STJ: DIREITO DE FAMÍLIA. CASAMENTO CELEBRADO NA VIGÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916. REGIME DE BENS. ALTERAÇÃO. POSSIBILIDADE. EXIGÊNCIAS PREVISTAS NO ART. 1.639, § 3º, DO CÓDIGO CIVIL. JUSTIFICATIVA DO PEDIDO. DIVERGÊNCIA QUANTO À CONSTITUIÇÃO DE SOCIEDADE EMPRESÁRIA POR UM DOS CÔNJUGES. RECEIO DE COMPROMETIMENTO DO PATRIMÔNIO DA ESPOSA. MOTIVO, EM PRINCÍPIO, HÁBIL A AUTORIZAR A MODIFICAÇÃO DO REGIME. RESSALVA DE DIREITOS DE TERCEIROS.

Acórdão: Recurso Especial n. 1.119.462 – MG.
Relator: Min. Luis Felipe Salomão.
Data da decisão: 26.02.2013.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.119.462 – MG (2009⁄0013746-5)
RELATOR : MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO
RECORRENTE : R G C E OUTRO
ADVOGADOS : SALOMÃO DE ARAÚJO CATEB E OUTRO(S)
CRISTIANO ABRAS SILVA
RECORRIDO : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
EMENTA: DIREITO DE FAMÍLIA. CASAMENTO CELEBRADO NA VIGÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916. REGIME DE BENS. ALTERAÇÃO. POSSIBILIDADE. EXIGÊNCIAS PREVISTAS NO ART. 1.639, § 3º, DO CÓDIGO CIVIL. JUSTIFICATIVA DO PEDIDO. DIVERGÊNCIA QUANTO À CONSTITUIÇÃO DE SOCIEDADE EMPRESÁRIA POR UM DOS CÔNJUGES. RECEIO DE COMPROMETIMENTO DO PATRIMÔNIO DA ESPOSA. MOTIVO, EM PRINCÍPIO, HÁBIL A AUTORIZAR A MODIFICAÇÃO DO REGIME. RESSALVA DE DIREITOS DE TERCEIROS. 1. O casamento há de ser visto como uma manifestação vicejante da liberdade dos consortes na escolha do modo pelo qual será conduzida a vida em comum, liberdade essa que se harmoniza com o fato de que a intimidade e a vida privada são invioláveis e exercidas, na generalidade das vezes, em um recôndito espaço privado também erguido pelo ordenamento jurídico à condição de “asilo inviolável”. 2. Assim, a melhor interpretação que se deve conferir ao art. 1.639, § 2º, do CC⁄02 é a que não exige dos cônjuges justificativas exageradas ou provas concretas do prejuízo na manutenção do regime de bens originário, sob pena de se esquadrinhar indevidamente a própria intimidade e a vida privada do consortes. 3. No caso em exame, foi pleiteada a alteração do regime de bens do casamento dos ora recorrentes, manifestando eles como justificativa a constituição de sociedade de responsabilidade limitada entre o cônjuge varão e terceiro, providência que é acauteladora de eventual comprometimento do patrimônio da esposa com a empreitada do marido. A divergência conjugal quanto à condução da vida financeira da família é justificativa, em tese, plausível à alteração do regime de bens, divergência essa que, em não raras vezes, se manifesta ou se intensifica quando um dos cônjuges ambiciona enveredar-se por uma nova carreira empresarial, fundando, como no caso em apreço, sociedade com terceiros na qual algum aporte patrimonial haverá de ser feito, e do qual pode resultar impacto ao patrimônio comum do casal. 4. Portanto, necessária se faz a aferição da situação financeira atual dos cônjuges, com a investigação acerca de eventuais dívidas e interesses de terceiros potencialmente atingidos, de tudo se dando publicidade (Enunciado n. 113 da I Jornada de Direito Civil CJF⁄STJ). 5. Recurso especial parcialmente provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da QUARTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça acordam, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, dar parcial provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Senhor Ministro Relator. Os Srs. Ministros Raul Araújo Filho, Maria Isabel Gallotti, Antonio Carlos Ferreira e Marco Buzzi votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 26 de fevereiro de 2013(Data do Julgamento)
MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO
Relator
RECURSO ESPECIAL Nº 1.119.462 – MG (2009⁄0013746-5)
RECORRENTE : R G C E OUTRO
ADVOGADO : SALOMÃO DE ARAÚJO CATEB E OUTRO(S)
RECORRIDO : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
RELATÓRIO
O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):
1. Rodrigo Gomes Cardoso e Cristiane Nunes Cardoso, mediante procedimento de jurisdição voluntária, ajuizaram ação de alteração de regimes de bens, aduzindo que contraíram matrimônio, em maio de 1999, sob o regime de comunhão parcial. Fundamentaram a pretensão na alegação de que o cônjuge varão iniciou atividade societária com terceiro no ramo de industrialização, comercialização, importação e exportação de gêneros alimentícios, e que, na visão da cônjuge virago, a mencionada empreitada constitui grave risco ao patrimônio do casal, mostrando-se necessária, inclusive, a obtenção de financiamento bancário para a viabilização da empresa. Assim, para manutenção harmoniosa do casamento, entenderam necessária a alteração do regime anterior para o da separação convencional de bens.
O Juízo de Direito da 8ª Vara de Família da Comarca de Belo Horizonte⁄MG julgou procedente o pedido de alteração do regime de bens do casamento dos requerentes (fls. 61-63), decisão contra a qual apelou o Ministério Público do Estado de Minas Gerais.
Em grau de apelação a sentença foi reformada para que o pedido de alteração fosse indeferido, nos termos da seguinte ementa:
