1ªVRP/SP: Reconhecimento de firmas: autenticidade X semelhança

Processo n 0006438-82.2013.8.26.0100

Pedido de Providências

Therezinha Maluf Chamma – CP 26

Registro de imóveis pedido de providências averbação de caução locatícia (LL91, art. 38, § 1º) o reconhecimento de firmas dos figurantes e testemunhas pode fazer-se por semelhança ou por autenticidade, e não toca ao ofício do registro de imóveis exigir uma dessas formas em detrimento da outra pedido procedente.

CP 26

Vistos etc.

1. Therezinha Maluf Chamma pediu providências (fls. 02-06) a esta corregedoria permanente.

1.1. Em 2 de dezembro de 2012, com fundamento na Lei n. 8.245, de 18 de outubro de 1991 LL91, a requerente pedira (fls. 18) ao 5º Ofício do Registro de Imóveis de São Paulo (5º RISP) que averbasse, na matrícula 928 (fls. 52-53), uma caução locatícia prestada dada por Marli Maria Dias para garantir contrato de locação não-residencial de imóvel (fls. 07-16).

1.2. O 5º RISP negou a averbação, exigindo que a firma de todas as partes contratantes e das testemunhas fosse reconhecida por autenticidade, na forma da Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973 LRP73, art. 221, II, e do Cód. de Proc. Civil CPC73, art. 369 (fls. 24).

1.3. Segundo a requerente, essa exigência não teria lugar, porque a LRP73, art. 221, II, não imporia que o reconhecimento se fizesse por autenticidade.

1.4. Assim, outro remédio não teria restado à requerente, a não ser pedir a este juízo que, afastado o óbice posto pelo 5º RISP, mandasse proceder à averbação pretendida.

1.5. A requerente fez juntar documentos (fls. 07-59).

2. O 5º RISP prestou informações (fls. 61-65).

2.1. Segundo o ofício do registro de imóveis, a LRP73, art. 221, II, de fato não exigiria reconhecimento de firmas por autenticidade, mas tampouco diria ser bastante o reconhecimento por semelhança.

2.2. São frequentes as fraudes ligadas à prestação de falsas cauções imobiliárias, como demonstram o quotidiano do ofício de registro e da própria corregedoria permanente e a caução locatícia imobiliária prevista na LL91 é propícia para tanto, porque essa forma de garantia, não pressupondo tomada de posse, pode ser contratada clandestinamente, sem que dela tome conhecimento o dono. Ademais, tanto se disseminaram as fraudes, que para os negócios concernentes a veículos automotores sempre se exige o reconhecimento de firmas por autenticidade (Conselho Nacional de Trânsito, Resolução n. 282, de 26 de junho de 2008, art. 11; Departamento Nacional de Trânsito, Portaria n. 1.606, de 19 de agosto de 2005, arts. 13-14; Decreto Estadual n. 43.980, de 7 de maio de 1999; CGJ, proc. 118/99 e Provimento CG 20/1999).

2.3. É da tradição do direito brasileiro exigir que os instrumentos particulares sejam reconhecidos por autenticidade (Decreto n. 482, de 14 de novembro de 1846, art. 8º; Lei n. 1.237, de 24 de setembro de 1864, art. 8º, § 2º; Decreto n. 3.453, de 26 de abril de 1865, art. 77, § 2º; CC16, art. 851, verbis “conhecidas do oficial do registro”). Assim, os atos privados que ingressam no registro de imóveis entram na classe dos documentos autênticos, autenticidade que adquirem quando recebem o reconhecimento de firmas (Afrânio de Carvalho, Registro de Imóveis, 3ª ed., 1982, p. 292), segundo o CPC73, art. 369.

2.4. Há paridade lógica entre a regra de escritura pública como forma dos atos imobiliários (CC02, art. 108) e os requisitos das exceções (dentre elas, as cauções reais da LL91): assim, onde se admite o instrumento particular, é logicamente necessário dotar essa espécie de título de maior rigor no que respeita à autenticidade das firmas que nele se apõem. Se para a lavratura de escritura pública é imprescindível o comparecimento pessoal, com o reconhecimento da identidade e capacidade dos figurantes e de quantos hajam comparecido ao ato (CC02, art. 215, § 1º, II), então o reconhecimento por autenticidade é o mínimo que se pode exigir nos instrumentos particulares: é a “notarialização” desses instrumentos, conforme a tradição do direito nacional.

