CSM/SP: Registro de imóveis – Dúvida – Escritura de dação em pagamento do direito à aquisição do imóvel (art. 26, § 8º, da Lei 9.514/1997) – Indisponibilidade judicialmente decretada sobre o patrimônio da devedora fiduciante – Óbice existente ao tempo da prenotação – Irrelevância, neste caso, da data da celebração do negócio jurídico – Dação em pagamento que configura alienação voluntária – Óbice mantido – Apelação improvido.


  
 

Apelação nº 1057231-90.2022.8.26.0100

Espécie: APELAÇÃO

Número: 1057231-90.2022.8.26.0100

Comarca: CAPITAL

PODER JUDICIÁRIO– Texto selecionado e originalmente divulgado pelo INR –

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

Apelação nº 1057231-90.2022.8.26.0100

Registro: 2023.0000131039

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1057231-90.2022.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que é apelante ESCUDERIA COMÉRCIO DE VEÍCULOS LTDA., é apelado 15º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA DA CAPITAL.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores RICARDO ANAFE (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), XAVIER DE AQUINO (DECANO), BERETTA DA SILVEIRA (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO), WANDERLEY JOSÉ FEDERIGHI(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), FRANCISCO BRUNO (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL) E GUILHERME GONÇALVES STRENGER (VICE PRESIDENTE).

São Paulo, 16 de fevereiro de 2023.

FERNANDO ANTONIO TORRES GARCIA

Corregedor Geral da Justiça

Relator

APELAÇÃO CÍVEL nº 1057231-90.2022.8.26.0100

APELANTE: Escuderia Comércio de Veículos Ltda.

APELADO: 15º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca da Capital

VOTO Nº 38.926

Registro de imóveis – Dúvida – Escritura de dação em pagamento do direito à aquisição do imóvel (art. 26, § 8º, da Lei 9.514/1997) – Indisponibilidade judicialmente decretada sobre o patrimônio da devedora fiduciante – Óbice existente ao tempo da prenotação – Irrelevância, neste caso, da data da celebração do negócio jurídico – Dação em pagamento que configura alienação voluntária – Óbice mantido – Apelação improvido.

Trata-se de apelação (fls. 230/240) interposta por Escuderia Comércio de Veículos Ltda. contra a r. sentença (fls. 221/224), proferida pela MMª. Juíza Corregedora Permanente do 15º Oficial de Registro de Imóveis da Capital, que julgou procedente a dúvida (fls. 01/11) e manteve a recusa de registro stricto sensu da escritura de confissão de dívida e dação em pagamento dos direitos da devedora fiduciante em conferência de bem imóvel e outras avenças (fls. 130/137), na matrícula n.º 150.862 (fls. 55/121) daquela serventia extrajudicial.

Alega a apelante, em síntese, que o óbice ao ingresso do título no fólio real não se sustenta porque as indisponibilidades decretadas contra Belmetal Indústria e Comércio Ltda. são posteriores à lavratura da escritura apresentada a registro, além do que a devedora possui outros imóveis para a garantia dos débitos trabalhistas. Refuta, outrossim, a assertiva de que a operação foi realizada por valor vil, advogando a tese de que houve estrita observância ao valor da dação em pagamento, constante da escritura, considerando que o montante que suportou é superior ao real valor de mercado, bem como superior ao próprio valor venal do imóvel, ao se considerar os outros gastos incorridos para a regularização do imóvel e seu estado precário. Alternativamente, pede a substituição da indisponibilidade para os imóveis de propriedade de Belmetal Indústria e Comércio Ltda., conforme documentos 04 a 12 que apresenta. Por isso, pugna pelo registro da escritura de dação em pagamento.

A douta Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 424/427).

É o relatório.

Em que pese às razões da apelante, a r. sentença deve ser mantida, como, aliás, opinou o Ministério Público.

Apresentada a registro a escritura de confissão de dívida e dação em pagamento dos direitos da devedora fiduciante em conferência de bem imóvel e outras avenças (fls. 130/137), na matrícula n.º 150.862, o 15º Oficial de Registro de Imóveis desqualificou o título, emitindo nota devolutiva n.º 948.727, de 28 de janeiro de 2022, com o seguinte teor:

“BELMETAL INDÚSTRIA E COMÉRCIO LTDA está com seus bens indisponíveis. Proceder o cancelamento das averbações de Indisponibilidades ainda vigentes.”