CASAMENTO. CC⁄1916. CONSTITUIÇÃO. REGIME DE BENS. ALTERAÇÃO. Incabível a alteração do regime de bens dos casamentos contraídos na vigência do CC⁄1916, quando não incidente o art. 1.639, § 2º, do novo Código Civil (fl. 95).
Sobreveio recurso especial apoiado nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, no qual se alega, além de dissídio jurisprudencial, ofensa ao art. 1.639 do Código Civil.
Em síntese, sustentam os recorrentes que os requisitos legais para a alteração do regime de bens estão presentes no pleito por eles deduzido, não devendo haver restrições exageradas ao pedido, e que a pretensão, em última análise, visa à preservação do casamento.
Contra-arrazoado (fls. 163-166), o especial foi admitido (fls. 170-171).
É o relatório.
RECURSO ESPECIAL Nº 1.119.462 – MG (2009⁄0013746-5)
RELATOR : MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO
RECORRENTE : R G C E OUTRO
ADVOGADO : SALOMÃO DE ARAÚJO CATEB E OUTRO(S)
RECORRIDO : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
EMENTA
DIREITO DE FAMÍLIA. CASAMENTO CELEBRADO NA VIGÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916. REGIME DE BENS. ALTERAÇÃO. POSSIBILIDADE. EXIGÊNCIAS PREVISTAS NO ART. 1.639, § 3º, DO CÓDIGO CIVIL. JUSTIFICATIVA DO PEDIDO. DIVERGÊNCIA QUANTO À CONSTITUIÇÃO DE SOCIEDADE EMPRESÁRIA POR UM DOS CÔNJUGES. RECEIO DE COMPROMETIMENTO DO PATRIMÔNIO DA ESPOSA. MOTIVO, EM PRINCÍPIO, HÁBIL A AUTORIZAR A MODIFICAÇÃO DO REGIME. RESSALVA DE DIREITOS DE TERCEIROS.
1. O casamento há de ser visto como uma manifestação vicejante da liberdade dos consortes na escolha do modo pelo qual será conduzida a vida em comum, liberdade essa que se harmoniza com o fato de que a intimidade e a vida privada são invioláveis e exercidas, na generalidade das vezes, em um recôndito espaço privado também erguido pelo ordenamento jurídico à condição de “asilo inviolável”.
2. Assim, a melhor interpretação que se deve conferir ao art. 1.639, § 2º, do CC⁄02 é a que não exige dos cônjuges justificativas exageradas ou provas concretas do prejuízo na manutenção do regime de bens originário, sob pena de se esquadrinhar indevidamente a própria intimidade e a vida privada do consortes.
3. No caso em exame, foi pleiteada a alteração do regime de bens do casamento dos ora recorrentes, manifestando eles como justificativa a constituição de sociedade de responsabilidade limitada entre o cônjuge varão e terceiro, providência que é acauteladora de eventual comprometimento do patrimônio da esposa com a empreitada do marido. A divergência conjugal quanto à condução da vida financeira da família é justificativa, em tese, plausível à alteração do regime de bens, divergência essa que, em não raras vezes, se manifesta ou se intensifica quando um dos cônjuges ambiciona enveredar-se por uma nova carreira empresarial, fundando, como no caso em apreço, sociedade com terceiros na qual algum aporte patrimonial haverá de ser feito, e do qual pode resultar impacto ao patrimônio comum do casal.
4. Portanto, necessária se faz a aferição da situação financeira atual dos cônjuges, com a investigação acerca de eventuais dívidas e interesses de terceiros potencialmente atingidos, de tudo se dando publicidade (Enunciado n. 113 da I Jornada de Direito Civil CJF⁄STJ).
5. Recurso especial parcialmente provido.
VOTO
O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):
2. Primeiramente, cumpre ressaltar que, muito embora na vigência do Código Civil de 1916 não houvesse previsão legal para tanto, e também a despeito do que preceitua o art. 2.039 do Código Civil de 2002, a jurisprudência tem se mantido uniforme no sentido de ser possível a alteração do regime de bens, mesmo nos matrimônios contraídos ainda sob a égide do diploma revogado.
Nessa linha, confiram-se, entre outros, os seguintes precedentes:
CIVIL – CASAMENTO – REGIME DE BENS – ALTERAÇÃO JUDICIAL – CASAMENTO CELEBRADO SOB A ÉGIDE DO CC⁄1916 (LEI Nº 3.071) – POSSIBILIDADE – ART. 2.039 DO CC⁄2002 (LEI Nº 10.406) – PRECEDENTES – ART. 1.639, § 2º, CC⁄2002.
I. Precedentes recentes de ambas as Turmas da 2ª Seção desta Corte uniformizaram o entendimento no sentido da possibilidade de alteração de regime de bens de casamento celebrado sob a égide do Código Civil de 1916, por força do § 2º do artigo 1.639 do Código Civil atual.
II. Recurso Especial provido, determinando-se o retorno dos autos às instâncias ordinárias, para que, observada a possibilidade, em tese, de alteração do regime de bens, sejam examinados, no caso, os requisitos constantes do § 2º do artigo 1.639 do Código Civil atual.
(REsp 1112123⁄DF, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 16⁄06⁄2009, DJe 13⁄08⁄2009)
________________________
CIVIL. CASAMENTO. CÓDIGO CIVIL DE 1916. COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. ALTERAÇÃO DE REGIME. COMUNHÃO UNIVERSAL. POSSIBILIDADE JURÍDICA.
I. Ambas as Turmas de Direito Privado desta Corte assentaram que o art. 2.039 do Código Civil não impede o pleito de autorização judicial para mudança de regime de bens no casamento celebrado na vigência do Código de 1916, conforme a previsão do art. 1.639, § 2º, do Código de 2002, respeitados os direitos de terceiros.
