Testamento Vital

Por Miguel Reale Júnior

Em recente semi­nário na Faculda­de de Direito de Lisboa se abor­dou o tema do es­tranhamente de­nominado "testamento vital", relativo às disposições anteci­padas de vontade pelas quais se veda a sujeição a tratamentos obstinados ou inúteis quando em estado de saúde terminal. O conhecido jurista português José Oliveira Ascensão iniciou sua palestra lembrando como é difícil nos colocarmos diante das consequências de eventual derrame cerebral ou desastre automobilístico que nos deixe em estado vegetativo.

Com efeito, mais facilmente estabelecemos disposições testamentárias patrimoniais, que­rendo abraçar a vida depois da morte, para comandar o desti­no e a fruição de nossos bens, estendendo nosso poder de de­cisão para após a entrada no rei­no dos mortos. Mais difícil, po­rém, é enfrentarmos a possível realidade de desgraça em vida que nos leve a um estado de in­consciência. Para Sartre, a vida seria uma desconversa diante da morte inexorável. Viver a pensar a morte levaria a abdicar do gosto pela vida, razão por que fazemos de conta que não ocorrerá. Mas, mais do que a morte, afastamos com maior vi­gor de nossa mente a probabili­dade da desgraça de doença ter­minal que nos prostrará incons­cientes. Imaginar essa hipóte­se, todavia, passa a ser preciso, pois a arte médica consegue prolongar artificialmente a vi­da sem consciência, impondo-se a necessidade de antecipar­mos decisões para fazer prevale­cer nossa vontade quando inca­pacitados para expressá-la, no­meadamente no sentido de não querer uma vida vegetativa.

Como já mencionei em arti­go anterior, surgiu em abril de 2010 o novo Código de Ética Médica, que no artigo 41, parágrafo único, diz: "Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuida­dos paliativos disponíveis sem em­preender ações diagnosticas ou te­rapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal", deixan­do de adotar medidas terapêuti­cas inúteis, especialmente se contrariam a vontade e a auto­nomia do doente.

A questão agora é relativa às disposições antecipadas de tra­tamento, visando a suprir precavidamente a hipótese de o declarante se tornar incapacita­do, cabendo saber quais as con­dições para reconhecimento da validade e eficácia de tais ma­nifestações de vontade.

Em Portugal foi editada no ano passado a Lei n.° 25, regu­lando detalhadamente a maté­ria, enquanto no Brasil apenas veio a lume em 2012 a Resolu­ção n.° 1.995 do Conselho Fede­ral de Medicina (CFM). Pela re­solução, em face da relevância da autonomia do paciente no contexto da relação médico-paciente, reconhece-se válido o conjunto de desejos, prévia e ex­pressamente manifestados pe­lo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que es­tiver incapacitado de se expres­sar, livre e autonomamente.

Avancini, Fernandes e Goldim, em artigo na Revista do Hos­pital de Clínicas de Porto Alegre (2012, n.° 32, págs, 358-362), bem destacam que a prevalên­cia da vontade do paciente não significa uma destituição da au­toridade do médico, mas sim "O reconhecimento de compartilha­mento, de corresponsabilidade no mútuo reconhecimento de uma co-presença ética na relação médico-paciente Estatui também a resolução que nas decisões sobre cuida­dos e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de se comunicar o médico levará em consideração as diretivas in­formadas pelo representante designado para tal fim pelo doente. Essas diretivas anteci­padas, diz a resolução, prevale­cerão em face de qualquer ou­tro parecer não médico, inclusi­ve sobre os desejos dos familia­res, devendo ser elas registra­das pelo médico no prontuário. Essa determinação torna o médico o certificador único da vontade expressa, não sendo exigida nenhuma outra forma de comprovação do desejo do paciente, exceto essa anotação no prontuário, que constitui de­licada assunção de responsabi­lidade pelo médico.