2.5. Finalmente, na Apelação Cível n. 6.779-0-SP (Rel. Des. Sylvio do Amaral j. 9.2.1987; parecer do juiz José Renato Nalini), acerca do reconhecimento de firmas em contrato de locação, ficou dito que a imperatividade do reconhecimento de firmas nos instrumentos particulares tem um fundamento racional i. e., a garantia da identidade das partes e que “os documentos públicos, em sentido estrito, são autênticos. Mas a autenticidade nos documentos particulares provém do reconhecimento de firma por tabelião. O reconhecimento autêntico está previsto no artigo 369 do Código de Processo Civil”.

3. O Ministério Público opinou pelo deferimento do pedido (fls. 67-68).

4. É o relatório. Passo a fundamentar e a decidir.

5. A LRP73, art. 221, II, determina que os escritos particulares tragam reconhecidas as firmas das partes e testemunhas.

Reconhecidas, diz, sem esclarecer se se trata de reconhecimento por autenticidade (Cód. de Proc. Civil, art. 369) ou por semelhança.

Cabe, então, perguntar: pode o registrador, em algum caso, ou alguns, ou todos, exigir ao interessado que o reconhecimento se faça por uma, ou por outra forma (na prática, por autenticidade, meio que é mais seguro)?

As razões do 5º RI são ponderáveis, porque se fundam, todas, na necessidade de segurança jurídica, que é a razão de ser do registro público. Entretanto, a construção esbarra em que ninguém está obrigado a fazer algo, senão em virtude de lei (Constituição da República CF88, art. 5º I), e ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus: se a própria lei não exigiu, expressis verbis, alguma forma específica de reconhecimento, é porque qualquer delas basta, e não se pode exigir o contrário.

Como diz a doutrina:

“14. Reconhecimento de firmas O reconhecimento de firmas, no sistema dos registros públicos, somente pode ser exigido pelo oficial, como no caso das escrituras particulares, por efeito de disposição expressa de lei” (PONTES, Walmir. Registro de Imóveis. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 148)

Responde-se, portanto: qualquer das duas formas de reconhecimento (por semelhança, ou por autenticidade), munida que está de fé pública, é eficaz, e não pode o registrador fazer com que os interessados empreguem uma, e não outra.

5.1. De fato conviria que no direito registral imobiliário do Brasil mais e mais se restringisse o cabimento dos instrumentos particulares, e que se tendesse a admitir, como títulos formais hábeis para ingresso, somente os atos notariais e judiciais, indubitavelmente mais seguros. Entretanto, assim não é, de maneira que, para bem ou para mal, o instrumento particular é admitido com largueza e, como dito, para a sua constituição não exigiu a lei, de modo expresso, o reconhecimento de firma por autenticidade.

5.2. Não se duvida que a caução locatícia se preste a artifícios e ardis, ou que os meios fraudulentos tanto se hajam disseminado, que certas autoridades administrativas (nomeadamente, as de trânsito) se tenham visto obrigadas a exigir maiores cautelas na documentação de certos negócios (como a transmissão de veículos automotores). O argumento, contudo, não é sólido o bastante para impor o reconhecimento por autenticidade aos instrumentos particulares de atos imobiliários: afinal, em matéria de muito maior gravidade qual seja, a viagem de menores ao exterior basta o reconhecimento de firma por semelhança (Resolução n. 131 do Conselho Nacional de Justiça, de 6 de maio de 2011, art. 1º, II e III, art. 2º, II, e art. 8º, § 1º). Vale dizer: os critérios pelos quais administrativamente se exija ou não o reconhecimento de firma por semelhança ou autenticidade são por demais casuísticos, e não bastam para fixar regra geral que sirva, no âmbito administrativo-registral, para conduzir uma interpretação normativa que justifique que aceitar somente o reconhecimento por autenticidade.

5.3. Ademais, ainda que a tradição de nosso direito possa exigir reconhecimento por autenticidade, de lege lata a exigência não existe.

5.4. Novamente, é realmente curioso (ut alia non dicam) que se tenha buscado munir a escritura pública de tanta segurança (cf. CC02, art. 215) e, ao mesmo tempo, se hajam aberto tamanhas exceções ao instrumento particular como título formal para ingresso no registro de imóveis. Infelizmente, porém, é esse o estado de coisas, e as opções legislativas não podem ser corrigidas na esfera administrativa.

5.5. Por fim, na Ap. Cív. n. 6779-0 foi dito que a autenticidade nos documentos particulares provenha do reconhecimento de firma por tabelião, e que o reconhecimento autêntico seja aquele previsto no CPC73, art. 369, está certo; contudo, para além disso a decisão não foi, e tanto essas afirmações foram meros obiter dicta, que em nenhum passo está excluída a eficácia do reconhecimento, por semelhança, das firmas de figurantes e testemunhas.

6. Do exposto, julgo procedente o pedido de providências deduzido por Therezinha Maluf Chamma e determino ao 5º Ofício do Registro de Imóveis de São Paulo a averbação, na matrícula 928, da caução locatícia estipulada no instrumento de fls. 07-16 destes autos.

Não há custas, despesas processuais nem honorários advocatícios.

Desta sentença cabe recurso administrativo, com efeito suspensivo, em quinze dias, para a E. Corregedoria Geral da Justiça (Cód. Judiciário de São Paulo, art. 246).

Oportunamente, arquivem-se.

P. R. I. 

Fonte: DJE/SP I 22/07/2013.

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TRT da 3ª Região: Turma declara ato de renúncia a usufruto vitalício de imóvel como fraude à execução

A fraude à execução se caracteriza como um ato de alienação (venda, troca ou doação), pelo devedor, de bens ou direitos, quando corre contra ele demanda judicial capaz de levá-lo ao estado de insolvência (este ocorre quando o devedor possui mais dívidas que bens para saldá-las).

Em um caso recentemente analisado pela 3ª Turma do TRT de Minas, foi comprovado que um casal de devedores de verbas trabalhistas vendeu imóvel gravado com usufruto mais de três anos após a propositura da ação judicial contra eles. A ação foi apresentada em 07/03/2006 e a renúncia ao usufruto, conforme escritura lavrada, se deu em 24/06/2009. Ficou também demonstrado que a penhora do usufruto ocorreu em 23/03/2009.

Segundo registrou a desembargadora Camilla Guimarães Pereira Zeidler, relatora do recurso, a execução já se arrasta por mais de quatro anos sem que o empregado tenha conseguido receber seu crédito. Nesse cenário, e com base na prova documental, a relatora destacou que o usufruto constituía o único bem do qual dispunham os devedores para o cumprimento da obrigação que lhes foi imposta. Desse modo, a desembargadora verificou de forma expressa que a renúncia a esse direito e ao potencial dele oriundo configuram a fraude à execução.

"Se ao tempo da transferência do direito ao usufruto aos nus proprietários não havia qualquer outro bem da empresa ou de seus sócios passível de penhora, se não havia contas correntes em que se pudesse proceder ao bloqueio de valores, se o credor não propôs qualquer forma viável para o cumprimento do dever que lhe é imposto pela decisão atingida pela eficácia da coisa julgada, está estampada a fraude à execução que autoriza a declaração da ineficácia do ato", frisou a relatora, esclarecendo ser cristalina a incidência do disposto no artigo 593 do CPC.

Por fim, a relatora comungou do entendimento adotado pelo juízo de 1º grau no sentido de ser inócua a discussão acerca da impenhorabilidade do bem de família, que assim dispôs: "Por outro lado, é imprópria a tentativa de se discutir questão relativa a impenhorabilidade do bem de família, visto que não se está alienando a propriedade do bem, incontroversamente de titularidade do embargante, tendo a penhora recaído apenas sobre o usufruto do imóvel e seus acessórios (frutos e rendimentos)".

Sob esses fundamentos, a relatora manteve a decisão atacada, entendimento esse que foi acompanhado pelos demais julgadores da Turma.

A notícia refere-se ao seguinte processo: 0000664-42.2013.5.03.0042 AP 

Fonte: TRT da 3ª região I 04/10/2013.

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Inventário e Partilha administrativos havendo testamento caduco ou revogado

* Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza

1) A controvérsia.

O art. 982 do Código de Processo Civil foi alterado pela Lei 11.441/07, passando a ter a seguinte redação: “Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial; se todos forem capazes e concordes, poderá fazer-se o inventário e a partilha por escritura pública, a qual constituirá título hábil para o registro imobiliário”.

Portanto, com o advento da Lei 11.441/07, permitiu-se o inventário e a partilha por escritura pública, a critério dos interessados, desde que todos sejam capazes e concordes, e não haja testamento.

Inicialmente prevaleceu uma interpretação literal, pela qual a existência de testamento, ainda que caduco ou revogado[1], impedia a lavratura de escritura pública de inventário e partilha.

