Processo 1054460-71.2024.8.26.0100
Dúvida – Registro de Imóveis – M. Musons Participações Ltda – Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida suscitada para manter o óbice. Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios. Oportunamente, ao arquivo. P.R.I.C. – ADV: GIOVANI SOTONYI (OAB 392548/SP)
Íntegra da decisão:
SENTENÇA
Processo nº: 1054460-71.2024.8.26.0100
Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis
Suscitante: 3º Oficial de Registro de Imóveis da Capital
Suscitado: M. Musons Participações Ltda
Juíza de Direito: Dra. Renata Pinto Lima Zanetta
Vistos.
Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 3º Registro de Imóveis da Capital, a requerimento de M. Musons Participações S/C Ltda., diante de negativa em se proceder ao registro de instrumento particular de cisão parcial, tendo por objeto o imóvel da matrícula n. 58.797 daquela serventia.
O Oficial informa que a suscitada é titular de domínio de 50% do citado imóvel (R.03/58.797), e por meio do instrumento apresentado para registro, a referida fração foi transferida para a empresa Omnia Administração e Participação Ltda., conforme protocolo e justificação de cisão parcial que integra o título; que, inicialmente, o título foi devolvido por meio de nota devolutiva com a formulação de exigências, as quais restaram parcialmente atendidas; que a negativa em registrar o instrumento de cisão parcial esbarra na impossibilidade de se proceder à averbação da cláusula de inalienabilidade da parte ideal de 1/3 da fração de 50% vertida para o patrimônio da Omnia Administração e Participação Ltda., como previsto no item 5 do protocolo e justificação; que a negativa funda-se na ausência de previsão legal de instituição desta restrição em atos onerosos, como é a alteração societária; que as cláusulas restritivas somente podem ser impostas por atos gratuitos, isto é, doação ou testamento, nos termos dos arts. 1848 e 1911 do Código Civil (fls. 01/03).
Documentos vieram às fls. 04/57.
Em manifestação dirigida ao Oficial, a parte suscitada aduz que, além do registro do instrumento de cisão parcial, requer a averbação da cláusula de inalienabilidade sobre 1/3 da fração de 50% vertida para o patrimônio da Omnia; pela responsabilidade solidária havida entre as partes sobre as obrigações tributárias mencionadas no referido instrumento, que deverá permanecer até que a dívida seja liquidada ou reconhecida a prescrição, quando então, a credora dará quitação à garantia, liberando a restrição gravada sobre o imóvel (fls. 04).
O Ministério Público opinou pela manutenção do óbice (fls. 70/73).
É o relatório.
FUNDAMENTO e DECIDO.
De proêmio, cumpre ressaltar que o Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (artigo 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.
Assim, o Oficial, quando da qualificação registral, perfaz exame dos elementos extrínsecos do título à luz dos princípios e normas do sistema jurídico (aspectos formais), devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.
É o que prevê o item 117 do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça (NSCGJ): “Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais”.
No mérito, a dúvida é procedente.
A interessada busca o registro de instrumento particular de cisão parcial de M. Musons Participações Ltda. de 31 de outubro de 2023, para transferência da fração de 50% do imóvel objeto da matrícula n. 58.797 do 3º Registro de Imóveis da Capital à sociedade Omnia Administração e Participação Ltda., bem como a averbação de cláusula de inalienabilidade sobre 1/3 da fração de 50% do imóvel vertida para o patrimônio da Omnia, conforme protocolo e justificação de cisão parcial que integra o título (fls. 10/35).
No âmbito do Registro de Imóveis, o termo “registro”, em sentido amplo, abrange todo lançamento de atos e negócios jurídicos no fólio real.
A regra do artigo 246 da Lei de Registros Públicos, assim estabelece:
“Art. 246: Além dos casos expressamente indicados no inciso II do caput do artigo 167, serão averbados na matrícula as subrogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro ou repercutam nos direitos relativos ao imóvel”.
Em sua acepção estrita, registro é o ato de oneração ou constituição de direitos reais sobre imóveis e se submete aos princípios da tipicidade e da legalidade, uma vez que restrito a rol taxativo definido em lei.
Os atos suscetíveis de averbação, por sua vez, são de natureza acessória e estão previstos em rol exemplificativo, por se referirem a mutações relativas a direitos e fatos anteriormente inscritos.
Nesse sentido, a jurisprudência do E. Conselho Superior da Magistratura:
“Como se sabe, as hipóteses de registro são previstas, de modo taxativo e exaustivo, nos diversos itens do inciso I do artigo 167 da LRP, constituindo numerus clausus.
O mesmo não ocorre, entretanto, nos casos de averbação, onde as hipóteses descritas no inciso II do mesmo artigo 167 são meramente exemplificativas, constituindo numerus apertus. Termos em que, é manifesta a inviabilidade do registro do termo de constituição de garantia de alienação fiduciária de lavouras e produto (fls. 15/23).
Nesse sentido, a lição de Afrânio de Carvalho: (…) o registro não é o desaguadouro comum de todos e quaisquer títulos, senão apenas daqueles que confiram posição jurídico-real, como os constantes da enumeração da nova Lei do Registro (art. 167) – