TJSP: RESPONSABILIDADE CIVIL – Danos ocasionados por Tabelião – Falsificação de guia de recolhimento do ITBI – Pagamento em duplicidade pelo autor – Danos morais – Abalo que superou o mero dissabor – Quantia fixada adequadamente, com base nas circunstâncias do caso concreto

EMENTA

RESPONSABILIDADE CIVIL – Danos ocasionados por Tabelião – Falsificação de guia de recolhimento do ITBI – Pagamento em duplicidade pelo autor – Preliminar de ilegitimidade passiva afastada – Posição já consolidada no E. STF acerca da função eminentemente pública dos serviços notariais, a caracterizar a natureza estatal das atividades exercidas pelos serventuários titulares de cartórios e registros extrajudiciais, albergados consequentemente pela norma constitucional – Responsabilidade objetiva do Estado de São Paulo – Aplicação do disposto no art. 37, §6º, da CF – Elementos de prova constantes dos autos que permitem concluir pela existência do ilícito, qual seja, a falsidade da guia de recolhimento do ITBI, assinada pelo Tabelião Substituto – Danos materiais evidenciados – Danos morais – Abalo que superou o mero dissabor – Quantia fixada adequadamente, com base nas circunstâncias do caso concreto – Observações quanto aos critérios de aplicação dos juros de mora e atualização monetária, com o advento da Lei nº 11.960/2009 – Recursos desprovidos, com observações. (TJSP – Apelação Cível nº 0004821-19.2006.8.26.0299 – Barueri – 11ª Câmara de Direito Público – Rel. Des. Oscild de Lima Júnior – DJ 05.06.2013)

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos do Apelação nº 0004821-19.2006.8.26.0299, da Comarca de Barueri, em que são apelantes FAZENDA DO ESTADO DE SÃO PAULO e LUIS ANTONIO PEREIRA RAMOS (TABELIAO DE REGISTRO DE JANDIRA), é apelado JOÃO BATISTA RIGONI.

ACORDAM, em 11ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "Negaram provimento aos recursos, com observação. V.U.", de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmo. Desembargadores AROLDO VIOTTI (Presidente) e RICARDO DIP.

São Paulo, 14 de maio de 2013.

OSCILD DE LIMA JÚNIOR – Relator.

RELATÓRIO

Trata-se de ação de indenização por danos materiais e morais ajuizada por João Batista Rigoni contra o Cartório de Registro Civil e Tabelionato de Jandira, posteriormente alterado o polo passivo para Fazenda do Estado de São Paulo e Luis Antônio Pereira Ramos, alegando que em 19/02/2002, pelo valor de R$ 20.000,00, adquiriu da Conspar Empreendimentos e Participações Ltda. um imóvel constituído de terreno urbano, situado na Estrada Velha de Itapevi, e que o referido negócio foi prenotado na matrícula do imóvel pelo Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de Barueri. Para a realização dos serviços de lavratura da escritura, certidões necessárias, pagamento do ITBI, registro no Cartório de Registro de Imóveis e os respectivos honorários, pagou ao réu a importância de R$ 2.134,00. O réu realizou os serviços contratados e forneceu ao autor o comprovante do pagamento do ITBI, no valor de R$ 1.000,00. Ocorre que em 24/10/2006 o autor foi surpreendido pela notificação 06/2006 da Prefeitura do Município de Barueri, solicitando o seu comparecimento na Secretaria de Finanças para realizar o pagamento do ITBI referente à compra do imóvel, sob pena de inscrição do débito na dívida ativa municipal. Foi informado pela Municipalidade que a guia que o réu lhe fornecera era falsa, e que o tributo não havia sido recolhido pelo Cartório de Registro Civil e Tabelionato de Jandira. Não restou outra alternativa ao autor, que recolheu novamente o tributo para não ver o seu nome inscrito na dívida ativa municipal, com o pagamento do valor de R$ 2.295,13, já acrescido de multa, juros e correção monetária, tendo em vista o atraso no recolhimento. Requer, assim, seja o réu condenado a reparar os danos materiais, no valor acima apontado, bem como indenização por danos morais, em valor correspondente a décuplo do prejuízo, tudo devidamente corrigido monetariamente e acrescido dos respectivos juros.

A r. sentença de fls. 102/108 julgou procedente o pedido, para condenar os réus ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 20.000,00, acrescidos de correção monetária, calculada a partir da data daquela data e juros legais, a contar da data da expedição da primeira guia do ITBI, de 0,5% ao mês até a entrada do Novo Código Civil, a partir de quando serão devidos no percentual de 1% ao mês, bem como ao pagamento de R$ 2.295,13, acrescido de juros de mora e correção monetária, ambos calculados da data da expedição da guia de ITBI de fls. 13, de conformidade com as Súmulas 43 e 54 do STJ. Em razão da sucumbência, condenou os réus no pagamento das custas, das despesas processuais e dos honorários advocatícios, estes fixados em 10% do valor da condenação corrigido.

A Fazenda do Estado de São Paulo interpôs recurso de apelação a fls. 127/147, alegando, preliminarmente, ilegitimidade passiva, tendo em vista o disposto no art. 22 da Lei nº 8.935/94 e no art. 236, §1º, da CF. No mérito, pugna pela inviabilidade da indenização por danos morais, ou a sua redução para, no máximo, R$ 3.000,00, considerando as especificidades do caso. Por fim, requer sejam observadas as regras de juros e correção previstas na Lei nº 9.494/97.

Luis Antônio Pereira Ramos interpôs recurso de apelação a fls. 148/151, deduzindo que não pode ser responsabilizado por obrigações concernentes ao escrivão do Cartório, pois teria provado que não era o escrivão responsável pelo Cartório na data da lavratura da escritura pública, levada a efeito em 19/02/2002. Além disso, a Lei nº 8.835/94 é clara ao estabelecer que o tabelião é o responsável pelos atos próprios e da serventia do Cartório, sendo ele mero funcionário do Tabelionato não é o tabelião ou escrivão responsável pelos atos notariais realizados no Cartório.

Os recursos foram respondidos a fls.159/164.

É o relatório.

VOTO

Não vinga a preliminar de ilegitimidade passiva da Fazenda do Estado de São Paulo, inexistindo, na espécie, qualquer ofensa ou contrariedade aos arts. 22 da Lei nº 8.935/94 e 236, §1º, da CF.

Na verdade, a regra estabelecida no art. 22 não exclui a previsão contida no texto constitucional (arts. 236, §1º e art. 37, §6º).

No escólio de José Roberto dos Santos Bedaque, “se o autor indicar para figurar como réu no processo pessoa diversa daquela que, segundo a descrição fática por ele mesmo feita, participa da relação substancial, estará configurada a ilegitimidade passiva”[1]

Diante do regime de responsabilidade objetiva insculpido no art. 37, §6º, da CF, reputo que a Fazenda do Estado de São Paulo é sim parte legítima para responder pelos danos causados pelos agentes notariais aos particulares, não se tratando, na espécie, de responsabilidade subsidiária, quando já esgotadas as forças patrimoniais do delegatário.

Nessa seara, o Egrégio Supremo Tribunal Federal já solidou o entendimento que “a função eminentemente pública dos serviços notariais configura a natureza estatal das atividades exercidas pelos serventuários titulares de cartórios e registros extrajudiciais”, caracterizando a responsabilidade extracontratual do Estado (Segunda Turma, Ag. Reg. no RE 551.156-1/SC, j. 10/03/2009, rel. Min. Ellen Gracie).

E mais:

CONSTITUCIONAL. SERVIDOR PÚBLICO. TABELIÃO. TITULARES DE OFÍCIO DE JUSTIÇA: RESPONSABILIDADE CIVIL. RESPONSABILIDADE DO ESTADO. CF, art. 36, §6º. I- Natureza estatal das atividades exercidas pelos serventuários titulares de cartórios e registros extrajudiciais, exercidas em caráter privado, por delegação do Poder Público. Responsabilidade objetiva do Estado pelos danos praticados a terceiros por esses servidores no exercícios de tais funções, assegurado o direito de regresso contra o notário, nos casos de dolo ou culpa (C.F, art. 37, §6º). II- Negativa de trânsito ao RE. Agravo não provido.