Com o decorrer do tempo, tal interpretação passou a ser questionada. Seria realmente a vontade do legislador impedir a lavratura da escritura no caso de testamentos caducos ou revogados? 

Esta a controvérsia que abordaremos neste breve estudo.

2) A mens legis.

Não podemos nos afastar da mens legis. O Código Civil português, em seu art. 9º, cuida da interpretação da lei nos seguintes termos:

“Artigo 9º – (Interpretação da lei)

1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.

O deputado Maurício Rands[2], ao apresentar seu relatório à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, quanto ao projeto que deu origen à Lei 11.441/07, afirmou:

“A proposta analisada tem como intuito simplificar a realização da partilha consensual por meio de escritura pública, desde que envolva herdeiros capazes, dispensando esse procedimento da homologação judicial. A atuação do Poder Judiciário nos casos mencionados, via de regra, limita-se à ratificação do acordo previamente firmado entre as partes. Na partilha consensual envolvendo herdeiros capazes inexiste conflito, o que torna a intervenção judicial dispensável, uma vez que os requisitos necessários para a realização de transação entre as partes estão presentes. Assim, ao dispensar a necessidade de homologação judicial nesse procedimento, o ordenamento não prejudica nenhuma das partes, pelo contrário, contribui para que elas formalizem a partilha de modo mais célere e simplificado (…) Dessa forma, recorremos à proposta inserida no ‘Pacto de Estado em Favor de um Judiciário mais Rápido e Republicano’, documento assinado pelos representantes dos três poderes e que contém as diretrizes e projetos que norteiam o processo de reforma do nosso sistema jurisdicional, para formular nova proposta para o projeto analisado, de modo a ampliar as mudanças objetivadas. No substitutivo proposto, a alteração proposta para o artigo 2.015 do Código Civil[3] é substituída pela alteração da redação do artigo 982 do Código de Processo Civil, cujo texto passa a permitir a realização do inventário e da partilha consensuais por escritura pública, desde que os interessados sejam capazes e não haja testamento. Importante explicar que a restrição imposta à realização do procedimento extrajudicial nos casos em que exista testamento, deve-se ao fato de que a prática forense tem demonstrado que a interpretação desses documentos geralmente suscita grandes divergências entre os herdeiros, o que aumenta consideravelmente as chances de uma partilha consensual, posteriormente, transformar-se litigiosa, o que inutilizaria os atos praticados no procedimento extrajudicial”.

Verifica-se que o projeto inicial foi ampliado[4], nascendo a Lei 11.441/07 dentro da proposta inserida no ‘Pacto de Estado em Favor de um Judiciário mais Rápido e Republicano’. A ampliação do projeto inicial não pode ser olvidada, mesmo porque motivada pelos objetivos do referido Pacto. Resta claro que a intenção foi afastar do Poder Judiciário o que pode ser solucionado por outras formas, o que deve ser considerado na interpretação da lei modificadora.

Dessa forma, foram possibilitados o inventário e a partilha administrativos, sem restrições quanto ao monte partível, não havendo incapazes e testamento, justificando o relator Maurício Rands a restrição quanto ao testamento, que reproduzimos por ser o ponto de interesse: “Importante explicar que a restrição imposta à realização do procedimento extrajudicial nos casos em que exista testamento, deve-se ao fato de que a prática forense tem demonstrado que a interpretação desses documentos geralmente suscita grandes divergências entre os herdeiros, o que aumenta consideravelmente as chances de uma partilha consensual, posteriormente, transformar-se litigiosa, o que inutilizaria os atos praticados no procedimento extrajudicial”.

O legislador, portanto, restringiu a lavratura da escritura pública em razão de grandes divergências na interpretação dos testamentos pelos herdeiros. Aqui o ponto nodal: só haverá divergência na interpretação dos testamentos se estivermos diante de um testamento válido e eficaz. Na hipótese de testamento revogado ou caduco, inviável qualquer discussão sobre sua interpretação, posto que o testamento já não estará apto a produzir qualquer efeito, não se justificando qualquer restrição à realização do procedimento administrativo.

O espírito da Lei 11.441/07, no momento histórico em que foi editada, não era outro senão simplificar, tornar mais célere, facilitar o inventário e a partilha. Interpretar literalmente o disposto no art. 982 da lei processual civil não atende à intenção da lei.

