Artigo: Estatuto da Pessoa com Deficiência: a revisão da teoria das incapacidades e os reflexos jurídicos na ótica do notário e do registrador – Por Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro


* Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro

Em 07 de julho de 2015 foi publicada a Lei nº 13.146/2015, Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, também nomeada de Estatuto da Pessoa com Deficiência, comvacatio legis de 180 dias. Este Estatuto traz diversas garantias para os portadores de deficiência de todos os tipos, com reflexos nas mais diversas áreas do Direito, especialmente com sensíveis alterações no Código Civil Brasileiro.
De saída, deve-se esclarecer que o Estatuto em questão está lastreado na Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CDPD), que foi o primeiro tratado internacional de direitos humanos aprovado pelo Congresso Nacional conforme o procedimento qualificado do § 3º do art. 5º da Constituição Federal (promulgado pelo Decreto nº 6.949/09 e em vigor no plano interno desde 25/8/2009). Portanto, a mencionada convenção internacional possui status de norma constitucional.O objetivo humanista da CDPD consagra inovadora visão jurídica a respeito da pessoa com deficiência. Nesse modelo, a deficiência não pode se justificar pelas limitações pessoais decorrentes de uma patologia. A ideia fulcral parece ser a de substituir o chamado “modelo médico” – que busca desenfreadamente reabilitar a pessoa anormal para se adequar à sociedade –, por um modelo “social humanitário” – que tem por missão reabilitar a sociedade para eliminar os entraves e os muros de exclusão, garantindo ao deficiente uma vida independente e a possibilidade de ser inserido em comunidade. Nesse sentido reconheceu o preâmbulo da CDPD que “a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas”.

Por tudo isso, fundado nas melhores lições do direito civil constitucional, o Estatuto da Pessoa com Deficiência intensifica a chamada “repersonalização do direito civil”, colocando a pessoa humana no centro das preocupações do Direito. Exatamente nessa medida, a novellegislação revisitou alguns institutos fundamentais do direito civil na tentativa de conferir igualdade no exercício da capacidade jurídica por parte da pessoa com deficiência. Em realidade, como conclui Pablo Stolze, “trata-se, indiscutivelmente, de um sistema normativo inclusivo, que homenageia o princípio da dignidade da pessoa humana em diversos níveis. 1

Antes de tudo, é fundamental entender o alcance da expressão “pessoa com deficiência”. Nos termos do art. 2º da Lei nº 13.146/2015, “considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.

As notas e os registros públicos são instituições que, em razão de suas atribuições, estarão diretamente envolvidas com a aplicação efetiva do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Não por acaso, o art. 83, caput, do Estatuto determina que, sob pena de discriminação, “os serviços notariais e de registro não podem negar ou criar óbices ou condições diferenciadas à prestação de seus serviços em razão de deficiência do solicitante, devendo reconhecer sua capacidade legal plena, garantida a acessibilidade”.

Com efeito, partindo-se para a análise dos efetivos reflexos do Estatuto no direito positivo, parece indiscutível que houve verdadeira reestruturação na teoria das incapacidades, além de notórias repercussões em diversos institutos do direito de família, como o casamento, a interdição e a curatela.

Foram revogados todos os incisos do art. 3º do Código Civil, que tinha a seguinte redação: “São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I – os menores de dezesseis anos; II – os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III – os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade”. Também foi alterado o caput do comando legal, passando a estabelecer que “são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 anos”.

Em síntese, o sistema privado brasileiro passa a ter apenas uma hipótese de incapacidade absoluta: os menores de 16 anos. Assim, não existe mais pessoa absolutamente incapaz que seja maior de idade. Por conseguinte, não há que se falar mais em ação de interdição absoluta no sistema civil, pois os menores não são interditados.

De sua vez, o art. 4º do Código Civil também foi modificado de forma considerável pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência. O seu inciso II não faz mais referência às “pessoas com discernimento reduzido”, que não são mais consideradas relativamente incapazes, como antes estava regulamentado. Apenas foram mantidas no diploma as menções aos ébrios habituais (entendidos como os alcoólatras) e aos viciados em tóxicos, que continuam dependendo de um processo de interdição relativa, com sentença judicial, para que sua incapacidade seja reconhecida. Também foi alterado o inciso III do art. 4º do Código Civil, sem mencionar mais os “excepcionais sem desenvolvimento completo”. A redação anterior tinha incidência para o portador de síndrome de Down, não considerado mais um incapaz.