(…)

Posto isso, decido.

Destaco do parecer da Procuradoria-Geral da República, da lavra do ilustre Subprocurador-Geral Flávio Giron:

'(…)

Deve-se ressaltar, entretanto, que a atividade desempenhada pela tabeliã, munida de fé-pública, destinase a estabelecer a publicidade, a autenticidade, a segurança e a eficácia dos atos jurídicos, sujeitando-se a ostensiva fiscalização pelo Juízo responsável, configurandose, em decorrência, como uma função pública.

Assim, apesar de exercida em caráter privado, por delegação do Poder Público, como acentuou o Ministro Celso de Mello (Recurso Extraordinário nº 178.236-6, DJ 11-4-97), “não descaracteriza a natureza essencialmente estatal dessas atividades”, consoante o regime de direito público a que estão adstritas.

Neste sentido, reiterada é a jurisprudência dessa Excelsa Corte, que considera os serventuários, titulares de cartórios e registros extrajudiciais, funcionários públicos em sentido amplo, como se depreende do excerto abaixo transcrito:

'SERVENTIAS EXTRAJUDICIAIS. A atividade notarial e registral, ainda que executada no âmbito de serventias extrajudiciais não oficializadas, constitui, em decorrência de sua própria natureza, função revestida de estabilidade, sujeitando-se, por isso mesmo, a um regime estrito de direito público. A possibilidade constitucional de a execução dos serviços notariais e de registro ser efetivada 'em caráter privado, por delegação do poder público' (CF, art. 236), não descaracteriza a natureza essencialmente estatal dessas atividades de índole administrativa. As serventias extrajudiciais, instituídas para o desempenho de funções técnico-administrativas destinadas 'a garantir a publicidade, a autenticidade, a segurança e a eficácia dos atos jurídicos' (Lei nº 8.935/94, art. 1º), constituem órgãos públicos titularizados por agentes que se qualificam, na perspectiva das relações que mantêm com o Estado, como típicos servidores públicos (ADIMC = 1378, DJ 30/05/97)'.

Deste modo não há que se olvidar da responsabilidade objetiva do Estado do Paraná, constatada a natureza pública da função exercida pela tabeliã, típica servidora pública, albergada consequentemente pela norma constitucional do artigo 37, §6º, que lhe assegura responder regressivamente pelo dano causado a terceiro.

Ademais, a contagem colimada pela norma constitucional supramencionada é assegurar ao particular o restabelecimento de seu direito, que o agente público venha a lesionar, nessa qualidade, devendo o Estado, deste modo, comprovar a culpa ou dolo da vítima do evento danoso, como enuncia, aliás, a teoria da responsabilidade objetiva da Administração, que reconhecendo a supremacia do ente estatal, compensa o particular exigindo-lhe apenas a demonstração do nexo causal entre o fato lesivo e o dano, obrigando o Estado a evidenciar a sua culpabilidade.

Assim, apresenta-se descabida a tese da subsidiariedade da responsabilidade, agitada no extraordinário face a denunciação de lide e condenação do agente estatal pelo v. acórdão recorrido, pois, aceita-la, eximindo o Estado de sua responsabilidade, seria onerar o particular, vítima do dano(STF, Segunda Turma, Ag. Reg. no RE 209.354-8/PR, j. 02/03/1999, rel. Min. Carlos Velloso).

Deste modo, afasto a objeção.

No mérito propriamente dito, os recursos devem ser desprovidos, com observações no tocante aos critérios de fixação dos juros moratórios e atualização monetária.

Com efeito, dispõem os arts. 186 e 927 do CC de 2002:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Dispõe, ainda, o art. 37, § 6º, da CF, a respeito da responsabilidade objetiva do Estado, enunciando que as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Para que se configure a responsabilidade do Estado, faz-se necessário o preenchimento dos seguintes requisitos: conduta, dano e nexo causal.

Referido dispositivo legal não adotou o princípio do risco integral, e sim a teoria do risco administrativo, pela qual o lesado não precisa demonstrar a culpa da Administração para obter indenização em face de ato danoso causado por seus agentes, responsabilidade estatal que pode ser proporcional ou integralmente afastada com a comprovação, pelo Poder Público, de que o dano resultou de conduta total ou parcialmente imputável ao lesado.

Cabe a responsabilização do Estado não só pela ação, mas pela omissão de seus agentes. Segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro, “a responsabilidade extracontratual do Estado corresponde à obrigação de reparar danos causados a terceiros em decorrência de comportamentos comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos, lícitos ou ilícitos, imputáveis aos agentes públicos (Direito Administrativo, Atlas, 17ª Ed., 2004, p. 548).

Neste sentido, o julgamento da Apelação Cível n° 853.575-5/7-00, Rel. Burza Neto, j. 21/01/2009, nos seguintes termos:

“O Estado é responsável civilmente quando este ente se omitir diante do dever legal de obstar a ocorrência do dano, ou seja, sempre quando o comportamento do órgão estatal ficar abaixo do padrão normal que se costuma exigir.

Assim, pode-se afirmar que a responsabilidade estatal por ato omissivo é sempre decorrente de ato ilícito, porque havia um dever de agir imposto pela norma.

A responsabilidade do Estado por conduta omissiva indaga qual dos fatos foi decisivo para configurar o evento danoso, ou seja, qual fato gerou decisivamente o dano e quem estava obrigado a evitá-lo.

Desta forma, o Estado responderá não pelo fato que diretamente gerou o dano, outrossim, por não ter ele praticado conduta suficientemente adequada para evitar o dano ou mitigar seu resultado, quando o fato for notório ou perfeitamente previsível.”

Nos casos de omissão estatal, contudo, muitos defendem que devem ser aplicadas as regras da responsabilidade civil subjetiva (Teoria da 'Falta' ou Culpa do Serviço). Aliás, nessa hipótese, conforme Maria Sylvia Zanella di Pietro, “entende-se que a responsabilidade não é objetiva, porque decorrente do mau funcionamento do serviço público; a omissão na prestação do serviço tem levado à aplicação da teoria da culpa do serviço público (faute du service); é a culpa anônima, não individualizada; o dano não decorreu de atuação de agente público, mas de omissão do poder público (cf. acórdãos in RTJ 70/704, RDA 38/328, RTJ 47/378)[2]”.

Entretanto, a teoria do risco administrativo, como ensina Hely Lopes Meirelles, “embora dispense a prova da culpa da Administração, permite que o Poder Público demonstre a culpa da vítima para excluir ou atenuar a indenização. Isto porque o risco administrativo não se confunde com o risco integral. O risco administrativo não significa que a Administração deva indenizar sempre e em qualquer caso o dano suportado pelo particular; significa apenas e tão-somente, que a vítima fica dispensada da prova da culpa da Administração, mas esta poderá demonstrar a culpa total ou parcial do lesado no evento danoso, caso em que a Fazenda Pública se eximirá integral ou parcialmente da indenização” (Direito Administrativo Brasileiro, Ed. Malheiros, 29ª ed., 2004, pág. 627).

Destaque-se a afirmação de Yussef Said Cahali[3] ao expor que segue “…a jurisprudência no sentido de não levar a extremos uma concepção de risco integral e absoluto da atividade da Administração por todos esses eventos (que também são da Natureza), procurando estabelecer não sem dificuldade até que ponto se pode determinar a existência da falha do serviço, posta como causa para o reconhecimento da responsabilidade indenizatória”.

Nesse sentido v. aresto desta E. Corte, na Apelação Cível nº 38.458-5/0, rel. Des. Toledo Silva, j. 19.05.1999, com a seguinte passagem:

“No ordenamento jurídico constitucional brasileiro prevalece a teoria do risco administrativo, pelo qual a vítima, para a obtenção do ressarcimento do dano, está dispensada de provar a culpa da Administração ou de seus agentes, bastando provar o dano e o nexo causal. À Administração, para livrar-se da obrigação de ressarcir, é facultado provar que o dano aconteceu por culpa da vítima, competindo-lhe o ônus da prova.”

A discussão em torno do dever estatal de pagamento de indenização, decorrente de sua responsabilidade pelo risco administrativo, parte da premissa de que o dano, efetivamente, ocorreu e de que esse dano guarda relação de causalidade com a atuação ou a falha na atuação estatal.

