Questão esclarece acerca da impossibilidade de registro de escritura pública de doação em adiantamento de legítima com imposição de cláusulas restritivas, lavrada na vigência do Código Civil de 1916, sem mencionar a justa causa para a imposição de tais cláusulas.

Doação. Cláusulas restritivas – justa causa – ausência. Escritura lavrada na vigência do Código Civil de 1916.

Para esta edição do Boletim Eletrônico a Consultoria do IRIB selecionou questão acerca da impossibilidade de registro de escritura pública de doação em adiantamento de legítima com imposição de cláusulas restritivas, lavrada na vigência do Código Civil de 1916, sem mencionar a justa causa para a imposição de tais cláusulas. Veja como a equipe de revisores técnicos do boletim se posicionou acerca do assunto, valendo-se dos ensinamentos de Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza:

Pergunta: Recebi para registro uma escritura pública de doação em adiantamento de legítima, lavrada ainda na vigência do Código Civil de 1916, onde o doador instituiu cláusulas restritivas sem mencionar a justa causa. Posso registrar a mencionada doação?

Resposta: Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza, ao abordar o assunto em obra intitulada “As restrições voluntárias na transmissão de bens imóveis – cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade”, publicado pela Quinta Editorial em 2012, p. 61, assim esclareceu:

“O registrador poderá deparar-se com a protocolização para registro de uma doação em adiantamento de legítima com imposição de cláusulas, lavrada antes da vigência do Código Civil de 2002, quando não havia a necessidade de justificar a imposição de cláusulas sobre a legítima”.

Das três restrições, apenas a inalienabilidade e impenhorabilidade são de ordem pública e, por isso, necessitam de justificativa.
Se a doação é da parte disponível, não precisa da justificativa;

Também não há necessidade de justa causa se não houver herdeiros necessários.

Considerando que a regra que determina a motivação na imposição das cláusulas é de ordem pública, deve o registrador recusar o registro sem a rerratificação do ato para a declaração da justa causa ou exclusão das cláusulas. Se não mais for possível a rerratificação, pela morte ou incapacidade de uma das partes, a questão deve ser submetida à juízo, se interessar às partes, para que se decida se subsistem as restrições.

As cláusulas são impostas em benefício do donatário, mas retiram o bem do comércio, no caso da inalienabilidade; impedem que credores persigam seus créditos, no caso da impenhorabilidade; e excluem o bem do patrimônio do casal, no caso da incomunicabilidade, quando o regime do casamento for o da comunhão de bens. Assim, há evidentes reflexos em interesses de terceiros, razão pela qual aquele que não requereu o registro oportunamente deve se submeter à legislação vigente no momento do registro – dormientibus non sucurrit jus. A aquisição da propriedade imobiliária entre vivos no Brasil se dá em duas etapas, uma contratual e outra real, não se podendo impor a terceiros restrições em desacordo com o direito vigente na data do ingresso do título no registro.”

No mesmo sentido o que foi decidido pelo Conselho da Magistratura de São Paulo, na APELAÇÃO CÍVEL nº 0024268-85.2010.8.26.0320, da Comarca de LIMEIRA, publicada no DJE de 29/02/2012, da qual se extrai:

Registro de Imóveis – Dúvida – Recusa do Oficial em registrar escritura pública de doação com reserva de usufruto – Cláusulas restritivas – Inexistência de indicação de justa causa – Inteligência dos arts. 1.848, “caput”, e 2042 do Código Civil – Nulidade – Cindibilidade do título – Precedentes do Conselho Superior – Registro da escritura de doação, desconsiderada a cláusula restritiva – Recurso provido.

O Código Civil de 1916 não estabelecia nenhuma limitação ao poder dos testadores e doadores de impor cláusulas restritivas (art. 1676). O atual disciplinou o assunto de forma diferente, pois estatui, no art. 1848, “caput”, que: “Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, de impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima”. Sobre os bens que compõem a parte disponível, não há restrição.

Manifesta, pois, a intenção de o legislador reduzir os poderes do testador em relação à legítima. Por essa razão, presente a mesma “ratio legis” (“Ubi eadem ratio ibi idem ius”), não há como afastar a aplicação extensiva do art. 1848, “caput”, às doações feitas aos herdeiros, consideradas adiantamento de legítima (art. 544, do Código Civil). Não fosse assim, estaria aberta a via para burlar a restrição imposta pelo art. 1848, “caput”: bastaria que o titular dos bens os doasse em vida aos filhos, para que pudesse gravá-los sem nenhuma justificativa.

O Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, em acórdão de 03 de março de 2009, Rel. Des. Luiz Antonio de Godoy, proferido na apelação cível no. 613.184-4/8-00 concluiu: “…com o advento do Código Civil de 2002, estabeleceu-se nova regra acerca da possibilidade de previsão de cláusula de inalienabilidade em seu art. 1848, “caput”… Insta ressaltar que, conforme corretamente anotado na sentença, referido dispositivo é, também, aplicável à doação considerada adiantamento de legítima, como se verifica na presente hipótese. A despeito de a doação ter ocorrido à época da vigência do Código Civil de 1916, não há como negar que a hipótese se enquadra no art. 2042, do Código Civil de 2002, que viabiliza a incidência do texto do art. 1848, “caput”, acima referido”.

A falta de referência, no título, à inclusão dos bens doados entre os que compõem a parte disponível faz presumir o adiantamento de legítima, como expressamente estabelece o art. 2005 do Código Civil.