A disciplina da resolução quanto ao conteúdo e à forma da diretriz antecipada de vonta­de é limitada e não poderia mes­mo deixar de ser genérica, reco­nhecendo apenas a validade da manifestação feita pelo pacien­te ou por seu procurador ao mé­dico que a certifica no prontuá­rio. A previsão normativa reves­te-se, portanto, de insuficiên­cia e de risco para o médico.

Pode-se tomar, então, como fonte a lei portuguesa, para regu­lar quem é capaz de dar a decla­ração – por exemplo, apenas a pessoa maior de idade, não in­terdita, reconhecidamente ca­paz de dar seu consentimento de forma livre e consciente. Cumpre também definir o obje­to possível de tais declarações, exemplificadamente, a determi­nação de não ser submetido a tratamento de suporte artificial das funções vitais ou a procedi­mento fútil, inútil ou desproporcionado no seu quadro clínico.

Quanto à forma, cabe saber se a declaração há de ser feita por instrumento público, se se­ria suficiente documento parti­cular com testemunhas, se bas­ta a explicitação da vontade por meio de redes sociais ou em e-mails para amigos. E como se resolve a hipótese de confronto entre o disposto pelo paciente e o dito pelo procurador quanto à adoção, por exemplo, da utiliza­ção de medicamento em fase de experimentação? É outra ques­tão a ser disciplinada.

Por fim, cumpre limitar no tempo a eficácia da declaração, pois uma manifestação feita aos 18 anos não poderia prevalecer aos 30, fixando-se prazo de ca­ducidade de cinco anos ou mais.

Para permanecer dono do próprio corpo mesmo incons­ciente, sem riscos de conflitos éticos no exercício da medicina ou perante o Ministério Públi­co, é de todo conveniente que a matéria seja objeto de lei, e não apenas de resolução do CFM, elaborando-se anteprojeto em discussão com médicos, juris­tas e especialistas em bioética.

Fonte: O Estado de S. Paulo. Publicação em 04/05/2013.


O regime de bens pode ser alterado?

O Juiz concederá o pedido de alteração de regime de bens, desde respeitado os requisitos elencados no artigo 1639 § 2º do Código Civil.

Por Debora May Pelegrim

O regime de bens no Direito Brasileiro era irrevogável até a edição do Código Civil de 2002, com a vigência a partir de janeiro de 2003, que alterou o dispositivo legal, passando a admitir a alteração do regime de bens após o casamento.

Portanto, em regra, o regime de bens escolhido pelos nubentes poderá ser alterado durante a vigência do casamento, desde que ressalvados os direitos de terceiros.

A modificação de regime de bens será sempre mediante autorização judicial, devendo ser pleiteada por ambos os cônjuges, pois a legislação proíbe que essa alteração seja pleiteada de forma litigiosa e através de pedido fundamentado.

Vale destacar que, apenas é permitido alteração do regime de bens, se analisados os requisitos, elencados no art. 1.639, § 2º do Código Civil, que assim dispõe:

Art. 1639 – Art. 1.639. É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver.

§ 2o É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros.

Em determinadas situações, a lei obriga os nubentes a submeterem-se ao regime de separação obrigatória de bens como é o caso em virtude de um ou ambos nubentes terem idade acima de 70 anos, nesse caso o Código Civil proíbe à alteração de regime de bens.

O Juiz concederá o pedido de alteração de regime de bens, desde respeitado os requisitos elencados no artigo 1639 § 2º do Código Civil. Desta forma a sentença que autoriza a mudança do regime de bens  passará a produzir efeitos a partir do transito em julgado o que chamamos de efeitos ex nunc, conservando-se, pois, a postura anterior determinada pelo pacto antenupcial, até a presente mudança sendo dispensável a lavratura de novo pacto, pois a decisão judicial se sobrepõe ao ato solene da escritura.

Esta decisão judicial também servirá para o Registro Civil em face da mudança no regime de bens anteriormente anotado na certidão de casamento e para o Registro de imóveis onde os nubentes tenham imóveis registrados em seus nomes.

Fonte: Direito Net. Publicação em 09/04/2013.