II. Recurso especial não conhecido.
(REsp 812.012⁄RS, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 02⁄12⁄2008, DJe 02⁄02⁄2009)
________________________
Com efeito, satisfeitas as exigências legais, aos matrimônios celebrados antes da vigência do Código Civil de 2002, é possível a aplicação do seu art. 1.639, § 2º, que possui a seguinte redação:
Art. 1.639. É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver.
[…]
§ 2º É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros.
3. No caso em exame, foi pleiteada a alteração do regime de bens do casamento dos ora recorrentes, manifestando eles como justificativa a constituição de sociedade de responsabilidade limitada entre o cônjuge varão e terceiro, providência que é acauteladora de eventual comprometimento do patrimônio da esposa com a empreitada do marido.
Os fatos alegados são incontroversos e, segundo a análise soberana das instâncias ordinárias, estão todos comprovados.
O Juízo de primeiro grau entendeu ser suficiente a justificativa apresentada pelos autores, deferindo o pedido com base, em síntese, nos seguintes fundamentos:
Da análise dos autos, vê-se que os cônjuges justificaram que apesar de viverem bem, há divergência entre eles quanto à constituição de uma empresa pelo varão, motivo pelo qual pretendem a alteração de seu regime de bens no casamento.
É cediço que muitos casamentos se desfazem por desentendimentos financeiros entre os cônjuges.
No caso em tela, verifica-se que, apesar da meação da varoa se ver resguardada de eventuais dívidas da empresa a ser aberta pelo varão, certo é que o clima de instabilidade e risco, principalmente nos dias atuais, com a abertura de um empreendimento afetará reflexamente toda a família do varão.
Importante se faz registrar, ainda, que a modificação do Regime de Bens somente surtirá efeitos perante terceiros a partir do instante da averbação da sentença, com indicação minuciosa da decisão, no livro de casamento (artigo 100, § 1º, da Lei 6.015⁄73), e após o registro, em livro especial, pelo oficial do Registro de Imóveis do domicílio dos Cônjuges.
Observa-se, assim, que os fundamentos apresentados pelos requerentes são procedentes e autorizam o acolhimento do pedido (fl. 63).
O acórdão recorrido, à sua vez, entendeu ser insuficiente a justificativa apresentada pelos ora recorrentes para a modificação do regime de bens, conclusão essa apoiada nos seguintes fundamentos:
No caso em exame, o pedido tem fundamento na discordância da varoa, quanto a empreendimento comercial que vem sendo perpetrado pelo varão, no que se refere à constituição de empresa, que, na sua ótica, poderá implicar em risco para o patrimônio do casal e da prole comum.
Referida motivação, contudo, não me convence da necessidade de que se altere o regime de bens do casamento dos apelados.
Não restou demonstrado, de pronto, que o fundamento do pedido ensejará risco para o patrimônio do casal – frise-se, por oportuno, que os autos não noticiam que o casal com esforço comum tenha adquirido bens na constância da união.
Ora, a constituição de empresa pelo varão, ora apelado, não tem o condão de, por si só, motivar o presente pedido, porquanto a pessoa jurídica tem personalidade jurídica própria, não se confundindo com a pessoa física de seu sócio.
[…]
Assim, não restando caracterizados os requisitos estabelecidos no § 2º do art. 1.639 do Código Civil⁄02, a improcedência do pedido era medida que se impunha (fls. 84-85).
Em síntese, cuida-se de saber se a constituição de uma sociedade limitada entre um dos cônjuges e terceiro é justificativa que satisfaz as exigências do 1.639, § 2º, do Código Civil, de modo a autorizar a mudança do regime de bens.
4. Primeiramente, cumpre ressaltar que o direito de família deve ocupar no ordenamento jurídico papel consentâneo com as possibilidades e limites estruturados pela própria Constituição Federal, não podendo a legislação infraconstitucional avançar em espaços tidos pela própria Carta da República como invioláveis. Deve disciplinar tão somente o necessário e o suficiente para realização não de uma vontade estatal, mas dos próprios integrantes da família.
Em outras palavras, parece claro que o direito de família há de observar uma principiologia de “intervenção mínima”, mostrando-se deveras necessária a contenção de índole constitucional nessa seara normativa que sempre transita muito próximo a bens especialmente protegidos pela Constituição – como a intimidade e a vida privada -, erguidos como elementos constitutivos do refúgio impenetrável da pessoa e que, por isso mesmo, podem ser opostos à coletividade e ao próprio Estado.
Nessa linha de raciocínio, o casamento há de ser visto como uma manifestação vicejante da liberdade dos consortes na escolha do modo pelo qual será conduzida a vida em comum, liberdade essa que se harmoniza com o fato de que a intimidade e a vida privada são invioláveis e exercidas, na generalidade das vezes, em um recôndito espaço privado também erguido pelo ordenamento jurídico à condição de “asilo inviolável”.
Confira-se:
Aliás, a família é o mais privado de todos os espaços do Direito Civil.