Pois bem.

Diferentemente do que alegam os réus em suas razões recursais, os elementos coligidos aos autos permitem concluir que os fatos ocorreram na forma relatada na petição inicial.

Com efeito, restou devidamente comprovado que o autor procedeu ao pagamento do ITBI em duplicidade na primeira oportunidade, quando da lavratura da escritura do imóvel, forneceu a quantia de R$ 2.134,00, sendo que R$ 1.000,00 seriam referentes ao pagamento do ITBI, de acordo com o comprovante fornecido e assinado pelo réu Luis Antônio Pereira Ramos, guia nº 1004196, em nome da Prefeitura do Município de Barueri (fls.13); já na segunda oportunidade, diante da falsidade da guia de recolhimento assinada pelo réu Luis Antônio Pereira Ramos (falsidade esta, aliás, que sequer foi impugnada), teve o autor que proceder ao pagamento de R$ 2.295,13 ao Município de Barueri (fls. 15/17), sob pena de ter o seu nome inscrito na dívida ativa municipal.

Ademais, evidenciado está que o réu Luis Antônio, na qualidade de Tabelião Substituto, foi quem lavrou e subscreveu com fé pública, no dia 19 de fevereiro de 2002, a Escritura de Venda e Compra do imóvel do autor (fls. 07/09), e deu recibo ao autor, em nome do “Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas de Jandira, Comarca de Barueri, Estado de São Paulo”, de que recebeu a quantia de R$ 2.134,00 para o pagamento da aludida escritura, certidões, ITBI, registro e honorários.

Portanto, caracterizado o ilícito com a fraude, ou seja, com a falsidade da guia de recolhimento do ITBI pelo Tabelião Substituto, ocasionando danos ao autor, estes devem ser reparados, tanto na esfera material quanto moral, na forma já especificada na r. sentença.

Aliás, importante ponderar, nesse aspecto, que os réus não trouxeram qualquer prova para rechaçar a tese aventada pelo autor, ou mesmo evidências de que a fraude não teria sido cometida, ou que deveria ser atribuída a uma terceira pessoa. O réu Luis Antônio se limitou a sustentar que não possuía atribuição para a prática dos atos, não podendo responder por eles, porém é de absoluta clareza que, à época dos fatos, praticou os fatos como Tabelião Substituto, agindo, se não de forma dolosa, no mínimo com culpa para a obtenção do resultado danoso.

Vale dizer, os danos materiais comportam a quantia de R$ 2,295,13, referente ao pagamento feito pelo autor, a título de ITBI, à Municipalidade, após a ocorrência da fraude na guia de recolhimento pelo Tabelião Substituto.

Por sua vez, comunga-se do entendimento do juízo a quo no sentido de que o dano moral foi provocado pela situação vivenciada, pelo desconforto e indignação a que se pode atribuir ao homem médio, cumpridor de suas obrigações, ao se deparar com situação similar, vítima de fraude por parte de Tabelião e na iminência de ter um débito incluído na dívida ativa municipal, não obstante já ter pago quantia substancial para a regularização de seu imóvel por aquele que é dotado, ressalte-se, de fé pública.

Os fatos ocorridos ocasionaram ao autor sofrimento e profundo abalo psicológico, que superam e muito – o mero aborrecimento ou dissabor.

A respeito da prova do dano moral, preleciona Rui Stoco:

… porque o gravame no plano moral não tem expressão matemática, nem se materializa no mundo físico e, portanto, não se indeniza, mas apenas se compensa, é que não se pode falar em prova de um dano que, a rigor, não existe no plano material.

Mas não basta a afirmação da vítima de ter sido atingida moralmente, seja no plano objetivo como no subjetivo, ou seja, em sua honra, imagem, bom nome, intimidade, tradição, personalidade, sentimento interno, humilhação, emoção, angústia, dor, pânico, medo e outros.

Impõe-se que se possa extrair do fato efetivamente ocorrido o seu resultado, com a ocorrência de um dos fenômenos acima exemplificados (Tratado de Responsabilidade Civil, 7ª edição, 2007).

Realmente, em trabalho sobre a responsabilidade civil o Professor André Tunc, da Universidade de Paris, salientou como o juiz tem deveres redobrados para com a sociedade quando é chamado a julgar casos em que a matéria envolve a responsabilidade civil. É preciso “arregaçar as mangas da camisa”, contribuindo para a proteção da sociedade contra atos que possam torná-la indefesa ou desprotegida. Este é um dos objetivos das responsabilidades penal e civil. E, quanto a esta última, deve ele se preocupar, principalmente, com a indenização que a vítima tem direito.[4] Como lecionou Aguiar Dias, “o problema se prende intimamente ao da causa. Para apreciar a contraprestação, rejeita-se o valor irrisório. Não contém exigir equivalência, palavra que se presta a equívocos. O que se procura é o mínimo de proteção capaz de tornar a injustiça por demais violenta”.[5]

"Na concepção moderna da teoria da reparação de danos morais prevalece, de início, a orientação de que a responsabilização do agente se opera por força do simples fato da violação. Com isso, verificado o evento danoso, surge, ipso facto, a necessidade de reparação, uma vez presentes os pressupostos de direito. Dessa ponderação, emergem duas conseqüências práticas de extraordinária repercussão em favor do lesado; uma, é a dispensa da análise da subjetividade do agente; outra, a desnecessidade de prova do prejuízo em concreto. Nesse sentido, ocorrido o fato gerador e identificadas às situações dos envolvidos, segue-se à constatação do alcance do dano produzido, caracterizando-se o de cunho moral pela simples violação da esfera jurídica, afetiva e moral, do lesado. Ora, essa verificação é suscetível de fazer-se diante da própria realidade fática, pois, como respeita à essencialidade humana, constitui fenômeno perceptível por qualquer homem normal…".

Com efeito: "É que as lesões morais derivam imediata e diretamente do fato lesivo, muitas vezes deixando marcas indeléveis na mente e no físico da vítima, mas outras sob impressões internas, imperceptíveis às demais pessoas, mesmo íntimas. São de resto, as de maior amargor e de mais desagradáveis efeitos para o lesado, que assim pode, a qualquer tempo, reagir juridicamente".

"Essas observações coadunam-se, aliás, com anatureza dos direitos lesados, eis que, como acentuamos, compõem-se o âmago da personalidade humana, sendo identificáveis por qualquer pessoa de senso comum. Uma vez atingidos, produzem os reflexos danosos próprios, de sorte que basta, em concreto, a demonstração do nexo etiológico entre a lesão e o evento” (Carlos Alberto Bittar, in "Reparação Civil por Danos Morais", Ed. RT, 1993, pp. 202/203).

Lembrava ainda Alberto Trabucchi: "O ressarcimento dos danos morais não atende à restitutio in integrum do dano causado; tende mais a uma genérica função satisfativa, com a qual se procura um bem que compense, em certo modo, o sofrimento ou a humilhação sofrida. Se substitui o conceito de equivalência (próprio do ressarcimento), pelo de reparação, que se obtém atenuando de maneira indireta a conseqüência dos sofrimentos daquele que padeceu uma lesão” (Instituciones de Derecho Civil, v. 1/228, Editorial Revista de Derecho Privado, Madri, 1967 (RT 584/229).

No que concerne à fixação do “quantum debeatur” para a reparação dos danos morais, como é cediço, não existem critérios fornecidos pela lei.

Nessa senda, a jurisprudência aponta alguns indicativos que podem servir de parâmetros na fixação do valor de indenização. Em geral recomenda-se evitar o enriquecimento sem causa do beneficiário e, ao mesmo tempo, repreender o agressor de modo perceptível no seu patrimônio. A ideia que se aceita hodiernamente é de se afastar o estímulo ao ilícito.

Esclarecedor sobre o tema é o precedente julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, segundo o qual “o arbitramento da condenação a título de dano moral deve operar-se com moderação, proporcionalmente ao grau de culpa, ao porte empresarial das partes, suas atividades comerciais, e, ainda, ao valor do negócio, orientando-se o juiz pelos critérios sugeridos pela doutrina e pela jurisprudência, com razoabilidade, valendo-se de sua experiência e do bom senso, atento à realidade da vida, notadamente à situação econômica atual, e às peculiaridades de cada caso” (STJ, REsp n. 173.366-SP, 4ª Turma, j. 03-12-1998, rel. Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA).