O Ministro de Estado da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, ao encaminhar ao Presidente da República o Projeto de Lei que redundou na Lei 11.441/07, afirmou que “sob a perspectiva das diretrizes estabelecidas para a reforma da Justiça faz-se necessária a alteração do sistema processual brasileiro, com o escopo de conferir racionalidade e celeridade ao serviço de prestação jurisdicional, sem, contudo, ferir o direito ao contraditório e à ampla defesa. De há muito surgem propostas e sugestões, nos mais variados âmbitos e setores, de reforma do processo civil. Manifestações de entidades representativas, como o Instituto de Direito Processual Brasileiro, a Associação dos Magistrados Brasileiros, a Associação dos Juízes Federais do Brasil, de órgãos do Poder Judiciário, do Poder Legislativo e do próprio Poder Executivo são acordes em afirmar a necessidade de alteração de dispositivos do Código de Processo Civil e da Lei de Juizados Especiais, para conferir eficiência à tramitação de feitos e evitar a morosidade que atualmente caracteriza a atividade em questão. A proposta prevê a possibilidade de realização de inventário e partilha por escritura pública, nos casos em que somente existam interessados capazes e concordes. Dispõe, ainda, a faculdade de adoção do procedimento citado em casos de separação consensual e de divórcio consensual, quando não houver filhos menores do casal. Entendo não existir nenhum motivo razoável de ordem jurídica, de ordem lógica ou de ordem prática que indique a necessidade de que atos de disposição de bens, realizados entre pessoas capazes – tais como os supracitados, devam ser necessariamente processados em juízo, ainda mais onerando os interessados e agravando o acúmulo de serviço perante as repartições forenses” (grifos nossos)[5].

3) O notário como profissional do direito.

Tive oportunidade de abordar, por ocasião da edição da Lei 11.441/07, a qualidade de profissionais do direito dos notários e registradores.

Naquela oportunidade[6], em texto intitulado “A Lei 11.441/07 e um novo tempo para afirmar a independência jurídica dos tabeliães e registradores, profissionais do direito”, afirmei que:

“A Lei 8.935, de 18 de novembro de 1.994, ao regulamentar o art. 236 da Constituição Federal definiu os tabeliães e registradores como profissionais do direito.

Dispõe o art. 3° da referida lei: 

“Notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro” (grifo nosso). 

Passados mais de treze anos (à época da publicação do texto) de vigência da lei lamentavelmente ainda vemos alguns tabeliães e registradores agindo como simples amanuenses e, especialmente, uma gama de pessoas que não os vêem como verdadeiros profissionais do direito. Infelizmente dentre tais pessoas muitas vezes nos deparamos com integrantes do Poder Judiciário, incumbido pela Carta Magna da fiscalização dos atos praticados por tabeliães e registradores (§1° do art. 236, in fine), sem que tal poder, contudo, importe em subordinação hierárquica no exercício das funções. O limite do poder de fiscalização dos atos pelo Judiciário é ainda ponto nebuloso no exercício da atividade, agravado pela ausência de regulamentação de normas legais relativas à atividade e pela existência de custos, agregados aos emolumentos, que se destinam ao Poder Judiciário e outras entidades, fazendo vicejar um cipoal de normas administrativas que servem de antolhos aos tabeliães e registradores. 

O momento, no entanto, é de afirmação da qualidade conferida pela Lei 8.935/94. O Poder Legislativo tem reconhecido tal qualidade e cabe aos tabeliães e registradores se fazerem respeitar como profissionais do direito. Não devem aceitar a imposição de fórmulas; devem exercer efetivamente as funções notariais e registrais. Claro que respeitando a fiscalização dos atos pelo Poder Judiciário e suas decisões, mas jamais deixando de analisar sob o foco jurídico os atos em que são chamados a intervir[7].

A independência jurídica dos tabeliães e registradores não é novidade na doutrina internacional, e o ‘modelo da independência jurídica do registrador e do notário, como foi antecipado, ajusta-se, entre nós, ao direito posto: notário e oficial de registro são profissionais do direito, dotados de fé pública (art. 3°, da Lei 8.935/1994), gozando de independência no exercício de suas atribuições’ (art. 28, da Lei cit.).[8]

E em que contexto vem se dando a valorização da qualidade de profissionais do direito? Dentro das medidas legislativas na busca de soluções mais céleres, simples, e menos onerosas para a solução de determinadas questões, antes de exclusiva atuação do Poder Judiciário.