Com isso, forçoso é reconhecer a suplantação definitiva da (indevida) participação do Estado no âmbito das relações familiares, deixando de ingerir sobre aspectos personalíssimos da vida privada que, seguramente, dizem respeito somente à vontade do próprio titular, como expressão pura de sua dignidade.
PIETRO PERLINGIERI, que de há muito apregoa tais idéias, dispara, com precisão cirúrgica, que “expressão de liberdade é o poder reconhecido aos cônjuges de acordar a direção da vida familiar interpretando as exigências de ambos e da família”. E mais adiante acresce que os acordos e estipulações recíprocas entre os consortes “assumem o papel de regra e de instrumento de realização do princípio de igualdade moral e jurídica e, ao mesmo tempo, relativamente à natureza e aos conteúdos da direção fixada” (FARIAS, Cristiano Chaves. ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 21).
Com efeito, é por essa lente que deve ser interpretado o disposto na parte final do § 2º do art. 1.639 do Código Civil de 2002, referente ao “pedido motivado de ambos os cônjuges” e à “procedência das razões invocadas”, para a modificação do regime de bens do casamento.
De fato, no tocante aos efeitos patrimoniais do casamento, não havia mais necessidade da manutenção da antiga inalterabilidade do regime de bens, que vigorava antes do Código de 2002, a qual estava alicerçada em três justificativas: i) natureza contratual do casamento, concebido como um pacto de família, inalterável por vontade dos cônjuges; ii) propósito de proteção de um dos cônjuges contra as investidas abusivas do outro motivadas na obtenção de vantagem com a alteração do regime; e iii) a defesa do interesse de terceiros (cf., por todos, GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume VI. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 398).
Ora, atualmente, o casamento está ancorado em outros valores que o distanciam cada vez mais de um mero contrato (comunhão plena de vida). A proteção de um dos cônjuges pode ser realizada com o controle judicial do pedido de alteração e com a necessidade de pleito conjunto e os direitos de terceiros são expressamente ressalvados.
Como bem elucida Paulo Lôbo, referindo-se à nova sistemática do CC⁄02,
a lei está mais contemporânea com a realidade social atual, da emancipação feminina e sua inserção na vida econômica, máxime no mercado de trabalho, além do fato de a mulher, a principal destinatária da rígida tutela legal anterior, não se encontra mais submetida ao chefe de família, cujo último resquício desapareceu com o princípio da igualdade jurídica integral entre os cônjuges, assegurado pelo art. 226 da Constituição (LÔBO, Paulo. Famílias. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 297).
Assim, muito embora a inalterabilidade do regime de bens continue a ser a regra no ordenamento jurídico, o pedido de alteração deve ser guiado pela liberdade da vida conjugal, ficando, a um só tempo, preservados os valores atuais relativos ao casamento e resguardados todos os interesses que estavam subjacentes à antiga imutabilidade do regime.
5. Desse modo, a meu juízo, a melhor interpretação que se deve conferir ao supracitado art. 1.639, § 2º, do CC⁄02 é a que não exige dos cônjuges justificativas exageradas ou provas concretas do prejuízo na manutenção do regime de bens originário, sob pena de se esquadrinhar indevidamente a própria intimidade e a vida privada do consortes.
Certamente, a divergência conjugal quanto à condução da vida financeira da família é justificativa, em tese, plausível à alteração do regime de bens, divergência essa que, em não raras vezes, se manifesta ou se intensifica quando um dos cônjuges ambiciona enveredar-se por uma nova carreira empresarial, fundando, como no caso em apreço, sociedade com terceiros na qual algum aporte patrimonial haverá de ser feito, e do qual pode resultar impacto ao patrimônio comum do casal.
Basta mencionar a corriqueira situação em que o sócio figura como avalista⁄fiador da sociedade, hipótese em que responderá ele pessoalmente pelas obrigações da pessoa jurídica. Nesse caso, no regime de comunhão parcial de bens, eventual patrimônio sobrevindo exclusivamente pelo trabalho do outro cônjuge, por fazer parte dos bens comuns (art. 1.658, CC⁄02), poderá ser chamado a solver o débito, mesmo que apenas parcialmente, dada a possibilidade de defesa da meação pelo cônjuge não devedor.
Assim, mostra-se razoável que um dos cônjuges prefira que os patrimônios estejam bem delimitados, para que somente o do cônjuge empreendedor possa vir a sofrer as consequências por eventual empreendimento malogrado.
No ponto, ao contrário do entendimento abraçado pelo acórdão recorrido, pouco importa se não houve prova da existência de patrimônio comum, porquanto se protegem, com a alteração do regime, os bens atuais e os futuros do cônjuge.
Alinhando-se a esse entendimento, cito, uma vez mais, o magistério de Paulo Lôbo:
Entre os motivos relevante está a alteração do regime legal de comunhão parcial para o de separação de bens, tendo em vista que os cônjuges passaram a ter vidas econômicas e profissionais próprias, sendo conveniente a existência de patrimônios próprios para garantirem obrigações que necessitam profissionalmente ou para incorporação em capital social de empresa. O juiz deve levar em conta as idades e a natural imaturidade dos cônjuges ao se casarem, quando as pessoas não dispõem de informações suficientes para tomada de decisão que determina tão fortemente o futuro do casal. A mudança de regime de bens pode significar a remoção de considerável obstáculo ao entendimento dos cônjuges, assegurando-se a permanência de sua convivência (LÔBO, Paulo. Op. cit., p. 298).
No mesmo sentido, e fazendo a exortação de que a investigação desmedida da causa para a alteração do regime consubstanciaria uma indevida ingerência na vida privada e intimidade dos cônjuges, cito também o magistério de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:
Sem dúvida, o simples fato de ser requerida, em via judicial, a alteração do regime de bens já indica que algum motivo relevante há para os autores do pedido e para a vida pessoal deles, sendo descabida a indagação da causa. Ademais, não se esqueça que a mudança não produzirá efeitos em relação a terceiros, eventualmente prejudicados (que, ademais, serão citados, tendo os seus interesses preservados). Pela soma de todos estes argumentos, é de se preservar a vida privada e a inviolabilidade do núcleo familiar, dispensando-se, em cada caso concreto, por controle de constitucionalidade difuso, a justificativa do casal.
De qualquer modo, exigida pelo juiz, a motivação pode ser a mais diversa possível, não devendo o juiz ser rigoroso na exigência de uma indicação precisa (FARIAS, Cristiano Chaves. ROSENVALD, Nelson.Direito das famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 227).
________________________
Finalmente, não se pode presumir o propósito fraudulento do pedido. Havendo ardil, o ordenamento jurídico prevê mecanismos de contenção, como a própria submissão do presente pedido ao Judiciário, a desconsideração da personalidade jurídica direta – para atingir os bens particulares do sócio em caso de fraude praticada pela pessoa jurídica – ou inversa, para atingir o patrimônio da pessoa jurídica que serviu de desaguadouro de bens em detrimento da família.
6. Portanto, com base na fundamentação acima desenvolvida, há de ser removido o óbice apontado pelo Tribunal a quo ao deferimento da alteração do regime de bens, assumindo-se como suficiente ao pleito a justificativa apresentada pelos autores.
Porém, no caso, somente não será possível, desde logo, o deferimento da alteração dado o tempo transcorrido entre o pedido até agora.
Como dito anteriormente, a alteração do regime de bens deve acautelar também os interesses de terceiros, mostrando-se insuficiente a tanto a exposição da situação financeira dos cônjuges na época da propositura da presente ação, como ocorreu no caso, em que foram apresentadas as certidões de distribuição de ações cível e criminal na Justiça estadual, na Justiça Federal e Cartório de Protestos, mas que, a essa altura, encontram-se desatualizadas.
Necessária se faz a aferição da situação financeira atual dos cônjuges, com a investigação acerca de eventuais dívidas e de interesses de terceiros potencialmente atingidos, de tudo se dando publicidade.
Nesse sentido, foi aprovado o Enunciado n. 113 na I Jornada de Direito Civil, promovida pelo CJF⁄STJ:
É admissível a alteração do regime de bens entre os cônjuges, quando então o pedido, devidamente motivado e assinado por ambos os cônjuges, será objeto de autorização judicial, com ressalva dos direitos de terceiros, inclusive dos entes públicos, após perquirição de inexistência de dívida de qualquer natureza, exigida ampla publicidade.
7. Diante do exposto, dou parcial provimento ao recurso especial para, removendo o óbice apontado pelo Tribunal a quo acerca da justificativa suficiente à alteração do regime de bens dos cônjuges, determinar o retorno dos autos à primeira instância com a finalidade de se investigar a atual situação financeira dos autores, franqueando-lhes a possibilidade de apresentação de certidões atualizadas que se fizerem necessárias.
É como voto.
CERTIDÃO DE JULGAMENTO
QUARTA TURMA
Número Registro: 2009⁄0013746-5
PROCESSO ELETRÔNICO REsp 1.119.462 ⁄ MG
Números Origem: 10024062047808 10024062047808001 24062047808
PAUTA: 26⁄02⁄2013 JULGADO: 26⁄02⁄2013
SEGREDO DE JUSTIÇA
Relator
Exmo. Sr. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO
Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO
Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. ANTÔNIO CARLOS PESSOA LINS
Secretária
Bela. TERESA HELENA DA ROCHA BASEVI
AUTUAÇÃO
RECORRENTE : R G C E OUTRO
ADVOGADO : SALOMÃO DE ARAÚJO CATEB E OUTRO(S)
RECORRIDO : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
ASSUNTO: DIREITO CIVIL – Família – Regime de Bens Entre os Cônjuges
CERTIDÃO
Certifico que a egrégia QUARTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
A Quarta Turma, por unanimidade, deu parcial provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Senhor Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Raul Araújo Filho, Maria Isabel Gallotti, Antonio Carlos Ferreira e Marco Buzzi votaram com o Sr. Ministro Relator.

Fonte: Blog do 26 | 30/09/2014.

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STJ: Empresas terão de restituir valores por atraso na entrega de resort em Angra

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que uma incorporadora e uma construtora devem ressarcir uma terceira empresa pelo atraso na entrega de apartamentos localizados em resort de grande porte em Angra dos Reis (RJ). Elas não tomaram todas as cautelas necessárias e possíveis para o licenciamento ambiental do empreendimento, o que não permite a exclusão de responsabilidade por caso fortuito, força maior ou culpa de terceiro.

A relatora, ministra Nancy Andrighi, explicou em seu voto que, para caracterizar o caso fortuito ou a força maior como excludentes da responsabilidade pelo atraso, seria necessário que o evento, além de impossibilitar o cumprimento da obrigação, decorresse de circunstâncias alheias à vontade do devedor, que não teria meios de evitar ou impedir seus efeitos.

Para a relatora, mesmo a margem de interpretação criada pela legislação ambiental não justifica a pretensão das empresas, que recorreram do dever de restituir todos os valores pagos pela compradora, além da integralidade dos ônus sucumbenciais.

“Cabia às recorrentes, grandes empresas no ramo de incorporação imobiliária e construção civil, tomar as cautelas necessárias para o regular licenciamento ambiental do empreendimento, o que uma simples consulta administrativa satisfaria”, afirmou a ministra.

Ibama

No caso do recurso especial em julgamento na Terceira Turma, as empresas responsáveis pela entrega do empreendimento até obtiveram licença ambiental junto ao órgão estadual competente, mas faltou, antes da celebração dos contratos de compra e venda, a diligência de consultar o órgão federal, o Ibama, acerca da apresentação do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e do Relatório de Impacto Ambiental (Rima).

“O arquipélago de Angra dos Reis constitui região de notório interesse ambiental, em virtude das áreas de preservação da fauna e flora lá instaladas, não sendo crível admitir que as recorrentes não pudessem antever eventual competência federal na regularização de um grande resort a ser construído no local”, ponderou a Nancy Andrighi.

A ministra entendeu que o atraso na obra poderia ter sido evitado caso as empresas tivessem tomado as diligências necessárias para a realização de um empreendimento desse porte. Sendo previsível o fato, não existe o requisito de inevitabilidade para a configuração do caso fortuito ou força maior.

Seguindo o voto da relatora, a Turma negou o recurso das empresas, que foram consideradas responsáveis pela demora na entrega dos imóveis na modalidade culpa por negligência.

Esta notícia se refere ao processo: REsp 1328901.

Fonte: STJ | 30/05/2014 (http://www.stj.jus.br/webstj/processo/justica/jurisprudencia.asp?tipo=num_pro&valor=REsp1328901).

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Comprador de imóveis tem ônus de exigir certidões pessoais

* Bruno Mattos e Silva

É altamente controvertida a questão da necessidade de obtenção certidões de distribuição de feitos ajuizados contra o vendedor, por ocasião da compra ou da celebração de contrato envolvedo a propriedade de um imóvel.