E como esclareceu o Oficial Substituto, na suscitação da dúvida (fls. 01/11), inúmeras indisponibilidades permaneciam até a data em que se manifestou, conforme as averbações feitas na matrícula do imóvel, sob n.ºs 50, 51, 58, 60, 61, 64, 74, 78, 85, 86, 91, 96, 97, 100, 101, 105 e 114, de acordo com os correspondentes comunicados advindos da Central de Indisponibilidade.

O item 412 do Cap. XX do Tomo II das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça dispõe que:

“412. Os registradores de imóveis deverão, antes da prática de qualquer ato de alienação ou oneração, proceder à consulta à base de dados da Central Nacional de Indisponibilidade de Bens (CNIB).”

Havendo, portanto, ordem de indisponibilidade, muito embora lavrada a escritura pública ou elaborado o instrumento particular que tenha por objeto negócio jurídico sobre a propriedade ou outro direito real relativo a imóvel de que o titular seja o destinatário da restrição, será impossível o registro do ato no Registro de Imóveis.

Na espécie, o credor fiduciário, ora apelante, não fez uso do procedimento contido no artigo 26, §§1º a 7º, da Lei n.º 9.514/1997 para a consolidação da propriedade do imóvel em seu nome e, consequentemente, não promoveu o público leilão para a alienação do imóvel, conforme o estatuído pelo artigo 27 da mesma Lei.

Houve, no caso, a dação do direito eventual ao imóvel em pagamento da dívida, por parte do devedor fiduciante, com o que o credor fiduciário anuiu, na forma do §8º, do artigo 26, da Lei n.º 9.514/1997, dispensando-se, portanto, os procedimentos previstos no artigo 27 da lei em apreço.

Como ensina Moacyr Pretrocelli de Ávila Ribeiro [1]“Faculta a Lei 9.514/1997, em seu art. 26, §8º, que o devedor fiduciante possa, com a anuência do fiduciário, dar seu direito eventual ao imóvel em pagamento da dívida, dispensando-se, assim, os procedimentos à alienação do imóvel em leilão público, tal como disciplinado no art. 27 da referida lei.”

Pelo que consta dos autos, credor fiduciário e devedor fiduciante firmaram escritura pública de dação em pagamento, pela qual o devedor deu, em quitação da dívida existente junto ao credor, os direitos eventuais sobre o imóvel, nos termos do art. 26, §8º, da Lei n.º 9.514/1997 (fls. 130/137).

A dação em pagamento de que trata o dispositivo legal em tela é a mesma prevista no artigo 356 do Código Civil, segundo o qual “o credor pode consentir em receber prestação diversa da que lhe é devida”, a ela também se referindo o parágrafo único do artigo 1.428 do mesmo diploma legal, no sentido de que “após o vencimento, poderá o devedor dar a coisa em pagamento da dívida.”

A respeito, vale citar o preciso ensinamento de Carlos Roberto Gonçalves [2]:

“Embora proibido o pacto que autoriza o credor a ficar com a coisa se a dívida não for paga no vencimento, é permitido ao devedor, todavia, após o vencimento da obrigação, entregar em pagamento da dívida a mesma coisa ao credor, que a aceita, liberando-o. Configura-se, neste caso, a dação em pagamento (datio in solutum), admitida no parágrafo único do aludido art. 1.428 do Código Civil, nestes termos: ‘Após o vencimento, poderá o devedor dar a coisa em pagamento da dívida’. A justificativa para tal permissão reside no fato de não se tratar de pacto inserido no contrato real com a finalidade de fraudar.

A dação em pagamento decorre da vontade do devedor, que a isso não está obrigado, mas que pode fazer a opção, se lhe convier. Não se cuida de direito assegurado ao credor, mas de faculdade reconhecida ao devedor, que resulta da vontade livre daquele que deve. Não se vislumbra, na espécie, a pressão da necessidade impondo a solução ao devedor. Não mais vigora, in casu, o mesmo fundamento ético da proibição da lex comissória.”

Tem-se, então, hipótese em que o devedor exerceu a faculdade de dar seu direito eventual ao imóvel ao credor, em vez de quitar a dívida como avençado, o que contou com a anuência do credor, conforme o que estabelece o artigo 26, §8º, da Lei n.º 9.514/1997.

A dação em pagamento prevista depende da vontade das partes envolvidas, daí porque cabe ao credor avaliar a conveniência de anuir com a pretensão do devedor quanto ao recebimento do direito eventual ao bem dado em garantia no lugar do adimplemento da dívida.

Não se cuida, portanto, do procedimento de consolidação da propriedade do bem dado em garantia a que se referem os §§1º a 7º do artigo 26 da Lei n.º 9.514/1997, o qual, por sua vez, deveria ser seguido do procedimento inserido no artigo 27 da mesma lei.