Exemplificando: a Lei 9.492/97, que regulamenta os serviços concernentes ao protesto de títulos e outros documentos de dívida, ao alargar significativamente o rol dos documentos que podem ser apresentados ao tabelionato de protestos; a Lei 9.307/96, que dispõe sobre a arbitragem, que significa a resolução do litígio por meio de árbitros, com a mesma eficácia da sentença judicial; a Lei 9.514/97, ao instituir a alienação fiduciária de coisa imóvel e a solução extrajudicial em caso de descumprimento do contrato (dando mais celeridade à recuperação do crédito e, portanto, mais eficácia à garantia); a Lei 10.931/04, que alterou o art. 213 da Lei 6.015/73 permitindo a retificação administrativa do registro imobiliário; e finalmente a Lei 11.441/07, que alterou o Código de Processo Civil para permitir que o inventário e a partilha, assim como a separação e o divórcio, na inexistência de incapazes, se façam por escritura pública.

Verifica-se, portanto, uma tendência de afastar do Poder Judiciário conflitos que comportem outro meio de solução. A morosidade do Poder Judiciário, já bastante assoberbado, e o custo do acesso à justiça incrementam as atividades que permitem aos interessados ver suas questões decididas sem intervenção do Poder em foco, que deve ser reservado para decidir conflitos em que seu atuar seja imprescindível.

A atuação do tabelião, seja de notas ou de protesto, e do registrador imobiliário, vem se expandindo, como se vê pela evolução legislativa. Reconhece o legislador federal serem os profissionais adequados, em razão de sua tradição e de sua independência jurídica, a colaborar na solução mais célere de diversas questões, sem que se prescinda da segurança jurídica e da eficácia.

Entretanto, editada a Lei 11.441/07, que valorizou enormemente a profissão dos tabeliães e registradores, vivemos momentos de perplexidade. Muitos aguardaram orientações das Corregedorias para aplicação da lei; algumas Corregedorias, extrapolando suas funções, se movimentaram para expedir normas, chegando a do Estado do Acre a criar modelos a serem seguidos.

Como profissionais do direito, com independência jurídica, devem tabeliães e registradores praticar os atos como autorizados pela lei. Não dependem de qualquer orientação ou autorização administrativa, nem a elas estão sujeitos. Em verdade, tabeliães e registradores não podem deixar de praticar os atos solicitados pelos interessados que preencham os requisitos legais, cabendo-lhes dar a correta interpretação jurídica aos dispositivos legais aplicáveis. São ônus do exercício da função. O que devem, e efetivamente fazem, é debater e analisar os avanços legislativos em seus institutos de estudo, para que atuem sempre com mais segurança.

Diante da inexorável conclusão de que as circunstâncias favorecem a afirmação da qualidade de profissionais do direito, como tais devem agir todos os tabeliães e registradores, atuando incontinenti diante de qualquer alteração legislativa que alargue o âmbito de suas atribuições.

Encerro transcrevendo pensamento do Des. Ricardo Dip, em Registro de Imóveis[9]: ‘decidir que futuro haverá para as instituições do registro e das notas é escolher já, como faz quem se adverte responsável pelo tempo que passa, se essas instituições detêm liberdade jurídica para sua atuação profissional. Sem essa liberdade, correm risco de com ela morrerem a autonomia de vontades e a propriedade particular. Nisso há também um risco da decisão, mas esse risco é o que valoriza a liberdade’. E na esteira da Lei 11.441/07 devemos já afirmar e confirmar a independência jurídica dos tabeliães e registradores, profissionais do direito”.

O texto produzido há mais de cinco anos, e parcialmente ora reproduzido, ainda é atual. Tabeliães têm se furtado a lavrar escrituras de inventário e partilha sob alegação de que testamentos revogados e caducos impedem a prática do ato. S.M.J., cuida-se de interpretação equivocada, apenas literal e dissociada do momento que vivemos, dando azo, ainda, a que nos tachem de meros amanuenses, quando somos profissionais do direito amplamente habilitados a verificar se um testamento está revogado ou caducou, no exercício de nossa atividade jurídica.

4) O correto entendimento do Judiciário paulista.

A Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo editou o Provimento CG Nº 40/2012, alterando as Normas de Serviço para manifestar expressamente o entendimento que ora se busca sustentar. 

