TJ/PE: Paternidade que se pre(exume)

* JONES FIGUEIRÊDO ALVES  

A verdade exumada procura o pai no sepulcro, dado que a investigação não há que se contentar no que se presume. Paternidade por presunção é combinar incerteza com certeza ficta, como quem busca o pai por afirmação legal, mesmo que não extraída da verdade apurada e feita. Não basta ter ou adquirir um pai, senão o pai verdadeiro. Nisso, verdade e realidade se tornam rima e solução, não admitido o presumido que nada rima ou soluciona.

A questão posta acima traz ao tema recente decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ- 3ª Câmara Cível, AI nº 0020927-31.2013.8.19.0000; de 26.09.2013) onde por razões religiosas de direito (liberdade religiosa) não se permitiu exumar os restos mortais do suposto pai procurado, de origem judaica. Entretanto, entendeu-se suficiente que em não ocorrendo prova inequívoca a afastar a paternidade do morto, este será havido, como se pai fosse, mais precisamente pai por presunção.

Em investigação de paternidade "post mortem", ante recusa dos herdeiros, filhos do investigado, a fornecimento de material genético, determinou o juízo de origem (2ª Vara de Família da Capital) a exumação. O tribunal carioca admitiu, porém, que a exumação poderia, à vista de preceitos judaicos, agredir direito à liberdade de crença, conquanto o direito fundamental ligado à dignidade humana, cláusula geral dos direitos da personalidade, exija o conhecimento da paternidade biológica, com todos os seus efeitos.

Nesse alcance, o relator, desembargador Fernando Foch Lemos Arigony da Silva assentou que "(…) sem prejuízo de nenhum desses direitos ou, dito de outro modo, com a preservação de ambos, se deve resolver o impasse com a aplicação do entendimento que a Súmula 301 do STJ sintetiza e com o qual foram sepultadas acesas discussões: "Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade". Aplicada a Súmula 301-STJ, por extensão ou analogia em face dos herdeiros recusantes.

Pois bem. A questão está a saber, tendo em conta a ponderação de interesses, se haverá de prevalecer, como bastante, apenas a presunção, para definir uma paternidade, quando atualmente esta se torna incontroversa e iniludível por testes genéticos de DNA. É que a presunção fica na esfera da ficção legal, tal qual a vetusta premissa romana "is pater est quem nuptiae demonstrant" ("É pai aquele que as núpcias indicam"), a ponto de que não se supunha paternidade atribuída a outro, enquanto ocorrente o casamento. Ou seja, a presunção "pater is est"; disposta e ampliada na regra do art. 1.597 do atual Código Civil.

Convenhamos que este jogo de presunções não guarda mais conformidade com os atuais recursos científicos. Beviláqua chegou a justificar os prazos do artigo 338 do antigo Código Civil de 1916, "à falta de melhor solução da ciência".

Entretanto, apesar dos avanços tecnológicos, a presunção continua em seu "locus" normativo, a exemplo do artigo 232 do Código Civil, onde a recusa à perícia médica ordenada judicialmente poderá suprir a prova que se pretendia obter com o exame. Presunção relativizada pela Lei nº 12.004/2009, quando a recusa do réu em se submeter ao exame de código genético – DNA gerará a presunção da paternidade, todavia "a ser apreciada em conjunto com o contexto probatório".

Ora. O direito fundamental à identidade genética confrontado com outros direitos e garantias, tem sido rediscutido, em sua necessária concretude de efetividade da dignidade humana, ao extremo da imprescindibilidade de condução coercitiva do investigado à realidade do exame de DNA como medida assecuratória de tal direito. E, por extensão, também da condução dos herdeiros do investigado.

No ponto, artigo do magistrado Fabrício Castagna Lunardi ("Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões", vol. Nº 33, abril-maio/2013, pp. 65-93) colocou, com proficiência, o tema.