Diante disso, atento aos princípios da proporcionalidade, razoabilidade e adequação, tendo em conta as circunstâncias que envolveram o fato, as condições pessoais e econômicofinanceiras dos envolvidos, assim como o grau da ofensa moral e a preocupação de não permitir que se transforme em fonte de renda indevida do ofendido, bem como não passe despercebido pela parte ofensora, consistindo, destarte, no necessário efeito pedagógico de evitar futuros e análogos fatos, reputo que o valor fixado pelo juízo de primeiro grau, no importe de R$ 20.000,00, a título de danos morais, se afigura razoável.

Por derradeiro, uma única observação deve ser levada a efeito na r. sentença, destacando-se que, com o advento da Lei nº 11.960, de 29 de junho de 2009, estabeleceu-se novo critério de cálculo dos juros moratórios e da atualização monetária, modificando o texto do art. 1º-F da Lei nº 9.494/97, que passou a viger com a seguinte redação:

Art. 5º. O art. 1º-F da Lei nº 9.494/97, de 10 de setembro de 1997, introduzido pelo art. 4º da Medida Provisória nº 2.180-35, de 24 de agosto de 2001, passa a vigorar com a seguinte redação:

'Art. 1º-F. Nas condenações impostas à Fazenda Pública, independentemente de sua natureza e para fins de atualização monetária, remuneração do capital e compensação da mora, haverá a incidência uma única vez, até o efetivo pagamento, dos índices oficiais de remuneração básica e juros aplicados à caderneta de poupança.’

Necessário esclarecer, dessa forma, que os juros e atualização monetária incidentes sobre as parcelas em atraso deverão observar o disposto na novel norma, no período posterior a sua vigência, entendimento este adotado a partir da publicação do acórdão proferido pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça nos Embargos de Divergência em Recurso Especial de nº 1.207.197-RS (2011/0028141-3), de relatoria do Ministro Castro Meira, publicado em 02 de agosto de 2011, cuja ementa segue abaixo transcrita:

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. JUROS MORATÓRIOS. DIREITO INTERTEMPORAL. PRINCÍPIO DO TEMPUS REGIT ACTUM. ARTIGO 1º-F, DA LEI Nº 9.494/97. MP 2.180-35/2001. LEI Nº 11.960/09. APLICAÇÃO AOS PROCESSOS EM CURSO. 1. A maioria da Corte conheceu dos embargos, ao fundamento de que divergência situa-se na aplicação da lei nova que modifica a taxa de juros de mora, aos processos em curso. Vencido o Relator. 2. As normas que dispõem sobre os juros moratórios possuem natureza eminentemente processual, aplicando-se aos processos em andamento, à luz do princípio tempus regit actum. Precedentes. 3. O art. 1º-F, da Lei nº 9.494/97, modificado pela Medida Provisória 2.180-35 e, posteriormente, pelo artigo 5º da Lei nº 11.960/09, tem natureza instrumental, devendo ser aplicado aos processos em tramitação. Precedentes. 4. Embargos de divergência providos.

Ante o exposto, pelo meu voto, nego provimento aos recursos, com a observação de que os juros moratórios serão de 1% ao mês e a atualização monetária deverá se dar pela Tabela Prática do Tribunal de Justiça de São Paulo, até o advento da Lei nº 11.960/09, momento a partir do qual deverão observar o disposto na novel norma.

OSCILD DE LIMA JÚNIOR Relator.


Notas:

[1] Efetividade do Processo e Técnica Processual, 3ª ed., 2010, São Paulo, Malheiros, p. 287.

[2] Direito Administrativo, 20ª ed., 2007, São Paulo, Ed. Atlas, p. 602/603.

[3] Responsabilidade Civil do Estado, 2.ª edição, Malheiros, p. 465.

[4] La Responsabilité Civile, Paris, 1981, pp. 108 e 109; in apelação nº 358.886-4, 7º Câmara, j. 10.02.1987, rel. Juiz Luiz de Azevedo, RT 623/101.

[5] Cláusula de Não Indenizar, Forense, 4º, 1980, pp. 129/130.

Fonte: Boletim Eletrônico INR nº 5877. Publicação em 10/06/2013.


Inventário e partilha em cartório com testamento caduco ou revogado

Por Elza de Faria Rodrigues

A lei 11.441/07 atribuiu ao Tabelião de Notas a possibilidade de lavratura de inventários e partilhas por meio de escritura pública, desde que haja consenso entre as partes, sejam todos maiores e capazes e que o autor da herança não tenha deixado testamento.

O tabelião somente lavrará a escritura se as partes estiverem acompanhadas por advogado, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.

Com a recente atualização do capítulo XIV (Do Tabelionato de Notas) das normas de serviço da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo (Tomo II – Cartórios Extrajudiciais), itens 129 e 129.1, atualmente é possível a lavratura de escritura pública de inventário e partilha mesmo com a existência de testamento do falecido. Anteriormente, a simples existência de testamento remetia o inventário e partilha para a esfera judicial.

Para que seja possível a lavratura desta escritura, o testamento do falecido deve ter sido revogado, estar caduco ou ter sido invalidado judicialmente por meio de decisão já transitada em julgado.

A revogação do testamento deve ser total, pois, se apenas parcialmente revogado, o inventário e a partilha devem ser processados judicialmente. Sobre a caducidade das cláusulas testamentárias, elas devem ser totais e provadas documentalmente para que o tabelião possa lavrar a escritura pública de inventário e partilha.

Importante ressaltar que o testamento pode conter disposições irrevogáveis, seja por determinação do testador ou em razão da lei, tais como o reconhecimento de filho e o perdão do indigno. Nestes casos, mesmo havendo revogação total do testamento, tais disposições não são invalidadas, logo o inventário e partilha deverão ser efetuados na esfera judicial.

Nesse sentido, as normas da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo inovaram e, sabiamente, passaram a admitir a lavratura de escritura de inventário e partilha quando há testamento revogado ou caduco ou quando o testamento for invalido, por decisão judicial com trânsito em julgado, declarando a invalidade do testamento. Desta forma, o tabelião deverá solicitar a certidão de testamento e, verificada a inexistência de disposição testamentária irrevogável, como o reconhecimento de filho, poderá celebrar a escritura pública de inventário e partilha. Entretanto, se houver disposição reconhecendo filho, ou qualquer outra declaração irrevogável, a escritura será vedada e o inventário deverá ser realizado pela via judicial.

Em entrevista ao Jornal do Notário, o juiz auxiliar da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo, dr. Gustavo Henrique Bretas Marzagão, declarou que "a reforma das Normas tem por escopo desburocratizar os serviços notariais e de registro, tornando-os mais céleres, eficientes e, quando possível, digitais, eliminando-se o suporte papel".

Por fim, as normas da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo deram preferência a uma linguagem exata e real, menos amoldada a modelos clássicos e obsoletos.

____________

* Elza de Faria Rodrigues é 4ª tabeliã de notas de Osasco/SP.

Fonte: Migalhas. Publicação em 03/06/2013.


CGJ/SP: Provimento n°. 14/2013 autoriza a participação do notário no procedimento de dúvida registral

PROVIMENTO CG N° 14/2013

Adicionar os subitens 30.4.1. e 30.4.2. à Seção II do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça.

O Desembargador JOSÉ RENATO NALINI, Corregedor Geral da Justiça do Estado de São Paulo, no uso de suas atribuições legais;CONSIDERANDO as características da sociedade moderna, a evolução do direito objetivo, a abertura do sistema jurídico e a necessidade de aperfeiçoamento do texto da normatização administrativa;

CONSIDERANDO a relevância do procedimento de dúvida registral, a finalidade da função pública notarial, a democratização do acesso à justiça e o escopo de aprimorar as decisões judiciais no âmbito administrativo;

CONSIDERANDO o exposto, sugerido e decidido nos autos do processo n.º 2012/00124108 – DICOGE 1.2;

RESOLVE:

Artigo 1º – Adicionar os subitens 30.4.1. e 30.4.2. à Seção II do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, com as seguintes redações:

30.4.1. O Juiz Corregedor Permanente, diante da relevância do procedimento de dúvida e da finalidade da função pública notarial, poderá, antes da prolação da sentença, admitir a intervenção espontânea do tabelião de notas que lavrou a escritura pública objeto da desqualificação registral ou solicitar, por despacho irrecorrível, de ofício ou a requerimento do interessado, a sua manifestação facultativa, no prazo de quinze dias de sua intimação.

30.4.2. A intervenção tratada no subitem anterior independe de representação do tabelião por advogado, de oferecimento de impugnação e não autoriza a interposição de recurso.

Artigo 2º – Este provimento entra em vigor na data em que publicado.

São Paulo, 29/04/2013.
(03, 07 e 09/05/2013)

Processo nº 2012/124108 – CAPITAL – COLÉGIO NOTARIAL DO BRASIL – CONSELHO FEDERAL – CNB/CF e CNB/SP

Parecer nº 143/2013-E

TABELIÃO DE NOTAS – Apresentação do título com origem notarial para registro – Tolerância – Atuação como mensageiro – Suscitação de dúvida – Requerimento – Falta de legitimidade – Intervenção de terceiros e assistência – Vedação – Precedentes do Conselho Superior da Magistratura – Participação espontânea no procedimento de dúvida ou mediante provocação da autoridade judicial – Amicus curiae – Admissibilidade – Democratização do procedimento administrativo – Atividade de colaboração voltada ao aperfeiçoamento das decisões judiciais – Modificação pontual do capítulo XX das NSCGJ – Cabimento – Princípio da Informalidade – Acolhimento parcial da proposta formulada pelo CNB/CF e pelo CNB/SP.

Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça:

O Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal (CNB/CF) e a seccional do Estado de São Paulo (CNB/SP) apresentaram proposta com o intuito de assegurar ao notário participação no procedimento de dúvida, como terceiro interessado, escorados na função notarial atribuída aos tabeliães de notas e na instrumentalidade da garantia registraria, e, por conseguinte, sugeriram a edição do seguinte texto normativo (fls. 02/06):

É facultado ao tabelião requerer e realizar ante os registros e repartições públicas em geral e perante quaisquer pessoas as gestões e diligências convenientes ou necessárias ao preparo, à validade e à eficácia dos atos notariais, requerendo o que couber, podendo, inclusive, requerer a suscitação ou participar do procedimento de dúvida, a pedido da parte interessada. (grifei)

Ao manifestar-se, a Associação dos Notários e Registradores do Estado de São Paulo (Anoreg/SP) acedeu à proposta agitada, ao acrescentar, em proveito da normatização sugerida, a conclusão alcançada no 2.º encontro do 5.º Ciclo do Café com Jurisprudência, organizado pela Escola Paulista da Magistratura (EPM), sob a coordenação do Desembargador Ricardo Henry Marques Dip, ocorrido em 21 de setembro de 2012 (fls. 16/19).

Já a Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo (Arisp) opinou contrariamente, porque, com fundamento em antigos precedentes do Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, sustenta a inadmissibilidade da participação do tabelião de notas no procedimento de dúvida, quer requerendo a suscitação, quer impugnando as razões do Oficial, quer interpondo recurso contra a sentença de procedência (fls. 24/34).

O CNB/SP, por fim, manifestou-se a respeito das ponderações da ARISP (fls. 40/44).

É o relatório. OPINO.

Conforme o artigo 198, caput, da Lei n.º 6.015, de 31 de dezembro de 19731, o apresentante, inconformado com juízo negativo de qualificação registral ou porque impossibilitado de satisfazer a exigência formulada, tem a faculdade de requerer, ao oficial de registro, a suscitação de dúvida.

O apresentante do título não será necessariamente o interessado em seu registro, aquele que sofrerá os efeitos jurídicos do ato registral pretendido, com legitimidade para impugnar a dúvida suscitada e recorrer da sentença proferida no procedimento
administrativo correspondente.

A compreensão que assimilava o apresentante ao interessado, então considerados vocábulos sinônimos2, encontra-se, nos dias atuais, superada.3
Lapidar, nesse sentido, a lição retirada de acórdão modelar lavrado, no dia 14 de março de 1986, nos autos da Apelação Cível n.º 5.227-0, relator Desembargador Sylvio do Amaral:

… A Lei dos Registros Públicos só confere o direito de recurso contra decisão judicial – assim como o próprio direito de participação no processo de dúvida – ao interessado na anotação recusada, isto é, a quem detenha interesse, juridicamente protegido, na efetivação do registro. Isso, evidentemente, não ocorre com o Tabelião que lavrou a escritura impugnada; pode ele, como “qualquer pessoa” (art. 217, lei 6.015), ser o “apresentante” do título, mas não é interessado no registro pretendido.

É certo, como relata o parecer de fls. 46, que o Conselho já teve ocasião de adotar, na interpretação da lei, entendimento mais lato do vocábulo “interessado”, para incluir nesse conceito o mero “apresentante” a que se refere a Lei dos Registros Públicos. Mas, esse entendimento não é o melhor, e deve ser reconsiderado – nos termos, aliás, de decisões subseqüentes do Conselho, indicadas pelo M. Juiz Corregedor.

Na sistemática da Lei dos Registros Públicos deve-se entrever uma fase inicial de “apresentação” do título ao Oficial ou ao Juiz Corregedor, seguida, nesta hipótese, de outra fase, distinta daquela, de processamento da Dúvida conseqüente. O apresentante do título dirige-se ao Oficial do Registro e, se este recusar atendê-lo, provoca a decisão do Juiz Corregedor do Cartório, requerendo ao Oficial que suscite Dúvida. Este incidente é submetido a procedimento próprio – em que, entretanto, o mero apresentante já não tem qualidade para intervir.

A Lei distingue inequivocamente entre o “apresentante” e o “interessado” no registro. Ao apresentante do título, confere apenas a capacidade praticar os atos que são conceitualmente inerentes à sua condição: apresentar o título para registro e provocar a decisão do Juiz, se não se convencer das razões de recusa do Oficial (art. 198); ou desistir do registro pretendido (art. 206), tornando sem efeito a apresentação.

Se houver a provocação da decisão judicial, só o interessado no título terá legitimidade para intervir no processamento da Dúvida (art. 200), para recorrer da decisão do Juiz (art. 202) e para executar a coisa julgada (art. 203, II), arcando com as despesas, se vencido (art. 207).

Da dicotomia conscientemente feita pelo legislador, resulta claro que a capacidade do apresentante termina com a provocação do pronunciamento judicial – sem direito de participar do procedimento resultante de seu requerimento e, muito menos, de manifestar, mediante recurso, sua inconformidade com a decisão do Juiz Corregedor do Cartório.

Aliás, como a Dúvida não passa, em essência, de consulta formulada ao Corregedor pelo Oficial do Registro – também a ele o sistema legal nega legitimidade para recorrer ou, até, para intervir no procedimento depois de apresentada a inicial. E assim sendo, como acentua o parecer do M. Juiz Corregedor, representaria contra-senso conferir a lei direito de recurso a quem lavrou a escritura e não dar igual tratamento ao serventuário que a considerou não registrável.

Por todas essas razões, não conhecem da apelação. (grifei)

Nada obstante o comando emergente do artigo 217 da Lei n.º 6.015/19734, o apresentante – cuja rogação é indispensável para a instauração do procedimento de dúvida (princípio da instância) –, não pode, a partir de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico em vigor, ser o tabelião de notas que lavrou a escritura pública exibida para registro.

A atividade tabelioa, malgrado não se restrinja à função pública notarial (audiência das partes, consultoria e assessoramento jurídicos, qualificação das manifestações de vontade, documentação dos fatos, atos e dos negócios jurídicos e atos de autenticação), e contemple a prática de atos direcionados à consecução dos atos notariais, não abarca a apresentação do título para inscrição imobiliária.

Trata-se de ato estranho à atividade notarial, sequer oportunizado pela norma extraída do parágrafo único do artigo 7.º da Lei n.º 8.935, de 18 de novembro de 1945, pois não se caracteriza como gestão ou diligência necessária ou conveniente ao preparo do ato notarial: realmente, é ato posterior ao seu aperfeiçoamento.

