Indisponibilidade de bens – um vírus: sua latência e potência


  
 

Um dos institutos jurídicos menos estudados entre nós é a chamada indisponibilidade de bens.

Qual a sua natureza jurídica? Por que crescem as hipóteses de sua decretação? Porque se vulgariza a utilização de um instrumento que deveria ser, por definição, a última medida a ser decretada, esgotados outros meios de satisfação do crédito? Porque se tem decretado a indisponibilidade antes mesmo de se tentar penhorar ou arrestar os bens? Porque se diz que o bem “fica gravado” quando, na realidade, trata-se de medida que atinge a disponibilidade das pessoas independentemente da ocorrência atual de uma titularidade?

Enfim, que diabos de indisponibilidade é essa que acaba por inibir a própria aquisição? É evidente que, decretada que seja uma indisponibilidade de bens, tal circunstância jazerá em estado de latência nos escaninhos labirínticos do sistema, ativando-se com o registro da aquisição.

Suspeito que estamos criando um inédito sistema de opacidade nas transações imobiliárias. A penumbra passa a ser associada à ideia de segurança jurídica e patrimonial erigida como cidadela contra a sanha fiscalista do estado brasileiro. Calharia um estudo para se apurar em que medida o uso desse instrumento é contraproducente. Nem me refiro, aqui, à indisponibilidade de bens decretada no bojo de ações de improbidade administrativa; falo da vulgarização dos processos de execução fiscal.

No caso do acórdão publicado na data de hoje, aqui compartilhado, ocorre a denegação do registro de alienação de bem imóvel em que o cedente dos direitos de uma promessa (não inscrita) tem, contra si, a decretação da indisponibilidade em data posterior à data escritura.

No v. aresto, assenta-se que pouco importa que o ato de indisponibilidade tenha sido decretado após a celebração da compra e venda. Imperaria, entre nós, a regra do tempus regit actum, que sujeita todo e qualquer título às limitações e gravames vigentes ao tempo de sua apresentação a registro, pouco importando a data de sua consagração [1].

O mais interessante é que a indisponibilidade acaba por alcançar negócios jurídicos que nem sequer serão objeto de registro – como, no caso, a cessão de direitos de promessa não inscrita.

Não será a primeira decisão do Conselho Superior da Magistratura que confirma a denegação de registro nessas condições. Na Ap. Civ. 0043598-78.2012.8.26.0100, por exemplo, a indisponibilidade revelou-se por ocasião da inscrição, já que os contratos preliminares não vieram a seu tempo a registro e a certidão de propriedade, expedida pelo Ofício Imobiliário, não poderia mesmo enunciar um gravame que não figuraria na matrícula” [2].

Esse tipo de situação se repete amiúde e pode perfeitamente configurar uma grande injustiça [3].

Tendo em vista tratar-se de uma escritura pública de compra e venda, presume-se que as partes tenham sido orientadas pelo notário a verificar a situação jurídica dos alienantes, consultando a Central Nacional de Indisponibilidade de Bens – CNIB (Provimento CNJ 39/2014) para a lavratura da escritura. Ou, nos casos de maior cuidado, a pesquisa terá sido feita nos distribuidores. Nesse caso, por suposição (não se sabe quando a escritura foi lavrada) o resultado terá sido negativo e o terceiro adquirente, desarmado, será colhido por um fato que, de outro modo, não teria como conhecer.

As indisponibilidades são uma espécie de armadilha jurídica que pode alcançar o contratante de boa-fé, impossibilitado, muitas vezes, de fazer uma custosa investigação nos distribuidores especializados. Toda investigação dessa natureza é cara e, em alguns casos, demorada e o que é pior: de resultados duvidosos. Basta imaginar que a simples inscrição na dívida ativa em qualquer órgão da administração pública pode caracterizar a alienação ou oneração de bens como fraude contra o credor hiper-privilegiado.