Assinala, a propósito, que "o Supremo Tribunal Federal na sua composição plenária, durante o julgamento do RE nº 363.889-DF, em 15.12.2011, indicou a necessidade de reanálise da decisão proferida no HC nº 71.373-RS, de 1994, que impedia a condução coercitiva do investigado para realização de exame de DNA." No julgado recente, entendeu-se que o direito à identidade genética deve prevalecer quando confrontado com outras garantias, como coisa julgada e segurança jurídica. De tudo resulta imperativa uma nova reflexão a respeito, não se podendo admitir que "uma ação investigatória de paternidade fosse decidida com base em mera ficção jurídica ou presunção".

Eis a questão posta a estilete. A condução coercitiva do suposto pai, para a obtenção da verdade material (e não formal), apóia-se, sobremodo, na conveniência de as decisões judiciais refletirem a realidade fática, e não serem proferidas "com base em simples dogmas técnico-jurídicos oitocentistas".

E acrescenta Castagna Lunardi, com inteira razão: (i) "Os artigos 231 e 232 do Código Civil de 2002, quanto a Súmula nº 301 do STJ e o art. 2º-A da Lei nº 8.560, foram editados nas contingências da decisão do STF no HC nº 71.373, baseada no contexto social e no direito da época". Assim,   optou-se pela coerção indireta, impondo-se o ônus processual; (ii) operada a recusa, "o reconhecimento de paternidade com base numa ficção não é capaz de garantir o direito à verdadeira identidade genética, sobretudo quando as demais provas dos autos são fracas"; (iii) a atribuição judicial de paternidade com base numa mera ficção viola o núcleo essencial do direito fundamental à identidade genética, que pressupõe a verdade real e nunca uma verdade meramente formal ou processual.

Eis o dilema. O presuntivo pai, constituído na ficção, poderá ser, em alguns casos, o falso positivo (o pai posto, por pressuposto da presunção); obstando, nessa conseqüência, que o filho busque e identifique o verdadeiro pai, em tal certeza que o coloque também seguro e certo de sua origem perante si mesmo. Em somente assim, efetivaria ele o seu direito à identidade genética, incólume e induvidosa.

Ora bem. Exumações têm sido feitas, na arqueologia dessa origem certa, envolvendo supostos pais, anônimos ou célebres, como as realizadas dos restos mortais de Juan Perón (10/2006) Tim Maia (03/2012) ou ainda, de Yves Montand. Curiosamente, nestes casos, com resultados negativos.

Assim, resulta irrecusável admitir: (i) o reconhecimento da origem genética como um direito personalísssimo, irrenunciável e imprescritível, derivado do princípio da dignidade humana (Súmula 140 – STF); (ii) "devendo o Poder Público contribuir para sua efetivação" (TJSC – 4ª CC); e (iii) a possibilidade de exumação para fins de exame de DNA, pacificada na jurisprudência do STJ, porquanto faculdade conferida ao juiz pelo art. 130 do CPC (STJ – AgRg no Ag 1159165-MG, DJe 04.12.2009; Pet. 8321; REsp. nº 765.479).

Por igual, tenha-se também forçoso admitir o apuramento da verdade pela verdade necessária. Verdades presumidas "jus hominis", verdades prováveis por inferências de razoabilidade, e outras verdades fictas, devem ceder à verdade real em sua inteira prospecção, seja como finalidade do processo, seja como condição de justiça, fundamental para a autoridade dos julgados (veritas + dicere).

Implicará o veredicto a consciência da dignidade plena do encontro do filho com o seu verdadeiro pai. Exumado que seja, mas não pre(exumido).

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* JONES FIGUEIRÊDO ALVES é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), coordena a Comissão de Magistratura de Família. Autor de obras jurídicas de direito civil e processo civil. Integra a Academia Pernambucana de Letras Jurídicas (APLJ).

Fonte: TJ/PE I 14/10/2013.

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Filiações plurais

* Jones Figueirêdo Alves

Cada família tem seu direito de família, diria Carbonnier (“a chaque famille son droit”), indicando que o direito de família não pode ser feito por normas fechadas, exigindo-se que doutrina e jurisprudência se adicionem em visão aberta que enxergue a família em seu “locus” de realizações pessoais e digna, portanto, de compreensões metajurídicas.