O mencionado Provimento alterou o Capítulo XIV das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, que atualmente estabelece: “129. É possível a lavratura de escritura de inventário e partilha nos casos de testamento revogado ou caduco ou quando houver decisão judicial, com trânsito em julgado, declarando a invalidade do testamento. 129.1. Nessas hipóteses, o Tabelião de Notas solicitará, previamente, a certidão do testamento e, constatada a existência de disposição reconhecendo filho ou qualquer outra declaração irrevogável, a lavratura de escritura pública de inventário e partilha ficará vedada e o inventário far-se-á judicialmente” (grifo nosso).

A manifestação da Corregedoria, a meu ver, seria desnecessária, pois ao tabelião cabe interpretar a lei e aplicá-la. Contudo, é muito salutar, pois gera um ambiente de segurança para aqueles que temem assumir os riscos da interpretação, sejam tabeliães ou registradores a quem os títulos vierem a ser apresentados para acesso ao fólio real.

Com efeito, a hipótese de invalidade do testamento, elencada pela Corregedoria paulista, deve ser precedida de decisão judicial, mas no caso de testamento revogado ou caduco, é desnecessária qualquer manifestação judicial, sendo viável a lavratura da escritura, cabendo ao tabelião verificar a ocorrência da revogação ou a caducidade.

A doutrina já se manifesta no mesmo sentido. Christiano Cassettari[10] afirma, com propriedade, que “quando o legislador menciona, ‘havendo testamento’ se procederá ao inventário judicial, isso deverá ocorrer somente quando houver previsão expressa sobre disposição patrimonial que impeça a aplicação da sucessão legítima, alterando as regras de transferência da propriedade aos herdeiros legítimos, sob pena de chegarmos ao cúmulo de impedir que o inventário extrajudicial ocorra, por exemplo, no caso de o testador ter feito um testamento para revogar um anterior, para que em sua sucessão sejam aplicadas as regras da sucessão legítima”. O autor traz à baila situação que já enfrentei na prática notarial: clientes que, tomando conhecimento da Lei 11.441/07, decidiram revogar o testamento para que seus sucessores não precisem recorrer ao Judiciário, para que possam processar a sucessão administrativamente, entendendo que, com a revogação, por ocasião do óbito não terão testamento válido e eficaz a impedir a lavratura de escritura de inventário e partilha.

Conclui Christiano Cassettari, comentando a nova redação das Normas da Corregedoria paulista: “acreditamos que essa regra em breve estará nas normas de serviços de todos os estados brasileiros, para que a população possa se beneficiar dela, permitindo que nesses casos o inventário possa ser feito, também, em cartório”.

Anote-se, por fim, a existência de decisões judiciais admitindo a escritura pública de inventário e partilha ainda que exista testamento válido e eficaz (p. ex., 7ª Vara da Família e Sucessões, Comarca de São Paulo – Proc. nº: 0052432-70.2012.8.26.0100). São decisões de vanguarda que certamente inspirarão o legislador a avançar. Sendo todos capazes e concordes com os termos do testamento, inclusive com eventuais gravames impostos pelo testador, o que justifica impedir o inventário e a partilha administrativos? Vale salientar que muitas pessoas evitam o inventário e a partilha com doações, impondo por vezes cláusulas restritivas, o que não encontra qualquer óbice na legislação. Não deveria haver impedimento, também, que os beneficiários do testamento promovessem o inventário e a partilha administrativamente, como já afirmado.  

5) Conclusão.

Diante de todo o exposto, entendo que a lavratura das escrituras públicas de inventário e partilha não pode ser obstada pela existência de testamento revogado ou caduco, para que não se fira o espírito da lei. Acrescente-se a hipótese relacionada pela Corregedoria paulista: quando houver decisão judicial, com trânsito em julgado, declarando a invalidade do testamento.

Nas hipóteses ventiladas, não faz qualquer sentido remeter os interessados, necessariamente, para a via judicial. Havendo testamento válido e eficaz, o inventário e a partilha judiciais são precedidos do procedimento previsto no art. 1.125 e seguintes do Código de Processo Civil, de abertura, registro e cumprimento do testamento, no qual o magistrado, após oitiva do Ministério Público, mandará cumprir o testamento “se lhe não achar vício externo, que o torne suspeito de nulidade ou falsidade (art. 1.126)”. Se o testamento foi revogado ou caducou, não se aplicará o referido procedimento especial de jurisdição voluntária, pois inexiste testamento a cumprir. O que deverá o magistrado mandar cumprir? Nada a cumprir quanto a disposições de última vontade, pois a sucessão obedecerá às regras da sucessão legítima. Assim, diante de um testamento revogado ou caduco, em juízo somente se processam o inventário e a partilha, como se testamento não houvesse (e efetivamente não há testamento eficaz, apto a produzir efeitos). Portanto, a intervenção judicial somente se dará no processamento do inventário e da partilha e, neste caso, a lei faculta às partes optar pela via administrativa, não havendo incapazes.