A nova redação dessa norma (art. 4º, III) passa a arrolar as pessoas que, “por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir vontade” – que antes estava previsto no inciso III do art. 3º como situação típica de incapacidade absoluta. Agora a hipótese é de incapacidade relativa. Em resumo, nos termos da nova redação do art. 4º, “são incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I – os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II – os ébrios habituais, os viciados em tóxicos; III – aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; IV – os pródigos”.

Mencione-se, a propósito, que as alterações trazidas pelo Estatuto no que toca o regime das incapacidades rompeu uma tradição, vez que, historicamente, no direito brasileiro, o portador de transtorno mental sempre foi tratado como incapaz. É verdade que com algumas variações de termos e grau, mas assim o foi nas Ordenações Filipinas, no Código Civil de 1916 e também no atual Código Civil de 2002, sob o argumento de proteção, em prejuízo da sua autonomia e, por vezes, da sua dignidade.

Comentando a boa iniciativa do Estatuto em conferir capacidade para a pessoa com deficiência psíquica ou intelectual o professor Nelson Rosenvald destaca que “Não se pode mais admitir uma incapacidade legal absoluta que resulte em morte civil da pessoa, com a transferência compulsória das decisões e escolhas existenciais para o curador. Por mais grave que se pronuncie a patologia, é fundamental que as faculdades residuais da pessoa sejam preservadas, sobremaneira às que digam respeito as suas crenças, valores e afetos, num âmbito condizente com o seu real e concreto quadro psicofísico. Ou seja, na qualidade de valor, o status personae não se reduz à capacidade intelectiva da pessoa, posto funcionalizada à satisfação das suas necessidades existenciais, que transcendem o plano puramente objetivo do trânsito das titularidades”. 2

Esta nova teoria das incapacidades que passa a vigorar com o Estatuto da Pessoa com Deficiência requer cautela destacada por parte dos notários e registradores quando da prática dos atos de sua competência. Nesse ponto, os atos, fatos ou negócios jurídicos que são levados às serventias notariais e de registro devem passam por cautelosa qualificação jurídica, haja vista os inúmeros efeitos jurídicos decorrentes das modificações promovidas pelo Estatuto.

Averiguando-se alguns reflexos imediatos do novo regime jurídico das incapacidades, de pronto, pode-se inferir que todas as pessoas que foram interditadas em razão de enfermidade ou deficiência mental passam, com a entrada em vigor do Estatuto, a serem consideradas, ope legis, plenamente capazes. Vale dizer, tratando-se de lei que versa sobre o estado da pessoa natural, a disposição normativa tem eficácia e aplicabilidade imediata.

Em outras palavras, será desnecessária qualquer medida judicial tendente ao levantamento da interdição decretada com arrimo na legislação civil moribunda. Todavia, providência fundamental a ser promovida será a averbação do levantamento da interdição no “Livro E” do Registro Civil das Pessoas Naturais em que esta foi inscrita. Apesar de não ter este ato natureza desconstitutiva – vez que a cessação da incapacidade dar-se-á, automaticamente, com a entrada em vigor da Lei nº 13.146/2015 – tal averbação garante, além da primazia da realidade nos registros públicos, a adequada publicidade da cessação da incapacidade daquela pessoa, evitando-se, assim, possíveis prejuízos ao próprio registrado e a terceiros. Somente com esta averbação permitir-se-á que terceiros tenham efetivo conhecimento de que aquele individuo não é mais interdito e goza de plena capacidade, garantindo-se segurança jurídica aos atos e negócios jurídicos futuros.

Outra consequência jurídica importante a ser considerada refere-se ao fato de que sendo o deficiente, o enfermo ou o excepcional pessoa plenamente capaz, não poderá, de regra, ser representado nem assistido, ou seja, deverá praticar pessoalmente os atos da vida civil.

Veja, também, que sendo o deficiente, o enfermo ou o excepcional pessoa plenamente capaz, a prescrição e a decadência correrão normalmente contra ele. Atualmente, lembre-se, por força dos artigos 198, I e 208 do CC, a prescrição e a decadência não correm contra os absolutamente incapazes.

No campo do direito dos contratos, e aqui a atenção dos notários deve ser destacada, sendo o deficiente, o enfermo ou o excepcional pessoa plenamente capaz, para receber doação terá de exprimir sua vontade, o que, atualmente, não é necessário em sendo absolutamente incapaz (art. 543 do CC). Hoje, a doação se aperfeiçoa sem que este manifeste sua vontade (há uma presunção da vontade). Com o Estatuto, essa pessoa, plenamente capaz, precisará aceitar a doação.