Assim, parentalidades são diversas, consolidadas pelo sangue (bio), pela consanguinidade com afeto (bioafetiva) e pelo trato, fama e nome, como a posse de estado de filho (socioafetiva); todas elas importando seus vínculos, o reconhecimento jurídico das situações fáticas e legais e, sobremodo, atendidas as relações entre pais e filhos como fenômenos parentais que transcendem os normativos atuais por existirem, antes de mais, como verdades concretas de realidade vividas e fundadas no valor afeto como bem jurídico.

Bem é certo diferentes a “verdade do sangue” e a “verdade do coração”, que são verdades que funcionalizam a filiação, conforme Marie-Thèrese Meldeurs em seu pioneiro artigo sobre os novos fundamentos do conceito de filiação (1972).

Impende, daí, considerar distintas (i) as filiações apenas biológicas, (ii) as filiações bioafetivas concomitantes (vínculo biológico + afetividade) e (iii) as filiações socioafetivas ocorrentes, estas últimas predominantes ou não. As primeiras estão na mera genitura, sem a função paterna exercida. Genitor é apenas quem procria. Pai é algo que acrescenta nas relações de vida.

Sucede, então, cogitar sobre a multiparentalidade quando é de admitir-se, em situações pontuais, coexistentes a parentalidade socioafetiva e a biológica (filiações plurais). Cuida-se da teoria tridimensional da filiação, em seus critérios bio-afeto-ontológicos, reconhecidos presentes a um só tempo.

A lei não oferece conceitos jurídicos de paternidade/maternidade, sequer constrói os seus estatutos próprios. Mas ao tratar da parentalidade, cuida defini-la em seu amplo espectro, dispondo o artigo 1.593 do Código Civil que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem”.

Pois bem. A parentalidade socioafetiva como modalidade de parentesco civil, sob a cláusula “outra origem”, adicionada pelo novo Código (para além dos casos de adoção) não é apenas criação jurídica da lei. Antes, recepciona a lei as situações fáticas e variadas que plasmam espécies de parentalidades, como representações suficientes de pais e filhos, que assumem-se, recíproca e conscientemente, por afeição, como se pais e filhos fossem, inexistente o “jus sanguinis”. Nessa toada, tais parentalidades consolidadas são reconhecidas e merecem amparo jurídico.

De fato, uma nova ordem jurídica coloca-se ao encontro das situações parentais mais diversas, onde a família apresenta-se como “a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa.” Esse conceito de família, o primeiro que se conhece ofertado pelo ordenamento jurídico nacional é o contido na lei 11.340/06 (artigo 5º, II) e no ponto, faz acrescentar o elemento da “vontade expressa” como novo liame familiar-parental, no plano civil. Esse significante tem sua precisão cirúrgica, definindo outros vínculos que não os meramente biológicos.

Sobrevém situações de fato que, inexoravelmente, estão a reclamar a multiparentalidade, em seus devidos efeitos jurídicos, à luz dos dispositivos legais existentes (artigo 1.593, CC; lei 11.340, artigo 5º, II), conforme as variantes de cada situação concreta. Vejamos hipóteses:

(i) A indução a erro daquele que registra suposto filho, sob a crença de ser o pai biológico por si só não pode macular o vinculo socioafetivo do pai registral, consolidado ao longo do tempo; a tanto permiti-lo defende-lo frente ao pai biológico quando este ciente da condição que lhe tenha sido até então sonegada;

(ii) Mesmo na ausência de ascendência genética, o registro realizado de forma consciente, consolida a filiação socioafetiva. Essa circunstância opera-se quando o companheiro da mãe solteira registra o filho trazido por ela. Essa relação de fato deve ser reconhecida e amparada juridicamente. “Isso porque a parentalidade que nasce de uma decisão espontânea, deve ter guarida no Direito de Família” (STJ – 3ª turma, RESp. 1.259.460-SP. Rel.Min. Nancy Andrighi, j. em 19/6/12);

(iii) Filiações ectogenéticas, na espécie dos filhos havidos por inseminação artificial heteróloga, onde por ficção legal é genitor o marido da mulher (artigo 1.597, inciso V; do Código Civil), configuram este também como pai socioafetivo. Ao pai biológico (dador do esperma), a multiparentalidade pode ocorrer quando em face do reconhecimento da identidade genética por direito personalíssimo do filho, ocorram relações parentais também afetivas.