Dessa forma, analisando os casos concretos e estando seguros da revogação ou da caducidade, devem os tabeliães lavrar as escrituras independentemente de qualquer autorização das corregedorias, pois o fundamento para a lavratura está na Lei 11.441/07, e não em qualquer ato administrativo, assim como devem os oficiais de registro acolhê-las no fólio real. Não obstante, a edição de normas pelas corregedorias é salutar, pois colabora para a uniformização do entendimento. Ainda vivemos um momento de transição no qual alguns notários e registradores temem assumir o papel reconhecido em lei de profissionais do direito, necessitando de apoio em regras administrativas.

As mudanças legislativas muitas vezes são tímidas, o que certamente impediu que, por ocasião da edição da Lei 11.441/07, se autorizasse a lavratura de escrituras de inventário e partilha mesmo havendo testamento válido e eficaz, na hipótese de herdeiros capazes. Certamente vamos avançar nesse sentido.

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[1] “A caducidade ocorre quando há um esvaziamento da deixa testamentária ou porque o bem já não mais existe (pouco importando a causa, desaparecimento, alienação, perda), ou porque não existe o sujeito (herdeiro ou legatário) para suceder (…) Do mesmo modo, há caducidade se os herdeiros tiverem falecido antes do testador; se a condição da cláusula frustar-se (não tiver mais possibilidade de implemento) ou se os instituídos sob condição suspensiva falecerem antes do implemento da condição”. Exemplos apresentados por Sílvio de Salvo Venosa, em Direito Civil, Direito das Sucessões, 8ª edição, São Paulo, Atlas, 2.008.

[2] Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=386354&filename=PRL+1+CCJC+%3D%3E+PL+6416/2005, acesso em 20/09/13.

[3] A proposta inicial (PL 6416/2005), dispunha: “O art. 2.015 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, passa a vigorar com a seguinte redação: ‘Art. 2.015. Se os herdeiros forem capazes, poderão fazer partilha amigável: I – por escritura pública, extrajudicialmente, quando existir um único bem a partilhar; II – por termo nos autos do inventário ou escrito particular homologado pelo juiz’.”

[4] A proposta inicial dispensava de homologação judicial a partilha realizada por escritura pública, quando existisse um único bem a partilhar, como se viu, sendo ampliada para permitir o inventário e a partilha administrativos independentemente da composição da herança, desde que os herdeiros fossem capazes, tendo em vista a natureza opcional do procedimento. Segundo Maurício Rands, “diante disso, a proposta teria maior impacto sobre o ordenamento, com conseqüências positivas para a redução da demanda do Poder Judiciário e na melhoria dos procedimentos disponíveis para a população, ao menos para a realização do inventário e da partilha”.

[5] SOUZA, Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza. Noções Fundamentais de Direito Registral e Notarial. São Paulo: Saraiva, 2.011.

[6] SOUZA, Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza. Noções Fundamentais de Direito Registral e Notarial. São Paulo: Saraiva, 2.011.

[7] Luís Paulo Aliende Ribeiro (RIBEIRO, Luís Paulo Aliende. Regulação da Função Pública Notarial e de Registro. São Paulo: Saraiva, 2.009) afirma, ao abordar a atuação regulatória do Estado, que um cuidado há de ser mantido e se refere ao risco “sempre presente, de que a busca pela uniformização de condutas possa implicar, de qualquer modo, em indevida restrição à atividade jurídica do notário e do registrador, que deve ser exercida de forma independente, motivada e com responsabilidade” (grifamos).

[8] DIP, Ricardo Henry Marques. Registro de Imóveis (Vários Estudos). Porto Alegre: Safe, 2.005.

[9] Obra citada, pág. 132.

[10] CASSETTARI, Christiano. Separação, divórcio e inventário por escritura pública, 6ª edição. São Paulo: Método, 2.013.

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* Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza é Tabelião e Registrador – 2º Ofício de Teresópolis, R.J.

Fonte: CNB I 07/10/2013.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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