Na seara da responsabilidade civil, sendo o deficiente, o enfermo ou o excepcional pessoa plenamente capaz passará a responder exclusivamente com seus próprios bens pelos danos que causar a terceiros, afastando-se a responsabilidade subsidiária criada atualmente pelo artigo 928 do Código Civil. Recorde-se, a propósito, que pela sistemática do Codex, quem responde precipuamente pelos danos causados pelos incapazes são seus representantes legais (pais, tutores e curadores).

Relevantíssima alteração promovida pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência ocorrerá no direito de família. O Estatuto revoga o inciso I do artigo 1.548 do Código Civil que prevê ser nulo o casamento do “enfermo mental sem o necessário discernimento para os atos da vida civil”. Nesse espírito, com a entrada em vigor do diploma em testilha, pessoas com deficiência poderão constituir família, seja matrimonial, convivencial ou qualquer outro arranjo familiar que lhes aprouver. Sobre o tema, o art. 6º do Estatuto traz regras fundamentais quanto ao direito de família envolvendo pessoas com deficiência. Diz o dispositivo: “A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para: I –casar-se e constituir união estável; II – exercer direitos sexuais e reprodutivos; III –exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; IV – conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; V – exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e VI – exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas”.

Nesta seara, concordamos com a posição do professor José Fernando Simão: “Nesta questão o Estatuto merece elogios. Não é toda a deficiência que retira o discernimento para a tomada de decisão de constituição de família e de sua formação. Contudo, há de se salientar, que mesmo com a mudança legal, a decisão de se casar é um ato de vontade. Se a vontade não existir em razão da deficiência, inexistente será o casamento”. 3

Notadamente, quanto à nova regra que deixa de considerar como nulo o casamento doenfermo mental sem o necessário discernimento para os atos da vida civil, é de importante observação para os registradores civis das pessoas naturais a questão de direito intertemporal que envolve os casamentos ocorridos antes e depois da entrada em vigor do Estatuto. Assim, caso tenha ocorrido um casamento de uma pessoa deficiente, sem discernimento para os atos da vida civil, antes da vigência do Estatuto, este casamento nasceu nulo por afronta ao inciso I do artigo 1.548 do CC e não se torna “válido” pela alteração legislativa. Prevalece, pois, a lei do momento da celebração do casamento. Destarte, os enfermos mentais sem o discernimento para os atos da vida civil estarão aptos ao matrimônio a partir da entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência, em janeiro de 2016.

De outro lado, ressalta-se, ainda, que o Estatuto não alterou a redação do artigo 1.550 do Código Civil que trata da anulabilidade do casamento. Rememore-se, aliás, que em seu inciso IV, o dispositivo prevê que “é anulável o casamento do incapaz de consentir ou manifestar, de modo inequívoco, o consentimento”. Assim, pode-se concluir que o casamento do deficiente que for incapaz de consentir ou manifestar de modo inequívoco o seu consentimento pode ser anulável, mas não nulo.

Quadra anotar, por oportuno, que o Estatuto acrescenta um § 2º ao art. 1.550, admitindo que “A pessoa com deficiência mental ou intelectual em idade núbia (sic) poderá contrair matrimônio, expressando sua vontade diretamente ou por meio de seu responsável ou curador”.

Neste dispositivo andou mal o legislador. Sem falar do equívoco com a língua portuguesa (já que o termo correto seria “idade núbil”), permitiu-se que a vontade de casar seja manifestada pelo curador do deficiente. Ora, a vontade é elemento essencial ao casamento e ninguém se casa senão por sponte propria. Admitir a manifestação da vontade pelo curador carece de lógica jurídica e contraria a natureza personalíssima do casamento. A escorregada legislativa aqui foi tamanha que houve ululante contradição com o próprio art. 85 do Estatuto, que determina a atuação do curador do deficiente apenas e tão somente para os atos de natureza patrimonial e negocial.

Por último, mas não menos importante, convém analisar o instituto da curatela, redesenhado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência. Em razão do seu artigo 84, § 1º, o Estatuto possibilita que “Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei”. Traz, assim, situação jurídica inovadora no direito brasileiro: a curatela de pessoa capaz. A orientação do Estatuto é clarividente no sentido de que mesmo com a curatela, não temos uma pessoa incapaz, isto é, a pessoa com deficiência é dotada de capacidade legal, ainda que se valha de institutos assistenciais para a condução da sua própria vida.