(iv) Posse errada de filho (troca de recém-nascidos), apurada ao depois, onde a filiação socioafetiva consolidada não cede e não haverá de prejudicar a biológica.

A família multiparental, formada por filiações plurais, já existe na jurisdição prestada. São significativos os julgados:

(i) 11/2011: a juíza Deisy Cristhian Lorena de Oliveira Ferraz, da 1ª Vara Cível da Comarca de Ariquemes, em Rondônia, declarou a dupla paternidade admitindo em registro o pai biológico que passou a se relacionar com a filha adolescente, mantendo o do pai registral e socioafetivo (Proc. nº 0012530-95.2010.8.22.0002),

(ii) 10/2012: Acórdão da 1ªCâmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça, onde Relator o des. Alcides Leopoldo e Silva Jr., determinou o registro de um jovem com os nomes de seu pai biológico, de sua mãe biológica e de sua madrasta, como mãe socioafetiva (AC 0006422-26.2011.8.26.0286; DJESP 11/10/2012).

(iii) 08/2013: decisão da juíza Carine Labres, da Comarca de São Francisco de Assis (RS) admitiu pedido da madrasta e das crianças enteadas, em ação declaratória de maternidade, sem excluir o nome da mãe biológica do registro.

Bem de ver dos julgados que a multiparentalidade tem sido admitida, para todos os fins legais, podendo ser concomitante ou sucessiva, mas em todos os casos voluntária e não imposta.

Lado outro, a 4ª turma do STJ definiu no voto do ministro relator Luís Felipe Salomão que a filiação socioafetiva desenvolvida com os pais registrais não afasta os direitos do filho resultantes da filiação biológica: certo que “a paternidade biológica gera, necessariamente, uma responsabilidade não evanescente”.

Parentalidade múltipla, em todos os ditames, é espiritual, antes de jurídica, no melhor sentido canônico, como a de José, marido de Maria, que teve como filho socioafetivo o próprio filho de Deus. Por isso mesmo, Pai é aquele que se a(pai)xona.

Disso é feita a multiparentalidade, pela fortuna de espirito de quem possui, por dádiva de vida, mais de um pai ou uma mãe. Direitos sucessórios de ambos? Sim, porque essa fortuna será sempre menor que aquela. Afinal, quem herda do procriador (herança de sangue, sem afeto), por lógica jurídica pode cumular heranças dos pais, cujos vínculos maiores da bioafeição e socioafeição o tornaram mais afortunado.

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* Jones Figueirêdo Alves é desembargador decano do TJ/PE, diretor nacional do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família ecoordena a Comissão de Magistratura de Família.

Fonte: Migalhas I 01/10/2013.

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Uniões simultâneas, monogamia e dever a fidelidade

A monogamia, princípio organizador das relações da família conjugal no Ocidente, será discutida no IX Congresso Brasileiro de Direito de Família que acontece entre os dias 20 e 22 de novembro, em Araxá (MG). Nesta entrevista, o advogado Marcos Alves da Silva (PR), membro do Ibdfam, fala como este princípio foi e continua sendo utilizado como forma de controle da sexualidade feminina e como a discriminação jurídica que sofrem as famílias que se formam paralelamente ao casamento perdura durante séculos, “em nome da proteção à sagrada família formada pelo casamento”, e diz que “muitas mulheres intituladas concubinas, e sem nome, porque são ‘a outra’, criam filhos, e por longos anos assumem a responsabilidade pela casa, formam efetivamente uma família, reconhecida como tal sociologicamente, mas condenadas à invisibilidade jurídica em nome de um princípio, o da monogamia”. Confira:

1 – O que caracteriza o rompimento do princípio jurídico da monogamia?

