização de reserva legal ou cujos proprietários não comprovem sua inscrição no CAR. A partir daí, cabe às mencionadas autoridades iniciar a investigação do caso, convocando os proprietários, elaborando termos de ajustamento de conduta ou outros instrumentos adequados, impondo as sanções juridicamente previstas em caso de seu descumprimento etc., tudo nos termos do art. 55 do Decreto Federal 6.514/2008, já transcrito acima.

5.Conclusão

No ordenamento jurídico atualmente vigente, o chamado “bloqueio da matrícula” em virtude da ausência de especialização da reserva legal (condicionamento de diversos atos na matrícula à averbação da referida especialização ou a sua inscrição no CAR) é conduta inconstitucional e ilegal, atentatória, portanto, aos direitos do proprietário de imóvel rural. Os Oficiais de Registro de Imóveis devem cooperar, dentro da lei, para a promoção do meio ambiente ecologicamente equilibrado.

_________

1. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4ª ed. Coimbra: Almedina, [2000]. 

2. ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 12ª ed. amplamente reformulada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 542-543.

3. GOMES, Orlando. Obrigações. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 21.

4. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental brasileiro. 12ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 722. No mesmo sentido, após a adoção da Lei Federal 12.651/2012, cf. a opinião do mesmo Autor na seguinte obra: MILARÉ, Edis; MACHADO, Paulo Affonso Leme. Novo código florestal;comentários à Lei 12.651, de 25 de maio de 2012 e à MedProv 571, de 25 de maio de 2012. São Paulo: RT, 2012, p. 217-218.

5. MILARÉ, Edis.Direito do ambiente; a gestão ambiental em foco; doutrina; jurisprudência; glossário. 7ª ed. rev., atual. e reformulada. São Paulo: RT, 2011, p. 971.

6. Milaré (obra citada, p. 970) menciona a “tentativa de alguns Estados de atrelarem, sem muito sucesso, a obrigação de averbação a atos registrários”.

7. Obra citada, p. 970.

8. MELO, Marcelo Augusto Santana de. Reserva Legal Florestal (RLF). Em: INSTITUTO DE REGISTRO IMOBILIÁRIO DO BRASIL. Boletim do IRIB em revista. Edição 338, p. 22-34, p. 27 (25º Encontro Regional dos Oficiais de Registro de Imóveis, 11 a 13 de março de 2010, Tiradentes – MG).

9. O alerta foi feito por Sérgio de Freitas Barbosa, Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de Rio Pardo de Minas.
 

10. Obra citada, p. 26.

__________

* O autor é Doutor em Direito Econômico pela UFMG e Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de Taiobeiras/MG.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

Para acompanhar as notícias do Portal do RI, siga-nos no twitter, curta a nossa página no facebook, assine nosso boletim eletrônico (newsletter), diário e gratuito, ou cadastre-se em nosso site.