Mais: a apresentação do título com origem notarial é incompatível com a atividade tabelioa. O notário está privado de agir como representante dos interessados. Haveria, aqui, com efeito, desempenho de atividade inconciliável com a função pública notarial exercida (é incompatível a assunção da função tabelioa com a de representante), com potencialidade para avançar sobre campo funcional reservado à advocacia.

Além disso, por atuar em confiança das partes, o tabelião não pode, sem autorização delas, levar o título a registro; agir como gestor de negócios, intermediário; atuar por conta e no interesse do dominus negotii.

Agora – apenas para argumentar –, admitida fosse tal atuação, à luz de uma visão estreita do artigo 217 da Lei n.º 6.015/19736, atomizada e dissociada do todo, em desdouro da fidúcia característica da atividade notarial, incumbiria ao tabelião,por força dos termos expressos da regra focalizada, suportar as despesas correspondentes ao ato registral, o que se afigura sem sentido e reforça a vedação sustentada.

De todo modo, é verdade, a Egrégia Corregedoria Geral da Justiça tem tolerado a atuação do tabelião como “mero portador da escritura” ao oficial de registro.7
Admite-se, porque favorável ao interessado, decorrência natural da atividade exercida e, atualmente, com mais razão, diante das complexidades da vida contemporânea, que o notário aja como mensageiro, núncio, desenvolvendo, em exaurimento dos serviços prestados, uma função meramente material, ao encaminhar o título notarial ao Registro de Imóveis.

Todavia, isso não implica sua equiparação à figura legal do apresentante. E sob essa perspectiva deve ser absorvida a faculdade de apresentar o título a registro, reconhecida ao tabelião na Apelação Cível n.º 5.227-0, cujos principais trechos foram acima reproduzidos. Caso contrário, seria inarredável, à luz do artigo 198, caput, da Lei n.º 6.015/19738, admitir sua legitimidade para requerer suscitação de dúvida, refutada, há tempos, e inclusive no precedente a que se fez alusão, pela jurisprudência administrativa do Tribunal de Justiça de São Paulo.9

Por sua vez, e na trilha do raciocínio desenvolvido, o tabelião não se qualifica como interessado legitimado a impugnar a dúvida e a interpor recurso contra a decisão que a julgou. Eventuais interesses de fato, econômicos, morais, subjetivados na pessoa do notário, são insuficientes para autorizar sua participação no procedimento administrativo em destaque.

A recusa de registro do ato notarial não repercute sobre a situação jurídica do tabelião. A desqualificação, ao expressar juízo negativo extrajudicial que recai sobre a qualificação notarial, não afeta, por si, sua posição jurídica individual, a sua esfera de direitos e obrigações. Não basta sequer, especialmente diante de seus estreitos limites, para configurar ilícito ou infração administrativa. Da mesma maneira, o julgamento procedente da dúvida, que ocorre na seara administrativa.

A desqualificação registral do título notarial e o julgamento da dúvida não interferem, para fins obrigacionais, indenizatórios, compensatórios e sancionatórios, na situação jurídica do notário, não emascula a sua independência jurídica, não determina a invalidade do negócio jurídico nem a imposição de sanção disciplinar.

Aliás, a regra do artigo 204 da Lei n.º 6.015/1973, em termos peremptórios, e sintomaticamente, prevê: “a decisão da dúvida tem natureza administrativa e não impede o uso do processo contencioso competente.” Assim sendo, sob a ótica exclusiva do interesse jurídico do tabelião, apreendido no seu sentido individual, tradicional do termo, não há justificativa a determinar sua intervenção no procedimento administrativo de dúvida.

Em resumo: o notário não se encaixa na figura do interessado legitimado a impugnar a dúvida suscitada (artigo 199 da Lei n.º 6.015/197310), tampouco na do terceiro prejudicado qualificado a interpor apelação contra a sentença exarada no procedimento de dúvida (artigo 202 da Lei n.º 6.015/197311), particularmente porque, insisto, os efeitos do ato registral visado e da desqualificação registral são-lhe, sob o ponto de vista tradicional, juridicamente irrelevantes.

Também por isso, ou seja, porque a existência ou a inexistência de direitos e obrigações do tabelião independe da qualificação registral do ato notarial e do julgamento da dúvida, não lhe é oportunizado o ingresso, como assistente, no procedimento administrativo, onde, firmado o dissenso entre o registrador e o interessado, inexiste lide.

A esse respeito, consoante reiteradamente decidido pelo Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, não se admite, no procedimento de dúvida – ressalvado o recurso manejado pelo terceiro juridicamente prejudicado –, a assistência ou a intervenção de terceiros.12

Contudo, com temperamentos, convém facultar, ao tabelião, a participação no procedimento de dúvida, não, porém, realço, na condição de interessado, de terceiro juridicamente interessado legitimado a interpor recurso ou assistente, enfim, sob a roupagem de figuras tradicionais, mas na posição de amicus curiae, de alguém que – jurista no exercício de atividade pública pautada pela confiança do Estado, profissional do direito “com vocação primacial ao que é justo”13 –, pode contribuir, com os seus conhecimentos, para a remoção dos obstáculos postos ao registro do título que lavrou e, por conseguinte, para a segurança jurídica, a eficácia e publicidade do negócio jurídico por meio dele formalizado.

Com a atualização e a revisão do capítulo XIV das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, quando se buscou, a par da intensificação da responsabilidade do notário, valorizar a atividade tabelioa, acentuou-se a qualidade de jurista do tabelião. Encorajou-se o desempenho da qualificação notarial. A propósito, reproduzo trechos do parecer atrelado à edição do Provimento CG n.º 40/2012:

O tabelião não é um escrevinhador, simples redator de documentos, um batedor de carimbos, um chancelador. É profissional do direito, jurista titular de fé pública, cuja atividade – fundada na independência e na confiança do Estado e das pessoas – é preordenada a garantir a segurança jurídica e a paz social. É um agente público, malgrado não titularize cargo nem ocupe emprego público. Exerce atividade fundamental à prevenção de conflitos. (…).Uma ótica exclusivamente burocrática, asséptica, neutra, da atividade notarial – com destaque para a solenidade típica de certos atos e negócios jurídicos, a forma exigida como veículo da exteriorização da manifestação de vontade e a preconstituição da prova –, desacompanhada da visão centrada na segurança jurídica, finalidade precípua da função notarial, enfraquece, mediatamente pelo menos, a posição do tabelião. Desvaloriza, em detrimento da justiça preventiva e da paz social, a função desempenhada por ele. (…).

Dentro desse contexto, a proposta de atualização e revisão do capítulo XIV das NSCGJ evidencia a importância, a relevância da atividade tabelioa, valoriza o tabelião, coloca em destaque o amálgama entre a função de jurista e a de gestor de serviço público e insere-os no atual quadro normativo, enriquecido pelas diretrizes do Código Civil de 2002 (eticidade, socialidade e operabilidade14), pelo declínio do dogma da vontade e pelo surgimento de novos princípios contratuais (a boa-fé objetiva, o equilíbrio econômico do contrato e função social do contrato15).

Em tempos pós-modernos, na sociedade de risco na qual vivemos – identificada pela pluralidade de atores, pela despersonalização e assimetria das relações jurídicas, pela hipercomplexidade, pela velocidade das comunicações, pela industrialização e pelo avanço tecnológico –, a função tabelioa encontra campo propício à sua valorização, ao incremento de seu prestígio, pois escorada na confiança, no valor que “viabiliza o funcionamento do sistema, na medida em que reduz a complexidade social ao desprezar as variáveis abstratas, distantes e complicadas.”16 (grifei)

Nessa linha, justifica-se a inovação proposta. Isto é, requerida a suscitação de dúvida registral e, assim, insinuada a irresignação do interessado quanto às exigências impeditivas do assento registral, revela-se oportuno – em prestígio da independência jurídica do tabelião, de sua vocação para o aprimoramento do direito, da dessacralização dos registros públicos e com vistas à eficácia da lei, à tutela da segurança jurídica e à prevenção de litígios –, franquear-lhe a participação no procedimento de dúvida.