 É necessário lembrar que a monogamia, considerada como regra ou princípio, sempre constituiu forma de controle da sexualidade, mormente da sexualidade da mulher. Ou esse controle era exercido pelo homem, e se revelava nas multiformes manifestações da dominação masculina, ou a regulação era exercida pela Igreja, ou pelo Estado, quando este chamou a si o regramento do casamento. Por isso, não se pode opor monogamia à poligamia. A poligamia admitida e praticada no oriente e no continente africano, talvez constitua modelo de dominação ainda mais severo que o da monogamia, no Ocidente. 

A monogamia foi erigida à condição de princípio jurídico par e passo à construção da regra da presunção da paternidade do marido em relação aos filhos nascidos de sua mulher. Vinculada a esta ideia está o tabu da virgindade e, também, a punição do adultério da mulher. O controle de sua sexualidade feminina constituiu e de certa forma ainda constitui instrumento de controle da prole do marido.

O princípio da monogamia está diretamente vinculado à distinção entre família legítima e família ilegítima, a família formada pelo casamento e concubinato. Portanto, o princípio é perfeitamente adequado à tutela da família transmissora do patrimônio, transpessoal. O princípio da monogamia pressupõe uma família merecedora da tutela do Estado e outra que fica fora deste âmbito de proteção. A tese do rompimento ou da superação da monogamia como princípio estruturante do estatuto jurídico da família verifica-se em função do reconhecimento do princípio da pluralidade das entidades familiares e, também, da superação da família formada pelo casamento como modelo superior reconhecido pelo Estado. À medida que o caput do art. 226 da Constituição Federal é compreendido como cláusula geral de inclusão e de tutela das famílias em suas multiformes manifestações, não há razão para se preterir uma família em benefício de outra pela simples razão de ser esta oriunda do casamento e aquela de uma união não formalizada.

A família foi funcionalizada ao desenvolvimento da personalidade e à realização das pessoas que integram o núcleo familiar. Não é mais tutelada como instituição que tem, em si, valor jurídico, independente das pessoas que a integram. Se assim é, não subsiste razão para se seguir afirmando que prevalecesse no ordenamento jurídico o princípio da monogamia. Este se presta, antes, a fomentar a construção de um lugar de não-direito. Sua utilização conduz especialmente as mulheres designadas pela pecha de concubina a uma condição de invisibilidade jurídica.

Os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da solidariedade, da igualdade, da liberdade e da democracia incidentes sobre as relações familiares, não permitem mais a afirmação de que a monogamia subsiste como princípio do Direito de Família.

2 – Por vezes, confundimos monogamia com fidelidade. O que diferencia esses dois princípios culturais e jurídicos e como se relacionam?

De fato, a fidelidade como expressão de um dever jurídico decorrente do casamento tem direta relação com o princípio da monogamia. A fidelidade conjugal significando exclusividade nas relações sexuais já constitui bem jurídico de interesse social. Tanto é assim, que o adultério constitui crime. Como a família formada pelo casamento constituía bem jurídico em si, a falta em relação ao dever de fidelidade atingia a instituição do matrimônio. Atualmente, não existe dever jurídico de fidelidade. O que consta do Código Civil não passa de um conselho moral sem qualquer eficácia jurídica. Especialmente depois da Emenda nº 66 o divórcio revelou-se como direito potestativo, desembaraçado de prazos ou de qualquer outro pré-requisito. Assenta-se exclusivamente na liberdade de não permanecer casado.

A culpa perdeu campo na dissolução dos vínculos matrimoniais. Logo, a fidelidade pode constituir norma interna de uma relação de conjugalidade, formalizada ou não pelo casamento, mas, não subiste como norma estatal. Não faz qualquer sentido que o Estado venha se imiscuir nas relações de conjugalidade para impor, por força de lei, o dever de fidelidade. O próprio princípio da liberdade assegura aos cônjuges a reserva de sua intimidade. Reclama-se, hoje, a ampliação do campo do exercício da liberdade especialmente no que se refere às situações subjetivas co-existenciais. As relações de conjugalidade não podem ser mantidas por regras heterônomas, impostas pelo Estado. Não há dique estatal que estanque a liberdade conquistada. O casamento ou a união estável somente se mantêm pela repactuação constante da relação.