Sobre isso, novamente esclarece Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro [3]:

“Por fim, concretizada a dação em pagamento, o credor fiduciário está liberado de promover a alienação do imóvel em leilão público e seguir os rigorosos ditames do art. 27 da Lei 9.514/1997. Nesse mister, passa a ser indiferente se a coisa recebida a título de dação em pagamento ostenta valor superior ou inferior à prestação original, pois recebida em substituição (art. 356 do Código Civil). Nisso, pois, consiste o acordo liberatório: é acordo ‘in solutione’. Assim, quando ultimada voluntariamente a dação em pagamento, sem qualquer ressalva, o devedor não fará jus ao recebimento de diferença alguma, não lhe socorrendo o disposto no art. 27, §4º, da Lei 9.514/007, que se aplicaria exclusivamente se o imóvel tivesse ido a leilão público e fosse arrematado” (grifei) .

Tratando-se de ato voluntário de dação em pagamento do direito eventual ao imóvel, e existindo ordens de indisponibilidade de bens e direitos do devedor, era imperiosa a exigência formulada, pouco importando a data em que lavrada a escritura de dação em pagamento.

Como ao tempo da apresentação do título a registro havia inúmeras ordens de indisponibilidade de bens vigentes e averbadas na matrícula n.º 150.862, ordenada por variadas autoridades judiciais, como pode ser constatado na certidão de matrícula a fls. 55/121, o Oficial de Registro negou a inscrição da escritura de dação em pagamento, como era de rigor.

Aliás, o 14º Tabelião de Notas, ao lavrar a escritura de dação em pagamento em pauta, fez constar a advertência acerca da existência de ordem de indisponibilidade contra o patrimônio do devedor, mas ambas as partes manifestaram o desejo de continuar com a transação (cláusula 12, fls. 136).

Nesse passo, é desimportante que a dação em pagamento tenha ocorrido anteriormente à inscrição das indisponibilidades na matrícula do imóvel.

Consoante a jurisprudência já pacificada do C. Conselho Superior da Magistratura, a qualificação registral do título é levada a efeito no momento de sua apresentação, pouco importando à data em que celebrado.

Nesse sentido:

“REGISTRO DE IMÓVEIS – Compromisso de compra e venda apresentado após a averbação da indisponibilidade do imóvel – Tempus regit actum – Jurisprudência do CSM – Dúvida procedente – Recurso não provido. (…) A jurisprudência do Conselho Superior da Magistratura está pacificada no sentido de que a qualificação do título sujeita-se à lei vigente ao tempo de sua apresentação {tempus regit actum), pouco importando a data da celebração do contrato (Apelação Cível n° 115-6/7, rei. José Mário Antônio Cardinale, n° 777-6/7, rei. Ruy Camilo, n° 530-6/0, rei. Gilberto Passos de Freitas, e, mais recentemente, n° 0004535-52.2011.8.26.0562, relatada por V. Exa.).

No caso em exame, quando o instrumento particular de compromisso de compra e venda foi apresentado, já pendia a indisponibilidade oriunda da Justiça do Trabalho (av. 03 – fl. 15), que, por óbvio, impede o registro pretendido (Apelação nº 1049817-85.2015.8.26.0100, Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, Relator Desembargador Manoel Queiroz de Pereira Calças, data do julgamento: 25/02/2016).”

De outra parte, não compete ao Oficial de Registro de Imóveis, nem à Corregedoria Permanente ou à Corregedoria Geral, determinar a substituição das ordens de indisponibilidades para que recaiam sobre outros bens do devedor. Eventuais pretensões de levantamentos das ordens de indisponibilidade devem ser deduzidas diretamente aos juízos que as decretaram.

Por fim, igualmente descabido avaliar, no âmbito restrito deste procedimento administrativo, se a dação em pagamento do direito eventual ao imóvel ocorreu por preço justo.

Basta, para a manutenção da exigência do Registrador, a constatação de que o registro stricto sensu do negócio jurídico voluntário realizado fora obstado em razão das ordens de indisponibilidade existentes contra o patrimônio do devedor ao tempo em que apresentado o título ao Oficial.

Ante o exposto, pelo meu voto, nego provimento ao apelo.

FERNANDO ANTONIO TORRES GARCIA

Corregedor Geral da Justiça

Relator

Notas:

[1] 1RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. Alienação Fiduciária de Bens Imóveis. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 626.

[2] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito das coisas. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 750.

[3] RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. Alienação Fiduciária de Bens Imóveis. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 630. (Acervo INR – DJe de 04.05.2023 – SP)

Fonte: INR Publicações.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias.

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