É razoável, também, porque a medida, ao lado de enriquecer a discussão rumo à tutela do interesse público e democratizar o debate em uma sociedade marcadamente plural, afina-se com vossa concepção desburocratizante, instrumental do registro público, funcionalizado em prol da segurança jurídica, e atende ao interesse do administrado, daquele sobre cuja situação jurídica se irradiarão os efeitos positivos do ato registral colimado, o que é essencial para a flexibilização procedimental sugerida.

Com propriedade, Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari, quando tratam do princípio da informalidade (ou do informalismo), integrante da base principiológica do processo administrativo, ressaltam: “este princípio melhor seria identificado pela designação ‘informalidade em favor do administrado’, pois é este o titular da garantia da forma, sendo que somente em seu benefício pode haver alguma informalidade.”17

Destarte, a menor solenidade e rigidez do processo administrativo, estendida ao procedimento administrativo próprio da dúvida registral, possibilita, no caso vertente, a solução planeada, inclusive porque idealizada para resguardar a segurança jurídica, prevenir litígios, aperfeiçoar o processo decisório e facilitar o registro do título.

O que projeta o tabelião para dentro do processo administrativo e define a sua atuação – cooperativa, no plano da formação do convencimento judicial, impossibilitada de ampliar o objeto do dissenso e imparcial, no sentido de desvinculada dos interesses e direitos subjetivados no interessado –, é um interesse jurídico diferenciado, que não está centrado em uma pessoa, então captado, com perfeição, por Cassio Scarpinella Bueno, que o denomina institucional:

… o interesse que motiva (que legitima) a atuação do amicus curiae em juízo é “jurídico”. Mas é um “jurídico” diferenciado, que não pode ser confundido ou assimilado com o interesse que conduz um “assistente” ou outro “terceiro” qualquer a um processo entre outras pessoas para nele intervir das variadas formas que o nosso direito, tradicionalmente, lhe reconhece. Não se trata, isto é certo, de um interesse jurídico subjetivado. Mas se trata, com essas ressalvas, de um interesse que é jurídico. É um interesse jurídico porque é previsto, porque é agasalhado, porque é tutelado, pela ordem jurídica considerada como um todo. E, se é assim, no plano do “direito material”, não há razão para que não o seja também no plano do direito processual. É interesse jurídico, portanto.

Afirmar que o interesse que motiva (que legitima) a atuação do amicus curiae em juízo é “público”, por sua vez, resolve poucos dos nossos problemas. (…). O interesse que motiva (que legitima) a atuação do amicus curiae, com essas ressalvas, entretanto, é público.

Se, pois, é certo, que há algo de “diferente” no jurídico e no público que legitimam a intervenção do amicus curiae, convém que a ciência o designe diferentemente. Justamente para evidenciar que, do ponto de vista do direito, são coisas diversas. E por isso – só por isso – é que propomos o emprego do nome “interesse institucional” como designativo do interesse que justifica, legitima, o ingresso do amicus curiae.

O interesse institucional, contudo, é interesse jurídico, especialmente qualificado, porque transcende o interesse individual das partes. E é jurídico no sentido de estar previsto pelo sistema, a ele pertencer, e merecedor, por isso mesmo, de especial proteção ou salvaguarda. …

Nesse sentido, o “jurídico” do interesse deve ser capturado não mais a partir de uma específica relação jurídica deduzida em juízo, mas, diferentemente, a partir de seu estado “bruto” na sociedade ou, quando menos, em um específico grupo suficientemente organizado ou, ainda, no próprio Estado, nas suas variadas funções e facetas, mas sempre voltado ao atingimento da finalidade pública “primária”. …18 (grifei)

Em outras palavras: a concepção tradicional de interesse jurídico – aquela que, egoísta, informa as intervenções de terceiro previstas no Código de Processo Civil e, no procedimento de dúvida, define o interessado e legitima a participação do terceiro recorrente, desautorizando, em compensação, a do tabelião –, convive com a ideia evoluída de interesse jurídico, associada à satisfação de interesses públicos primários19, adequada para orientar a atuação de novas figuras processuais, como a do amicus curiae, e justificar, nessa qualidade, o ingresso do notário, voltado à melhor aplicação do direito objetivo, em sintonia com sua finalidade, a sua missão institucional.

Não há, sob esse prisma, incompatibilidade entre a vedação da intervenção de terceiro – reservada a possibilidade do recurso do terceiro juridicamente interessado –, e a prospectiva previsão normativa da participação do notário como amicus curiae.

Nota-se hipótese idêntica, inspiradora, portanto, no tratamento legalmente dispensado à ação direta de inconstitucionalidade: a par de impedir a intervenção de terceiros, por força do caráter objetivo do processo de fiscalização abstrata de constitucionalidade, admite a participação do amicus curiae (artigo 7.º, caput e § 2.º, da Lei n.º 9.868/199920).

E sobre a questão, pinço passagens eloquentes do voto condutor do eminente Ministro Celso de Mello, proferido no julgamento do Agravo Regimental na Ação Direita de Inconstitucionalidade n.º 2.130-3, em 03 de outubro de 2001:

É certo – não obstante as considerações que venho de fazer – que a regra inovadora constante do art. 7º, § 2º, da Lei n.º 9.868/99 abrandou, em caráter excepcional, o sentido absoluto da vedação pertinente à intervenção de terceiros, passando, agora, a permitir o ingresso de entidades dotadas de representatividade adequada no processo de controle abstrato de constitucionalidade, sem conferir-lhes, no entanto, todos os poderes processuais inerentes aos sujeitos que ordinariamente possuem legitimação para atuar em sede jurisdicional concentrada.
(…).

A regra inscrita no art. 7º, § 2º da Lei n.º 9.868/99 – que contém a base normativa legitimadora da intervenção processual do amicus curiae – tem por objetivo pluralizar o debate constitucional, permitindo que o Supremo Tribunal Federal venha a dispor de todos os elementos informativos possíveis e necessários à resolução da controvérsia.

Vê-se que a aplicação da norma legal em causa – que não outorga poder recursal ao amicus curiae – não só garantirá maior efetividade e legitimidade às decisões deste Tribunal, mas, sobretudo, valorizará, sob uma perspectiva eminentemente pluralística, o sentido essencialmente democrático dessa participação processual, enriquecida pelos elementos de informação e pelo acervo de experiências que esse mesmo amicus curiae poderá transmitir à Corte Constitucional, notadamente em um processo – como o de controle abstrato de constitucionalidade – cujas implicações políticas, sociais, econômicas, jurídicas e culturais são de irrecusável importância e de inquestionável significação.

A progressiva abertura do sistema jurídico pátrio, a constitucionalização do direito processual e a consolidação da visão de direito processual constitucional21 importam a democratização do acesso à justiça, a transformação qualitativa do princípio do contraditório, robustecido por sua perspectiva cooperativa22, a aceitação de outra noção de interesse jurídico (não excludente da tradicional), a admissão do amicus curiae e, particularmente, na situação versada, respaldam a contribuição do notário no procedimento de dúvida registral, com escopo instrutório, como fonte de informações dirigida à obtenção da decisão mais justa.

Sob outro enfoque, o dinamismo, as contradições e a complexidade da multifacetada sociedade moderna – sociedade em profunda transformação, sociedade da modernidade fluida, segundo Bauman, sociedade de risco, nas palavras de Ulrich Beck, palco de incertezas e ambivalências –, a proliferação de leis especiais, diplomas setoriais e a disseminação da técnica legislativa das cláusulas gerais aconselham, igualmente, em busca da decisão ótima, a participação cooperativa do tabelião.

A forte impactação social das decisões proferidas no procedimento de dúvida, o seu intenso efeito persuasivo, sua aptidão para influenciar julgamentos futuros e a sua potência normativa, vinculativa, são outros fatores que legitimam a atuação do notário como amicus curiae.