Muitas vezes há exigência, por parte do tabelião, da apresentação das referidas certidões para a lavratura de escritura pública que, após o registro, irá transferir da propriedade do imóvel. Por isso às vezes nos deparamos com a declaração, na escritura pública, de que o comprador “dispensou” a apresentação das certidões pessoais referentes ao vendedor, notadamente a certidões de feitos ajuizados no foro de domicílio do vendedor ou de situação do imóvel.

Situação semelhante ocorre por ocasião da celebração de qualquer contrato que verse a respeito de propriedade imobiliária, como, por exemplo, compromisso de compra e venda de imóvel.

Há uma questão prática a ser resolvida: as certidões pessoais do vendedor devem ser obtidas?

Ninguém está obrigado a fazer ou a deixar de fazer algo caso inexista lei que determine ou fundamente a obrigação. É o que dispõe o art. 5º, II, da Constituição Federal. A luz desse postulado, vamos verificar, inicialmente, se existe obrigação legal para que essas certidões sejam apresentadas. Caso a conclusão seja pela existência de norma determinando essa apresentação, a solução é simples: as certidões devem ser obtidas porque há norma estabelecendo essa obrigação. Caso contrário, a solução demandará outra análise, como veremos.

Uma corrente doutrinária sustenta que a necessidade de obtenção das certidões de feitos ajuizados contra o proprietário do imóvel decorre da Lei  7.433, de 18 de dezembro de 1985. Trata-se da norma referente à lavratura de escrituras públicas, aplicável também a certas hipóteses em que o contrato relativo ao imóvel poderá ser feito por instrumento particular. Com efeito, o parágrafo 2º do art. 1º da Lei 7.433/85 menciona expressamente a necessidade de apresentação da certidão de feitos ajuizados, nos seguintes termos:

“Art 1º – Na lavratura de atos notariais, inclusive os relativos a imóveis, além dos documentos de identificação das partes, somente serão apresentados os documentos expressamente determinados nesta Lei.

(…)

Parágrafo 2º – O Tabelião consignará no ato notarial, a apresentação do documento comprobatório do pagamento do Imposto de Transmissão inter vivos, as certidões fiscais, feitos ajuizados, e ônus reais, ficando dispensada sua transcrição.

(…)”

Contudo, o inciso IV do art. 1º do regulamento dessa Lei — Decreto 93.240, de 9 de setembro de 1986 — assim dispõe:

“Art 1º Para a lavratura de atos notariais, relativos a imóveis, serão apresentados os seguintes documentos e certidões:

(…)

IV – a certidão de ações reais e pessoais reipersecutórias, relativas ao imóvel, e a de ônus reais, expedidas pelo Registro de Imóveis competente, cujo prazo de validade, para este fim, será de 30 (trinta) dias;

(…)”

A redação do inciso IV parece dar a entender que a obrigação de apresentação de certidões de feitos ajuizados se limita à ações que dizem respeito diretamente ao imóvel objeto da escritura pública. Certidões referentes ao vendedor, mas que não dizem respeito ao imóvel — por exemplo, ação de cobrança por quantia certa —, não precisariam ser apresentadas. E mais: a certidão de feitos ajuizados legalmente obrigatória é a expedida pelo cartório imobiliário e não pelos distribuidores forenses.

Em vista disso, há uma corrente doutrinária que sustenta a inexistência de obrigação legal de apresentação das certidões dos feitos ajuizados contra o vendedor, mas apenas a certidão do registrador imobiliário, que constaria todas as informações referentes ao imóvel e às ações que dizem respeito ao imóvel. De acordo com essa tese, não deve o tabelião fazer constar da escritura pública que o comprador “dispensou” a apresentação das certidões pessoais do vendedor expedida pelos distribuidores forenses, simplesmente porque elas não seriam obrigatórias.

Vamos admitir que está correta a tese que restringe o alcance da expressão “feitos ajuizados” constante do parágrafo 2º do art. 1º da Lei 7.433/85. Partindo desta premissa — inexistência de obrigação legal de apresentação das certidões dos distribuidores forenses —, devemos concluir também que essas certidões não devem ser obtidas pelo comprador?

Para responder a essa pergunta, devemos diferenciar obrigação de ônus.

A toda obrigação corresponde um direito. Assim, em face das obrigações de pagar quantia certa, de fazer algo, de entregar coisa determinada, etc., existem os direitos de receber a quantia, a prestação ou a coisa etc. Caso a obrigação não seja cumprida, o titular do direito pode fazer valer seu direito mediante pedido de tutela judicial, pois a todo direito material em sentido estrito corresponde um direito processual que o protege. Nesse caso, o Estado-juiz irá determinar que a obrigação seja cumprida. Isso significa que o Estado-juiz determinará que o devedor pague a quantia, faça algo, entregue determinada coisa etc. Caso, ainda assim, a obrigação não seja cumprida, o Estado-juiz determinará providências executórias, de modo que o direito ou algo que substitua o direito violado possa existir de fato, no mundo real.