A locação no Registro de Imóveis

Por João Pedro R. S. de Arruda Camara[1]

O ingresso do contrato de locação no serviço registral imobiliário, mais especificamente na matrícula do imóvel locado, tem se mostrado um assunto espinhoso para proprietários, inquilinos, corretores e advogados que atuam no ramo imobiliário. Para que dúvidas e perplexidades sobre o tema sejam sanadas, é preciso uma pequena incursão sobre a sistemática registral brasileira e sua finalidade.

Em apertada síntese, pode-se dizer que o registro imobiliário serve para constituir direitos sobre imóveis, principalmente os chamados direitos reais (propriedade, superfície, servidão, usufruto, direito de promitente comprador, hipoteca, propriedade fiduciária, etc.), dando-lhes publicidade para que possam gerar todos os efeitos jurídicos que lhes são inerentes, mormente aqueles efeitos que atingem terceiros, isto é, que extrapolam a órbita dos direitos e deveres do transmitente e do adquirente do direito real.

A regra geral do art. 1.227 do Código Civil diz que os direitos reais sobre bens imóveis só nascem com o registro da aquisição no cartório de registro de imóveis competente. Essa regra é bastante conhecida no meio jurídico-imobiliário pelo seguinte ditado: “Quem não registra não é dono”. E esse ditado pode ser corretamente ampliado para “quem não registra não tem direito real sobre imóvel”, pois não só a propriedade como todos os outros direitos reais só se constituem com o registro.

Entretanto, existem ainda direitos que não são reais, mas mesmo assim a lei determina o seu registro ou averbação na matrícula do imóvel. Na verdade, tudo que de alguma forma tenha relevância jurídica para o imóvel e todos que com ele se relacionem, merece ingresso no registro imobiliário.

Nesse contexto, o legislador acertadamente identificou no contrato de locação dois direitos que merecem ser levados a registro. O primeiro é o direito do locatário à vigência da locação em caso de alienação do imóvel a terceiros; o segundo é a preferência do locatário à aquisição do imóvel, caso o proprietário deseje aliená-lo. Note-se que são dois direitos distintos; o primeiro está previsto no art. 8º da Lei de Locações de Imóveis Urbanos (Lei nº 8.245/91), e o seu registro está determinado no art. 167, inciso I, item 3 da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73); o segundo encontra-se disciplinado nos arts. 27 a 34 da Lei nº 8.245/91, e a sua averbação está positivada no art. 167, inciso II, item 16 da Lei nº 6.015/73.

Mas por que se praticar dois atos registrais se o contrato de locação é o mesmo? É que o sistema registral imobiliário brasileiro é de registro de direitos, e não de registro de títulos. Em outras palavras, o que se registra ou averba na matrícula do imóvel não é o contrato ou documento celebrado entre as partes (título), mas o direito ou direitos nele contidos. É por isso que ao ser levada ao Registro de Imóveis uma escritura de compra e venda com hipoteca, esta origina dois atos registrais na matrícula; um registro relativo à compra e venda (transmissão do direito de propriedade ao comprador); e outro referente à hipoteca (constituição do direito de hipoteca em favor do credor). Da mesma forma, um contrato de locação tem a possibilidade de originar dois atos distintos na matrícula do imóvel, relativos a dois direitos que não são reais, mas que produzem efeitos jurídicos diretamente sobre o imóvel e seu proprietário.

A cláusula do contrato de locação que impõe ao adquirente do imóvel locado o dever de honrar a locação até seu termo final é uma disposição que extrapola os limites dos direitos e obrigações das partes contratantes (locador e locatário), vinculando um terceiro estranho a essa relação contratual. É justamente por isso que a lei exige que o direito de vigência seja publicizado na matrícula do imóvel, a fim de que o pretenso comprador saiba, de antemão, que terá de respeitar a locação até o fim do prazo contratual.