No sistema atual, o curador representa os absolutamente incapazes e assiste os relativamente incapazes. Com a vigência do Estatuto, haverá a categoria de pessoas capazes sob curatela. Apesar de elogiosa a previsão legislativa, há um desafio a ser enfrentado: qual seria a função do curador do deficiente, representá-lo ou assisti-lo?

Como se trata de pessoa capaz, não há no sistema uma resposta a essa indagação. Parece razoável responder à pergunta com o art. 85, § 2º, do Estatuto que sentencia: “A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado”. Assim, depreende-se que caberá ao juiz definir se o curador do deficiente, que prossegue sendo capaz, deverá representá-lo ou assisti-lo. De todo modo, deve ser observada a limitação da curatela prevista no caput do artigo 85, ou seja, “a curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial”.

Gize-se que a questão proposta é de grande relevância para o tabelionato de notas, no âmbito de instrumentalização pelos notários da vontade das partes, mormente na qualificação notarial do ato a ser confeccionado.

De mais a mais, para a devida publicidade da decisão judicial que concede a curatela a deficiente é essencial que seja ela inscrita no registro civil das pessoas naturais, sendo correto, em nosso sentir, que seja averbada no registro natalício daquele indivíduo. Nessa ordem de ideais, convém esclarecer que as averbações no registro civil das pessoas naturais são previstas em lei em rol não taxativo, justamente para que novas situações jurídicas que impliquem no estado da pessoa natural possam ingressar no registro público preservando a individualidade e dignidade humanas. Desta averbação deverá constar a especialização do ato judicial que concedeu a curatela, a qualificação do curador que estará legalmente habilitado para atuar em nome do deficiente, assim como os poderes nos quais estarão investidos o curador (assistência ou representação) e os seus limites.

Ainda sobre esta temática, deve-se perquirir qual a consequência jurídica da ausência de representação ou assistência na prática de um ato pelo deficiente que, por decisão judicial, deveria ser representado ou assistido?

A princípio, como o deficiente é pessoa capaz o ato é plenamente válido. Todavia, em nosso sentir, essa resposta torna a curatela do deficiente absolutamente inútil e não lhe garante a proteção jurídica que visa o Estatuto. Assim, a vontade do deficiente capaz sob curatela, manifestada de per si, não será suficiente para a prática dos atos da vida civil, devendo o operador do direito socorrer-se da aplicação analógica das disposições dos artigos 166, I e 171, I, ambos do Código Civil. Nesse peculiar, o contrato assinado exclusivamente por deficiente capaz, mas sob curatela, será nulo se o juiz fixar em sentença que o curador o representa (aplicação do art. 166, I do CC por analogia) ou anulável se fixar que o assiste (aplicação do art. 171, I do CC por analogia).

A rigor, na melhor hermenêutica jurídica, tratando-se de situações de invalidades – portanto, falamos de hipóteses excepcionais ao sistema que veicula como regra a capacidade civil – a interpretação deveria ser restrita, sem emprego de analogia. Ocorre, porém, que em virtude da aludida situação jurídica sui generis– que terá como fato gerador a entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência (“capazes sob curatela”) –, não se vislumbra outra saída, sob pena de se tornar inócuo o regime protetivo sugerido pelanovel legislação.

Quanto à legitimidade para a promoção da medida judicial que definirá a curatela de pessoa capaz, há imbróglio decorrente de verdadeiro “abalroamento legislativo”, oriundo da entrada em vigor de duas legislações que se aniquilarão: o Estatuto da Pessoa com Deficiência e o novo Código de Processo Civil.

Cumpre anotar, inicialmente, que cuidou o legislador para não falar de “interdição”, já que esta, naturalmente, só se refere a incapazes. Nesse contexto, a nova redação que o Estatuto dá ao caput do artigo 1768 do Código Civil suprimiu a palavra “interdição” e a substituiu por “processo que define os termos da curatela”.

O art. 1.768 passará a ter a seguinte redação: “O processo que define os termos da curatela deve ser promovido: I – pelos pais ou tutores; II – pelo cônjuge, ou por qualquer parente; III – pelo Ministério Público; IV – pela própria pessoa”. Os três primeiros incisos não sofreram qualquer alteração. Entrementes, o dispositivo ganha um quarto inciso, inovador pela possibilidade de a própria pessoa requerer a sua curatela.