Uma vez que o disposto no art. 1848, “caput”, do Código Civil, aplica-se à doação entre pais e filhos, como adiantamento de legítima, também aplicável o art. 2042, dada a identidade de situações. A doação foi feita em 15 de março de 1999, antes da entrada em vigor do atual Código Civil. Ambos os doadores faleceram em 2009 (fls. 12 e 13), sem promover o aditamento do contrato para declarar a justa causa da cláusula aposta.

Mas a falta de justa causa compromete apenas a validade da cláusula restritiva, não da doação. Há muito este Egrégio Conselho Superior da Magistratura vem aplicando a regra da cindibilidade do título, pelo qual autoriza-se o registro daquilo que possa ingressar no fólio real, e nega-se o daquilo que não possa, permitindo-se extrair do título apenas aquilo que comporta o registro. A doação é hígida e foi livremente celebrada entre os contratantes. Apenas a cláusula de impenhorabilidade padece de vício, por afronta ao art. 1848, “caput”, do Código Civil. Admissível, portanto, o registro da escritura de doação, desconsiderando-se a cláusula de impenhorabilidade nele inserida. (…)

Na mesma direção do aqui exposto, temos na decisão do Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo, lançada na Apelação Cívil de nº 0024268-85.2010.8.26.0320, decorrente de procedimento de dúvida, suscitada pelo Registro de Imóveis de Limeira.

Finalizando, recomendamos que sejam consultadas as Normas de Serviço da Corregedoria-Geral da Justiça de seu Estado, para que não se verifique entendimento contrário ao nosso. Havendo divergência, proceda aos ditames das referidas Normas, bem como a orientação jurisprudencial local.

Fonte: IRIB (www.irib.org.br).

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

Para acompanhar as notícias do Portal do RI, siga-nos no twitter, curta a nossa página no facebook, assine nosso boletim eletrônico (newsletter), diário e gratuito, ou cadastre-se em nosso site.


STJ: DIREITO CIVIL. POSSIBILIDADE DE ALTERAÇÃO DO REGIME DE BENS EM CASAMENTO CELEBRADO NA VIGÊNCIA DO CC/1916.

Na hipótese de casamento celebrado na vigência do CC/1916, é possível, com fundamento no art. 1.639, § 2º, do CC/2002, a alteração do regime da comunhão parcial para o regime da separação convencional de bens sob a justificativa de que há divergência entre os cônjuges quanto à constituição, por um deles e por terceiro, de sociedade limitada, o que implicaria risco ao patrimônio do casal, ainda que não haja prova da existência de patrimônio comum entre os cônjuges e desde que sejam ressalvados os direitos de terceiros, inclusive dos entes públicos. Muito embora não houvesse previsão legal para a alteração do regime de bens na vigência do CC/1916, e também a despeito do que preceitua o art. 2.039 do CC/2002, a jurisprudência tem se mantido uniforme no sentido de ser possível a alteração do regime de bens, mesmo nos matrimônios contraídos ainda sob a égide do diploma revogado. Nesse contexto, admitida a possibilidade de aplicação do art. 1.639, § 2º, do CC/2002 aos matrimônios celebrados na vigência do CC/1916, é importante que se interprete a sua parte final — referente ao "pedido motivado de ambos os cônjuges" e à "procedência das razões invocadas" para a modificação do regime de bens do casamento — sob a perspectiva de que o direito de família deve ocupar, no ordenamento jurídico, papel coerente com as possibilidades e limites estruturados pela própria CF, defensora de bens como a intimidade e a vida privada. Nessa linha de raciocínio, o casamento há de ser visto como uma manifestação de liberdade dos consortes na escolha do modo pelo qual será conduzida a vida em comum, liberdade que se harmoniza com o fato de que a intimidade e a vida privada são invioláveis e exercidas, na generalidade das vezes, no interior de espaço privado também erguido pelo ordenamento jurídico à condição de "asilo inviolável". Sendo assim, deve-se observar uma principiologia de "intervenção mínima", não podendo a legislação infraconstitucional avançar em espaços tidos pela própria CF como invioláveis. Deve-se disciplinar, portanto, tão somente o necessário e o suficiente para a realização não de uma vontade estatal, mas dos próprios integrantes da família. Desse modo, a melhor interpretação que se deve conferir ao art. 1.639, § 2º, do CC/2002 é a que não exige dos cônjuges justificativas exageradas ou provas concretas do prejuízo na manutenção do regime de bens originário, sob pena de esquadrinhar indevidamente a própria intimidade e a vida privada dos consortes. Nesse sentido, a constituição de uma sociedade por um dos cônjuges poderá impactar o patrimônio comum do casal. Assim, existindo divergência conjugal quanto à condução da vida financeira da família, haveria justificativa, em tese, plausível à alteração do regime de bens. Isso porque se mostra razoável que um dos cônjuges prefira que os patrimônios estejam bem delimitados, para que somente o do cônjuge empreendedor possa vir a sofrer as consequências por eventual fracasso no empreendimento. No ponto, aliás, pouco importa se não há prova da existência de patrimônio comum, porquanto se protegem, com a alteração do regime, os bens atuais e os bens futuros do cônjuge. Ademais, não se pode presumir propósito fraudulento nesse tipo de pedido, já que o ordenamento jurídico prevê mecanismos de contenção, como a própria submissão do presente pedido ao Judiciário e a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica. Contudo, é importante destacar que a medida não pode deixar de ressalvar os “direitos de terceiros, inclusive dos entes públicos, após perquirição de inexistência de dívida de qualquer natureza, exigida ampla publicidade”, nos termos do Enunciado n. 113 da I Jornada de Direito Civil CJF. REsp 1.119.462-MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 26/2/2013.

Fonte: Informativo de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – N° 0518. Publicação em 16/05/2013.