Assim, a fidelidade, certamente existe como norma interna de determinada conjugalidade.  Mas, ruiu-se como regra de Estado prefixada para todo casamento e até para a união estável. Para essa, o codificador lançou mão de um eufemismo. Não teve coragem de dizer fidelidade, falou, então, em dever de lealdade. Pode-se dizer, então, que fidelidade como dever jurídico do casamento civil é conceito diretamente vinculado à noção de monogamia. Mas, pode ser reconhecida a fidelidade como situação de exercício de liberdade, no âmbito do que já foi chamado reserva da intimidade.                                                       

3 – Por que a monogamia pode ser considerada um instrumento de exclusão de muitas formas de famílias? 

No Brasil, o concubinato, desde os primeiros dias da Colônia, constituiu um não-lugar no sistema, isto é, sempre habitou marginalidade jurídica. Num país em que a dominação masculina e o desprezo em relação à mulher índia, negra, mestiça foram sempre a tônica, a monogamia, erigida à condição de princípio jurídico, se prestou como instrumento perfeito para a desqualificação de inúmeras famílias formadas à margem da família reconhecida oficialmente, isto é, a surgida do casamento civil. O concubinato não foi tratado pelo Direito de Família brasileiro até a década de 1960. Nós teremos ainda vergonha de nosso passado recente e do grau de discriminação jurídica que sofrem as famílias que se formam paralelamente ao casamento. Repetimos e legitimamos discriminação que já se estende por séculos.

Em nome da proteção à sagrada família formada pelo casamento, muitas mulheres intituladas concubinas, e sem nome, porque são "a outra", criam filhos, e por longos anos assumem a responsabilidade pela casa, formam efetivamente uma família, reconhecida como tal sociologicamente, mas condenadas à invisibilidade jurídica em nome de um princípio, o da monogamia.

Por outro lado, o Estado cometeria um desatino ao não reconhecer famílias que, em razão da liberdade de seus integrantes, não se formam por par homo ou heterossexual, mas, se formam por meio de uma conjugalidade plúrima, que tem sido designada como poliamor. Que razões minimamente razoáveis — para ser redundante — poderia evocar o Estado para não reconhecer, por exemplo, união estável estabelecida entre três pessoas, como a do caso de Tupã – SP, que se tornou notória. Se tais famílias existem, não podem ser condenadas à invisibilidade jurídica em homenagem ao princípio da monogamia.    

4 – Como a superação da monogamia como princípio jurídico poderia ser uma ferramenta para assegurar que a diversidade das formas de família seja um direito legítimo do cidadão? 

De fato, a superação da monogamia como principio, constitui questão de cidadania. Num Estado plural e laico, todos devem ter espaço para a livre constituição de família. Não cabe ao Estado, em atenção a princípios arcaicos e injustificáveis, no atual estágio de desenvolvimento do Direito das Famílias, colocar obstáculos ao reconhecimento das diversas formas de constituição de família. 

Ainda que haja uma maioria religiosa e mesmo uma hegemônica compreensão moral de que a monogamia deve nortear as relações de conjugalidade, esta maioria não tem o direito de impor à totalidade dos cidadãos um modelo único de família. A democracia é o difícil exercício de construção de um espaço onde caibam todos, convivendo com respeito e profunda consideração ao direito de ser diferente. A igualdade pressupõe o direito à diversidade. 

5 – Como o tema Uniões simultâneas, Monogamia e dever a fidelidade se relaciona ao tema central do Congresso: Famílias, Pluralidade e Felicidade”?

A relação é imediata. A família não é uma instituição criada pelo Estado e nem pode ser por ele rigidamente delimitada e, muito menos funcionalizada a interesses ditos superiores. As famílias contemporâneas têm uma vocação já há algum tempo bem sinalizada por Michelle Perrot: a realização e, portanto, a felicidade daqueles que a integram. 