Por outro lado, a participação do amicus curiae no processo administrativo não é estranha, consoante perspicazmente anotado por Cassio Scarpinella Bueno, que, após lembrar o estabelecido nos artigos 31, 32 e 33 da Lei n.º 9.784, de 29 de janeiro de 1999, e nos artigos 28, 29, 30 e 31 da Lei Estadual n.º 10.177, de 30 de dezembro de 1998, pondera:

… O que releva destacar é que, também no “processo administrativo”, a figura de um terceiro catalogável de amicus curiae passa a ser, na lógica da própria lei, um colaborador importante para o proferimento de decisões que levem em consideração os interesses “dispersos” pela sociedade, nem sempre devidamente apreciados pela manifestação daqueles diretamente envolvidos ou diretamente afetados pela atuação da Administração Pública.23

Em suma, impõe permitir ao tabelião de notas, na qualidade de amicus curiae – independentemente de representação por advogado, e desde que antes da prolação da sentença –, a intervenção espontânea no procedimento de dúvida, ou mediante solicitação do MM Juiz Corregedor Permanente, de ofício ou após provocação do interessado, com dedução de manifestação voltada à aptidão registral do ato notarial que lavrou, em harmonia com a finalidade da função notarial.

A proposta, de resto, lastreada na espontaneidade, na facultatividade da participação do tabelião de notas e na limitação de seu poder de atuação, prestigiada, ainda, pela textual exclusão de sua legitimidade recursal, é coerente com a concepção do amicus curiae, além de conciliar, a partir de um balanceamento dos bens em conflito, os valores constitucionais tutelados por meio da intervenção com as garantias de efetividade e celeridade processuais.

Pelo todo aduzido, o parecer que respeitosamente submeto à elevada apreciação de Vossa Excelência propõe a) o acolhimento parcial da proposta apresentada pelo Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal (CNB/CF) e pela sua seccional do Estado de São Paulo (CNB/SP), com admissão da participação do tabelião de notas no procedimento de dúvida registral nos termos acima sugeridos, e b) a edição de Provimento regrando a atuação do notário como amicus curiae, conforme minuta que segue anexa.

Sub censura.

São Paulo, 25 de abril de 2013.

(a) LUCIANO GONÇALVES PAES LEME
Juiz Assessor da Corregedoria

DECISÃO: Aprovo o parecer do MM. Juiz Assessor da Corregedoria e, por seus fundamentos, que adoto, acolho parcialmente a proposta do CNB/CF e do CNB/SP para admitir a participação do tabelião de notas no procedimento de dúvida, na qualidade de amicus curiae.

Edite-se Provimento, conforme a minuta exibida, publicando-o, por três vezes, em dias alternados, no DJE, acompanhado, apenas na primeira delas, do parecer no qual amparado.

Encaminhem-se cópias do parecer, desta decisão e do Provimento ao CNB/CF, ao CNB/SP, à Anoreg e à Arisp.

Publique-se.
São Paulo, 29 de abril de 2013.

(a) JOSÉ RENATO NALINI
Corregedor Geral da Justiça

NOTAS

1. Artigo 198. Havendo exigência a ser satisfeita, o oficial indicá-la-á por escrito. Não se conformando o apresentante com a exigência do oficial, ou não a podendo satisfazer, será o título, a seu requerimento e com a declaração de dúvida, remetido ao juízo competente para dirimi-la, obedecendo-se ao seguinte: (…).
2.CSM – Apelações Cíveis n.º 1.675-0, n.º 1.630-0 e n.º 2.178-0, julgadas, respectivamente, em 28.02.1983, 25.03.1983 e 02.05.1983, relator Desembargador Bruno Affonso de André; CSM – Apelação Cível n.º 3.553-0, julgada em 03.12.1984, relator Desembargador Marcos Nogueira Garcez.
3.CSM – Apelação Cível n.º 504-6/2, julgada em 18.05.2006, relator Desembargador Gilberto Passos de Freitas.
4. Artigo 217. O registro e a averbação poderão ser provocados por qualquer pessoa, incumbindo-lhe as despesas respectivas.
5. Artigo 7º. (…).
Parágrafo único. É facultado aos tabeliães de notas realizar todas as gestões e diligências necessárias ou convenientes ao preparo dos atos notariais, requerendo o que couber, sem ônus maiores que os emolumentos devidos pelo ato.
6 Cf. nota 4.
7.CSM – Apelação Cível n.º 3.553-0, relator Desembargador Marcos Nogueira Garcez, julgada em 03.12.1984.
8 Cf. nota 1.
9 CSM – Apelação Cível n.º 3.553-0, relator Desembargador Marcos Nogueira Garcez, julgada em 03.12.1984. Neste precedente, aliás, constou não ser possível admitir “que o tabelião, arvorando-se em procurador do adquirente, exerça verdadeira advocacia administrativa, requeira dúvida e a impugne em nome próprio.”
10 Artigo 199. Se o interessado não impugnar a dúvida no prazo referido no item III do artigo anterior, será ela, ainda assim, julgada por sentença.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6216.htm – art201§1
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6216.htm – art202
11 Artigo 202. Da sentença, poderão interpor apelação, com os efeitos devolutivo e suspensivo, o interessado, o Ministério Público e o terceiro prejudicado.
12 Apelação Cível n.º 176-0, relator Desembargador Adriano Marrey, julgada em 02.10.1980; Apelação Cível n.º 510-0, relator Desembargador Bruno Affonso de André, julgada em 14.09.1981; Apelação Cível n.º 782-0, relator Desembargador Bruno Affonso de André, julgada em 23.08.1982; Apelação Cível n.º 23.780-0/7, relator Desembargador Antônio Carlos Alves Braga, julgada em 11.05.1995; Apelação Cível n.º 22.417-0/4, relator Desembargador Antônio Carlos Alves Braga, julgada em 31.08.1995;
Apelação Cível n.º 964-6/0, relator Desembargador Ruy Camilo, julgada em 16.06.2009; Apelação Cível n.º 1.163-6/2, relator Desembargador Reis Kuntz, julgada em 20.10.2009.
13 Ricardo Dip. Prudência notarial. São Paulo: Quinta editorial, 2012. p. 33.
14 Miguel Reale. História do novo Código Civil. In: Coleção biblioteca de Direito Civil: estudos em homenagem ao professor Miguel Reale. Miguel Reale e Judith Martins-Costa (coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 37-42. v. 1.
15 Os princípios do atual direito contratual e a desregulamentação do mercado. Direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento. Função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para o inadimplemento contratual. In: Estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 137-147. p. 140.
16 Carlos Nelson Konder. A proteção pela aparência como princípio. In: Princípios do direito civil contemporâneo. Maria Celina Bodin de Moraes (coord.). Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 111-133. p. 113.
17 Processo administrativo. 3.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 125. Compartilham, entre outros, o mesmo entendimento, Hely Lopes Meirelles (Direito Administrativo brasileiro. 19.ª ed. Atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 589), Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo. 11.ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 364-365), Diogenes Gasparini (Direito Administrativo. 6.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 785) e Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito Administrativo. 13.ª ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 500-501).
18 Amicus Curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. 3.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. P. 459-461.
19 Conforme Celso Antônio Bandeira de Mello, o interesse público primário é aquele “que a lei aponta como sendo o interesse da coletividade: o da observância da ordem jurídica estabelecida a título de bem curar o interesse de todos.” (Curso de Direito Administrativo. 11.ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 32).
20 Artigo 7.º Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação direta de inconstitucionalidade.
§ 1º. (vetado).
§ 2º. O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.
21 Segundo Cândido Rangel Dinamarco, “também é dos tempos modernos a ênfase ao estudo da ordem processual a partir dos princípios, garantias e disposições de diversas naturezas que sobre ela projeta a Constituição. Tal método é o que se chama direito processual constitucional e leva em conta as recíprocas influências existentes entre a Constituição e a ordem processual.
De um lado, o processo é profundamente influenciado pela Constituição e pelo generalizado reconhecimento da necessidade de tratar seus institutos e interpretar a sua lei em consonância com o que ela estabelece. De outro, a própria Constituição recebe influxos do processo em seu diuturno operar, no sentido de que ele constitui instrumento eficaz para a efetivação de princípios, direitos e garantias estabelecidos nela e muito amiúde transgredidos, ameaçados de transgressão ou simplesmente questionados.” (Instituições de Direito Processual Civil. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 53. v. I).
22 Cf. Cassio Scarpinella Bueno, op. cit., p. 86-90.
23 Op. cit., p. 104.

Fonte: DJE/SP de 03/05/2013.