Vejam o que decidiu o STJ sobre o tema:

(a) a natureza jurídica tributária do crédito conduz a que a simples alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, pelo sujeito passivo por quantia inscrita em dívida ativa, sem a reserva de meios para quitação do débito, gera presunção absoluta (jure et de jure) de fraude à execução (lei especial que se sobrepõe ao regime do direito processual civil); (…) (c) a fraude de execução prevista no artigo 185 do CTN encerra presunção jure et de jure, conquanto componente do elenco das “garantias do crédito tributário”; (RESP 1.141.990 – PR, j. 10/11/2010, rel. min. LUIZ FUX).

Depois, não se pode presumir uma simulação, como aventado na já citada Ap. Civ. 0043598-78.2012.8.26.0100, em que a contratação privada, não inscrita, foi tida como expediente para contornar a indisponibilidade decretada. Definitivamente, não se presume a má fé!

Como se vê, o grande drama dos gravames ocultos, que inspirou os legisladores no Século XIX a criarem o Registro Hipotecário, continua presente e embaraçando o livre intercâmbio de bens, onerando o sistema com crescentes custos transacionais. É o chamado “Custo Brasil”.

Além disso, as hipóteses de indisponibilidade, antes muito restritas, hoje são alargadas para alcançar os casos em que os devedores do fisco não apresentam bens à penhora, nem as pesquisas eletrônicas os revelam. Isto é, quando essas pesquisas são feitas, já que a decretação da indisponibilidade não faz pressupor uma pesquisa anterior que poderia perfeitamente transitar pelos meios eletrônicos pelos quais o gravame terá sido inscrito na CNIB. Encontrado que fosse um bem qualquer e a indisponibilidade plenária seria evitada e muitos casos, como os tratados neste aresto, poderiam ser evitados, os custos envolvidos poupados e os interesses do terceiro de boa-fé protegidos.

Este é um defeito congênito do sistema que está a merecer um estudo aprofundado no sentido de seu aperfeiçoamento.

Sabemos que muitas dessas indisponibilidades são genéricas, inespecíficas, e se mantêm incubadas como um vírus latente, à espera da formação de condições especiais – como a movimentação patrimonial – para se tornarem ativas. São centenas de inscrições oriundas de execuções fiscais de valores irrisórios, atulhando os repositórios com créditos podres.

Ofereço aqui, perdido nestas nótulas de comentários à jurisprudência de São Paulo, algumas sugestões para aperfeiçoamento do sistema de indisponibilidades:

  1. Antes de se decretar uma indisponibilidade plenária, a autoridade deveria ser conduzida a um processo preliminar de consulta acerca da existência de bens ou de direitos inscritos cujos titulares poderiam ser atingidos pelo gravame. O processo é simples e não envolve qualquer custo para a sua formulação. Não se faria a inscrição na CNIB sem antes certificar-se que inexiste bens e direitos em nome das pessoas atingidas.
  1. A CNIB é um repositório eletrônico [4], regulamentado pelo Judiciário [5] e funciona como livro de registro que cada serventia é obrigada a manter, depositado na “nuvem” e compartilhado por todos os Oficiais de Registro de Imóveis. Trata-se da primeira experiência, ainda imperfeita, de “molecularização [6]” do sistema registral em meios eletrônicos.
  1. Como repositório eletrônico, um livro eletrônico que é, compartilhado por todos os registros de imóveis, dele se poderia extrair certidão negativa de indisponibilidade de bens (art. 18 da LRP).
  1. Assim como o notário, que antes de realizar qualquer transação deve consultar a CNIB [7], no caso de instrumentos particulares, os cartórios de Registro de Imóveis poderiam expedir CND´s de indisponibilidade de bens, juntamente com as certidões das matrículas ou de transcrições, a fim de se resguardar os interesses dos contratantes.
  1. As instituições financeiras integrantes do SFH ou SFI igualmente deveriam cadastrar-se no sistema CNIB e realizar a consulta antes de formalizar a transação.