Essa correspondência entre obrigação e direito não existe quanto ao ônus. A pessoa que tem o ônus de fazer ou deixar de fazer algo não pode ser obrigada pelo Estado a fazer ou a deixar de fazer, exatamente porque não existe um direito de obrigar alguém à prática do ato. A sanção pelo não desincumbimento do ônus será outra.

Possivelmente o exemplo mais simples de ser visualizado está no direito processual, referente ao ônus da prova. A legislação processual estabelece a quem incumbe provar o fato alegado — ônus da prova —, hipóteses em que fatos não precisam ser provados — inexistência de ônus da prova —, hipóteses em que a parte contrária deverá fazer a prova — inversão do ônus da prova —, etc. Toda vez que a lei estabelece possíveis consequências indesejáveis para a prática de um ato ou para a ausência da prática de um ato, está estabelecendo uma sanção ou um ônus.

Não pode o juiz obrigar que alguém se desincumba do ônus. A pessoa que não se desincumbir plenamente do ônus imposto pela lei sofrerá ou poderá sofrer as consequências jurídicas da ausência da prática do ato estabelecido. Assim, no exemplo do ônus da prova, a pessoa a quem incumbe o ônus da prova não poderá ser obrigada a fazer a prova, mas poderá receber uma decisão desfavorável no processo judicial.

Nas operações imobiliárias há diversas hipóteses em que ônus são estabelecidos pela legislação, com possíveis consequências para aquele que não se desincumbir do ônus. Muitas vezes é necessário não apenas praticar o ato referente ao ônus, mas também, por cautela, produzir algo que demonstre que o ato foi praticado. São hipóteses em que determinado fato ou ato jurídico não se encontra registrado na matrícula do imóvel, mas é passível de atingir terceiro em razão de expressa disposição de lei nesse sentido.

Uma hipótese interessante é o caso da fraude à execução na hipótese em que há ação em curso capaz de tornar o devedor insolvente, nos termos do art. 593, II, do Código de Processo Civil. [1] A legislação estabelece que, configurada essa hipótese, o imóvel cuja propriedade fora validamente transferida para um terceiro poderá ser penhorado para a satisfação do credor do vendedor.

A questão da fraude à execução é, até hoje, altamente controvertida nos tribunais. Há uma súmula do STF a respeito do tema, uma súmula do STJ em sentido diametralmente oposto, julgamentos díspares por parte de tribunais estaduais, bem como outra orientação por parte do TST. [2]

Outra hipótese é a aquisição da propriedade de bem imóvel após a decretação da falência do vendedor, no qual o imóvel adquirido poderá vir a ser arrecadado para compor massa falida, nos termos do art. 129, VII, da Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. [3]

Há ainda outras hipóteses, como aquisição de bem em fraude contra credores — arts. 158 e 159 do Código Civil —, de vendedor com interdição judicialmente decretada — art. 3º, 9º, III e 1.773, todos do Código Civil —, de bem considerado indisponível — art. 36 da Lei 6.024, de 13 de março de 1974 —, etc.

Enfim, em diversas hipóteses, a lei estabelece possíveis consequências indesejáveis para o terceiro adquirente do imóvel, independente de má-fé ou de registro na matrícula do imóvel. Se a lei estabelece hipóteses em que o comprador do imóvel pode vir a sofrer consequências jurídicas decorrentes da não obtenção de certidões expedidas pelos distribuidores forenses, existe ônus.

Atualmente, há alguns projetos de lei objetivando positivar, total ou parcialmente, o princípio da vis atractiva do registro imobiliário. De acordo com esse princípio, deve constar do registro imobiliário tudo que, direta ou indiretamente, possa afetar o imóvel ou a sua propriedade. Há corrente na jurisprudência que, total ou parcialmente, acolhe esse princípio e protege o comprador em situações específicas.

Contudo, enquanto a jurisprudência não estabelecer de forma unívoca que em nenhuma hipótese ato ou fato não registrado na matrícula do imóvel poderá atingir terceiros ou não forem alterados todos os dispositivos legais que preveem essas hipóteses, haverá para o comprador o ônus de obter as certidões expedidas pelos distribuidores forenses.

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1. “Art. 593. Considera-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens: (…) II – quando, ao tempo da alienação ou oneração, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência; (…)”

2. Para mais informações a respeito do tema, vide: SILVA, Bruno Mattos e. Compra de imóveis: aspectos jurídicos, cautelas devidas, análise de riscos. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2013.
 

3. “Art. 129. São ineficazes em relação à massa falida, tenha ou não o contratante conhecimento do estado de crise econômico-financeira do devedor, seja ou não intenção deste fraudar credores: (…) VII – os registros de direitos reais e de transferência de propriedade entre vivos, por título oneroso ou gratuito, ou a averbação relativa a imóveis realizados após a decretação da falência, salvo se tiver havido prenotação anterior. (…)”

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* Bruno Mattos e Silva é advogado e autor dos livros Direito de Empresa e Compra de Imóveis (Ed. Atlas).

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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