Porém, conforme dispõe o art. 8º da Lei nº 8.245/91 – e aqui está o âmago da questão –, são necessários dois requisitos para que o direito de vigência seja constituído em favor do locatário. O primeiro é que no contrato haja cláusula expressa constituindo o direito de vigência (este direito não se presume, tem que ser instituído pela vontade das partes); e o segundo é que este direito esteja registrado[2] no cartório de registro de imóveis competente, na matrícula do imóvel locado. Sem esses dois requisitos o locatário não terá reconhecido o direito de permanecer no imóvel, caso este seja alienado. Por isso, o corretor, gestor imobiliário e/ou consultor jurídico deve orientar seu cliente (principalmente se este for o locatário) sobre as vantagens de se fazer o registro do direito de vigência, e, a contrário senso, sobre os riscos do não registro.

A título de exemplo, imaginemos uma locação comercial, cujo locatário investe em benfeitorias e publicidade, fixa seu ponto no imóvel, esperando ali permanecer por anos a fio, entretanto se esquece de incluir no contrato a cláusula de vigência em caso de alienação, ou pior, apesar de ter feito constar tal cláusula no contrato, deixou de registrá-lo. Vem o locador e vende o imóvel a um terceiro que não pretende manter a locação, e esse comprador denuncia a locação dentro do prazo de noventa dias contados da data do registro da aquisição. Nesse caso, não restará alternativa ao locatário, senão desocupar o imóvel no prazo de noventa dias a partir da denúncia. É o que diz a lei (art. 8º da Lei nº 8.245/91), corroborada por farta jurisprudência dos tribunais pátrios.

O direito de preferência à aquisição do imóvel (também chamado de preempção), diferentemente do de vigência, é conferido ao locatário independentemente de cláusula expressa no contrato, sendo inclusive inafastável por disposição contratual, porém é imprescindível a sua averbação na matrícula do imóvel para que possa ter eficácia.

Esse direito confere ao inquilino a preferência para adquirir o imóvel em igualdade de condições com terceiros, devendo o proprietário dar-lhe conhecimento de sua intenção de venda e condições do negócio, a fim de que ele possa exercer ou não seu direito.

Caso a preferência seja desrespeitada, o inquilino poderá reclamar perdas e danos ou haver para si o imóvel, se o requerer no prazo de seis meses, a contar do registro da venda na serventia imobiliária. Note-se aqui a repercussão na esfera jurídica de terceiro alheio ao contrato de locação, já que o comprador poderá perder o imóvel em favor do locatário, restando àquele apenas o direito de receber de volta o que pagou pelo imóvel. E isto é motivo mais que suficiente para justificar a determinação legal de averbação do direito de preferência na matrícula (art. 167, II, 16, da Lei nº 6.015/73). Vale lembrar, ainda, que se a escritura de compra e venda for lavrada por valor abaixo do realmente acertado pelas partes, configurando sonegação fiscal dos contratantes, o locatário só precisará depositar o valor indicado na escritura para haver para si o imóvel.

Enfim, o registro do direito de vigência da locação em caso de alienação, quando estipulado pelas partes, e a averbação do direito de preferência são medidas obrigatórias, nos termos do art. 169 da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73), e imprescindíveis para dar efetividade a tais direitos e, assim, conferir segurança não só a seus titulares como a terceiros que porventura tenham interesse no imóvel.

João Pedro R. S. de Arruda Camara
Registrador de Imóveis substituto em Brasília/DF
Especialista em Direito Registral Imobiliário
Coordenador da ENNOR

 


[1] João Pedro R. S. de Arruda Camara- Registrador de Imóveis substituto em Brasília/DF, Especialista em Direito Registral Imobiliário e Coordenador da ENNOR

[2] A Lei nº 8.245/91 fala em averbação do direito de vigência, contudo o art. 167, I, 3, da Lei nº 6.015/73 (Lei dos Registros Púbicos), c/c art. 576 do Código Civil de 2002, deixam claro que o ato a ser praticado é de registro.

Fonte: ANOREG/BR. Publicação em 03/04/2013.