Seja como for, o espinhoso tema da indisponibilidade de bens está a desafiar os estudiosos do direito registral, especialmente os próprios registradores imobiliários, convidados a estudar o aperfeiçoamento da CNIB.

NOTAS: 

[1] Podem-se citar vários precedentes: Ap. Cíveis nº 115-6/7, 777-6/7, 530-6/0, 0004535-52.2011.8.26.0562, 0015089-03.2012.8.26.0565, 0000181-62.2014.8.26.0114, 0001748-75.2013.8.26.0337.

[2] Ap. Civ. 0043598-78.2012.8.26.0100, São Paulo, j. 26/9/2013, DJ 2/10/2013, rel. des. José Renato Nalini.

[3] Alguma luz se pode divisar, por exemplo, na redação prudente do § 4º do art. 19 da Lei 12.846, de 1º/8/2013, que faz a ressalva de direitos de terceiros de boa-fé.

[4] Arts. 39 e 40 da Lei 11.977/2009 cc. Art. 25 da Lei 6.015/1973. Note-se, no último dispositivo, a alusão à microfilmagem e de “outros meios de reprodução autorizados em lei”. A lei é extraordinária ao assimilar a ideia de suporte da informação a medium. A autorização legal veio com as citadas leis.

[5] Art. 16 da Lei 11.419/2006. No Estado de São Paulo: Provimento CG 13/2012, de 11/5/2012 (Dje 14/05/2012), des. José Renato Nalini. Provimento CNJ 39/2014 de 25/7/2014, (DJE de 30/7/2014), min. Guilherme Calmon.

[6] As expressões “molecularização” e “atomização” tornaram-se recorrentes em meus artigos. O modelo do nosso sistema registral, que se tornou paradigmático a partir de seu desenvolvimento ainda no século XIX, era baseado na criação de serventias isoladas, instaladas em comarcas, cujo exercício da atividade registral era fracionada (atomização). Somente muito recentemente, com o uso de recursos tecnológicos proporcionados, fundamentalmente, pela formação de redes eletrônicas, as serventias passaram a se inter-relacionar. Neste ambiente eletrônico (medium) dá-se o intercâmbio e o compartilhamento de informações sem que se elimine a ideia básica de autonomia, individualização e personificação da delegação. O Registro de Imóveis é uno em todo o território nacional; a interconexão dos Registros permite a prestação do serviço fracionada por meio da delegação. No transcurso do 4º Certforum, realizado entre os dias 8 a 10 de agosto de 2006, no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, em Brasília, indiquei que vivemos a “terceira onda” do Registro de Imóveis, com a informatização, interconexão, interoperabilidade e integridade dos registros. “Com um marco regulatório”, disse, “promoveremos a molecularização dos registros, deixaremos de ter atomização para ter interconexão, intercâmbio, enfim, networking”. (Jacomino. Sérgio. IRIB, in Boletim Eletrônico do Irib n. 2.705, de 19/10/2006). Mais tarde, concluiria: “hoje, os cartórios ainda permanecem atomizados, sem comunicação entre si. No entanto, estamos caminhando para outro paradigma, vamos superar a ideia de atomização pelo conceito de molecularização, ou seja, essas unidades estarão ligadas umas às outras como moléculas e trocando informações, o que aumentará a segurança das informações e reduzirá custos”. Jacomino. Sérgio. A matrícula in Boletim do IRIB n. 330, jan./mar. 2007.

[7] Art. 12 do Provimento CG 13/2012, cit. e art. 14 do Provimento CNJ 39/2014.

KOLLEMATA – JURISPRUDÊNCIA REGISTRAL

Compra e venda. Indisponibilidade. Qualificação registral –tempus regit actum.

Registro de Imóveis – dúvida – escritura pública de venda e compra – cedente cujos bens foram declarados indisponíveis – impossibilidade de registro de alienação voluntária – irrelevância de a indisponibilidade ter sido decretada depois do negócio jurídico – princípio do tempus regit actum – dúvida procedente – recurso desprovido.