A grande questão a ser observada é que o novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/15) expressamente revoga o artigo 1.768 do Código Civil (art. 1.072, II), que é alterado pelo Estatuto. Isso porque o novo CPC, em seu artigo 747, prevê quem pode promover a interdição: “ I – pelo cônjuge ou companheiro; I – pelos parentes ou tutores; III – pelo representante da entidade em que se encontra abrigado p interditando; III – pelo Ministério Público.

Analisando a vacância de ambas as leis, exsurge situação teratológica. A vacatio legis do Estatuto é de 180 dias, contados a partir da publicação (7 de julho de 2015); e a vacatio do novo CPC é de 1 ano (publicação em 17 de março de 2015). Desse modo, por conclusão, a vida do artigo 1768 do Código Civil, com a redação dada pelo Estatuto será curtíssima: em janeiro de 2016 entra em vigor o Estatuto e prevalece a nova redação do art. 1768, que será revogado em março de 2016, subsistindo, a partir de março, o artigo 747 do novo CPC. Notório, pois, o descuido do legislador neste ponto.

Diante do exposto, foi possível concluir que a entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência, enraizado nos objetivos traçados pela Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, promoverá a reconfiguração de clássicos institutos e teorias do direito privado em prol de uma nova realidade jurídica das pessoas com deficiência. A toda evidência, não foi objetivo dessas linhas esgotar todos as implicações do Estatuto no direito positivo, mas apenas uma convocação para reflexão dos proeminentes abalos sistêmicos que serão gerados em razão de sua entrada em vigor e, por consequência, a necessidade de cautela dos notários e registradores na prática dos atos de suas respectivas atribuições.

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Referências

1. Disponível em  http://jus.com.br/artigos/41381/o-estatuto-da-pessoa-com-deficiencia-e-o-sistema-juridico-brasileiro-de-incapacidade-civil.

2. Disponível na rede social do autor: facebook.com/nelsonrosenvald

3. Disponível em http://www.conjur.com.br/2015-ago-07/jose-simao-estatuto-pessoa-deficiencia-traz-mudancas#author

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* Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro é Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas do Município de Platina, São Paulo. Colunista do Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal. Contato: moacyrpetrocelli@hotmail.com
Fonte: Notariado | 26/08/2015.

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Artigo: Procedimentos para ação de usucapião ficam claros no novo CPC – Por César Fiuza


* César Fiuza

Revendo o manual Direito Civil – Curso Completo para a 18ª edição, deparei-me com várias questões, principalmente relativas ao novo Código de Processo Civil. Com sua edição e eventual entrada em vigor, surgem, de fato, algumas dúvidas, uma delas em relação à ação de usucapião, para cuja solução vem-se aqui contribuir.

Em primeiro lugar, é importante salientar que o novo CPC não prevê um procedimento especial para a ação de usucapião, apesar de a ela se referir nos artigos 246 e 259. Assim sendo, passa a referida ação a se inserindo dentre as ações de procedimento comum. Feitas essas observações preliminares, a ação se inicia com o requerimento do interessado (usucapiente) da citação da pessoa em cujo nome o imóvel estiver registrado, dos vizinhos confinantes e de todos os demais interessados, estes por edital. Embora o novo Código de Processo Civil não mencione estes últimos, entende-se ser necessário citá-los, tendo em vista o procedimento administrativo da Lei de Registros Públicos. Ora, se no procedimento notarial é necessário dar ciência a esses terceiros interessados, porque seria dispensável sua citação no processo judicial, como, aliás, o era no Código de Processo de 1973? De fato, segundo a nova redação da Lei 6.015/73, o oficial de registro de imóveis também promoverá a publicação de edital em jornal de grande circulação, onde houver, para a ciência de terceiros eventualmente interessados, que poderão se manifestar em 15 dias.

Reforçando o argumento, o próprio Código de Processo de 2015, no inciso I do artigo 259, dispõe que serão publicados editais na ação de usucapião. Ora, editais referentes a quê, senão à citação dos demais interessados? A primeira dúvida, portanto, a meu ver, deve ser solucionada nesse sentido, ou seja, eventuais terceiros interessados deverão ser citados por edital, como no procedimento notarial e no do antigo Código de Processo Civil.