Não existe cânone para a felicidade. As formas, os meios e os sentidos da realização humana são tão diversos como o são as próprias pessoas. Logo, não existe modelo para felicidade e nenhum pode ser imposto como o ideal sob pena de negação da própria felicidade. Assim, a pluralidade em matéria de Direito das Famílias é decorrência necessária da própria idéia de felicidade. A monogamia é regra de um modelo envelhecido, que não encontra reverberação na dinâmica estonteante da contemporaneidade.

Se o Direito não está posto para ditar o modelo único de uma família idealizada do passado, os juristas devem afastar o medo de se defrontarem com o diferente, com o Outro em suas múltiplas experiências de ser e de se fazer humano.

6 – Se na sociedade contemporânea não há como modelar uma concepção majoritária de Felicidade, o que precisa ser alterado para que o Direito de Família contribua  para assegurar essa felicidade plural como um direito social?  

Se há uma tendência clara em relação ao Direito das Famílias contemporâneo, esta se encontra na afirmação da liberdade como princípio norteador. A intervenção excessivamente regulatória do Estado especialmente em matéria de conjugalidade revela-se como postura indesejada, inoportuna, contrária à expressão plural e informal das famílias contemporâneas. Toda regulação da família a partir de uma dada concepção moral, ainda que demograficamente majoritária, mostra-se incongruente com o princípio da democracia e com a laicidade do Estado. Não existe um modelo de família ideal, adequado à realização de uma felicidade também idealizada e tudo isso capturado e esboçado em um paradigma legal como o do casamento, com suas regas, deveres e obrigações previamente constituídos. 

Evidentemente, os deveres conjugais, por exemplo, previstos nos art. 1.566 do Código Civil, são a expressão de um ideário, de um modelo de felicidade em abstrato. O Estado ingressa na intimidade da casa para dizer que a família feliz é aquela na qual são respeitados os deveres de fidelidade recíproca, vida em comum no domicílio conjugal, assistência mútua, sustento, guarda e educação dos filhos, respeito e considerações mútuos. A questão é que tal intervenção tornou-se um verdadeiro fiasco. Os deveres se converteram em meros conselhos morais, destituídos de qualquer eficácia jurídica. O Estado legislador, nesta matéria, cumpre papel sem nenhum protagonismo. A felicidade não pode ser contida na regulação de uma conjugalidade eleita pelo Estado. As pessoas reivindicam para si, com veemência, o direito de auto-regularem as suas relações familiares. A felicidade não pode ser dada, há de ser construída pela liberdade e criatividade daqueles que se sentem desafiados à aventura de uma vida fundada na fragilidade dos laços do amor.

Logo, o que precisa ser alterado é o senso comum dos juristas que, abstraídos da realidade multifacetada das famílias contemporâneas, insistem em um modelo paradigmático do passado, o casamento civil. Os antidivorcistas das décadas de 60 e 70 do século passado estavam certos de que com a possibilidade do divórcio a família e o projeto de felicidade nela idealizado se esboroariam. Atualmente, ainda está entrincheirada em uma mentalidade reacionária prevalecente a felicidade idealizada e pressuposta no modelo legal matrimonializado de família. Daí as reações quase raivosas face às uniões homoafetivas ou à co-existência de conjugalidades simultâneas, ou ao poliamor. A questão da felicidade é aqui central. Como bem o disse Caetano: "Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto/  Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto/ É que Narciso acha feio o que não é espelho / E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho".

Numa sociedade plural e democrática, há de existir lugar para todos. A liberdade de ser e de se fazer é indispensável à felicidade, como realização da pessoa humana. Logo, a felicidade desafia uma revolução jurídica no mundo do Direito das Famílias. O Estado regulador deve ser, o quanto possível, afastado para abrir campo à liberdade nas situações subjetivas co-existenciais. Sua presença só tem sentido para o resguardo e tutela dos que se encontram em situação de vulnerabilidade nas relações familiares.

Fonte: Assessoria de Comunicação do IBDFAM I 25/09/2013.

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