CSMSP – APELAÇÃO CÍVEL: 9000017-44.2013.8.26.0577 CSMSP – APELAÇÃO CÍVELLOCALIDADE: São José dos Campos CIRC.: DATA JULGAMENTO:30/07/2015 DATA DJ: 17/09/2015 Relator: Elliot Akel íntegra:

PODER JUDICIÁRIO – TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO – CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação nº 9000017-44.2013.8.26.0577, da Comarca de São José dos Campos, em que é apelante LUIZ GILBERTO BARRETA, é apelado 1º OFICIAL DE REGISRO DE IMÓVEIS, TÍTULOS E DOCUMENTOS E CIVIL DE PESSOA JURÍDICA DA COMARCA DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO, V.U.”, de conformidade com o voto do(a) Relator(a), que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Desembargadores JOSÉ RENATO NALINI (Presidente), EROS PICELI, GUERRIERI REZENDE, ARTUR MARQUES, PINHEIRO FRANCO E RICARDO ANAFE.

São Paulo, 30 de julho de 2015.

ELLIOT AKEL

RELATOR

Apelação Cível nº 9000017-44.2013.8.26.0577
Apelante: Luiz Gilberto Barreta
Apelado: 1º Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca de São José dos Campos.
Voto nº 34.244

REGISTRO DE IMÓVEIS – DÚVIDA – ESCRITURA PÚBLICA DE VENDA E COMPRA – CEDENTE CUJOS BENS FORAM DECLARADOS INDISPONÍVEIS – IMPOSSIBILIDADE DE REGISTRO DE ALIENAÇÃO VOLUNTÁRIA – IRRELEVÂNCIA DE A INDISPONIBILIDADE TER SIDO DECRETADA DEPOIS DO NEGÓCIO JURÍDICO – PRINCÍPIO DO TEMPUS REGIT ACTUM – DÚVIDA PROCEDENTE – RECURSO DESPROVIDO.

Trata-se de recurso de apelação interposto contra sentença de procedência de dúvida suscitada pelo Oficial do 1º Cartório de Registro de Imóveis de São José dos Campos, que se negou a registrar escritura pública de venda e compra porque a interveniente cedente teve seus bens declarados indisponíveis antes do registro.

A recorrente alega que o negócio jurídico de venda e compra é anterior à decretação da indisponibilidade e, portanto, os adquirentes não podem ser prejudicados.

A Procuradoria de Justiça manifestou-se pelo desprovimento do recurso.

É o relatório.

O recurso não comporta provimento.

É verdade que a escritura pública de venda e compra, com cessão de compromisso (original juntado às fls. 32/33), foi lavrada em 23 de setembro de 2003.

Quando o título foi levado a registro, contudo, já havia anotação de indisponibilidade de bens da cedente, oriunda de duas ações civis públicas.

A qualificação registral segue a regra tempus regit actum, o que significa que o título se sujeita às condições vigentes ao tempo de sua apresentação a registro, pouco importando a data de sua celebração (Ap. Cíveis nº 115-6/7, nº 777-6/7, nº 530-6/0, e nº 0004535-52.2011.8.26.0562).

Nesse sentido, já decidiu o Conselho Superior da Magistratura, na Apelação n. 29.886-0/4, Relator o ilustre Desembargador Marcio Martins Bonilha, então Corregedor Geral da Justiça:

“A indisponibilidade de bens é forma especial de inalienabilidade e impenhorabilidade, impedindo o acesso de títulos de disposição ou oneração, ainda que formalizados anteriormente à decretação da inalienabilidade.”

Logo, o Oficial não poderia mesmo registrar a escritura, da mesma forma que o Juiz Corregedor Permanente, no exercício de função administrativa, não poderia levantar as indisponibilidades.

Nesses termos nego provimento ao recurso.

HAMILTON ELLIOT AKEL

Corregedor Geral da Justiça e Relator

 Fonte: Observatório do Registro | 19/09/2015.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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