Os vizinhos confinantes, a seu turno, serão citados pessoalmente, a não ser que se trate de imóvel em condomínio, quando se dispensa essa citação, de acordo com o parágrafo 3º do artigo 246 do Código de Processo Civil.

Serão, outrossim, cientificados por carta os representantes da União, do estado, do Distrito Federal e do município, para que manifestem, se for o caso, interesse na causa. Essa norma não consta do novo código. No entanto, o mesmo raciocínio relativo aos eventuais interessados deve prevalecer com referência à União, ao estado-membro, ao Distrito Federal e ao município. Ora, se no procedimento administrativo é necessário dar-lhes ciência, também o será no processo judicial, em que se deverá intimá-los, para que possam manifestar seu interesse fiscal ou outro que seja. Veja-se que o Código de 1973 referia-se aos representantes da Fazenda Pública, enquanto, atualmente, de acordo com a nova redação da Lei 6.015/73, o oficial de registro de imóveis dará ciência à União, ao estado, ao Distrito Federal e ao município, pessoalmente, por intermédio do oficial de registro de títulos e documentos, ou pelo correio, com aviso de recebimento, para que se manifestem, em quinze dias, sobre o pedido. Amplia-se, pois, a esfera de interesse dos entes públicos.

A questão do prazo, vez que omisso o novo CPC, deverá ser fixado pelo juiz, nos limites do razoável. De acordo com o parágrafo 1º do artigo 218, quando a lei for omissa, o juiz determinará os prazos em consideração à complexidade do ato. Quando a lei ou o juiz não determinarem prazo, as intimações somente obrigarão a comparecimento, depois de decorridas quarenta e oito horas.

Recorde-se que, segundo o artigo 219, na contagem de prazo em dias, estabelecido por lei ou pelo juiz, computar-se-ão somente os dias úteis. E segundo o artigo 230, o prazo para a parte, o procurador, a Advocacia Pública, a Defensoria Pública e o Ministério Público será contado da citação, da intimação ou da notificação, considerando-se dia do começo do prazo a data de juntada aos autos do aviso de recebimento, quando a citação ou a intimação for pelo correio; a data de juntada aos autos do mandado cumprido, quando a citação ou a intimação for por oficial de justiça; a data de ocorrência da citação ou da intimação, quando ela se der por ato do escrivão ou do chefe de secretaria; o dia útil seguinte à consulta ao teor da citação ou da intimação ou ao término do prazo para que a consulta se dê, quando a citação ou a intimação for eletrônica; a data de juntada do comunicado por carta precatória, rogatória ou de ordem ou, não havendo este, a data de juntada da carta aos autos de origem devidamente cumprida, quando a citação ou a intimação se realizar em cumprimento de carta; a data de publicação, quando a intimação se der pelo Diário da Justiça impresso ou eletrônico; o dia da carga, quando a intimação se der por meio da retirada dos autos, em carga, do cartório ou da secretaria.

Por fim, havendo mais de um intimado, o prazo para cada um é contado individualmente.

O procedimento da ação de usucapião será sempre o comum. Não há mais falar, assim, em procedimento sumário para o usucapião especial urbano, mesmo porque não há mais procedimento que não o comum e os especiais.

Em todos os atos do processo deverá intervir o representante do Ministério Público. Embora o Código de Processo não mencione especificamente a exigência de intervenção do MP na ação de usucapião, ela deverá ocorrer por cuidar-se de matéria de interesse social relevante, a teor do artigo 178, I.

Por fim, a sentença que reconhecer o usucapião continua tendo natureza meramente declaratória. Vale dizer que o juiz apenas reconhece e declara ter havido aquisição por usucapião. Não é a sentença que torna o requerente proprietário do imóvel. Ela tão somente declara a existência deste direito.

Prolatada que seja a sentença, deverá ser transcrita no Registro de Imóveis, a fim de dar ao ato publicidade e garantia contra terceiros. O registro terá, pois, efeito meramente declaratório e natureza administrativa, diferentemente do registro da escritura de compra e venda, que tem efeito constitutivo e natureza real.

Essas são, em síntese, as principais dúvidas que suscita o novo Código de Processo Civil, relativamente ao usucapião, as quais, espera-se, haja o presente ensaio contribuído para sanar.

* César Fiuza é advogado e professor na Universidade Federal de Minas Gerais, na PUC-MG e na Universidade FUMEC.

Fonte: Consultor Jurídico | 17/08/2015.

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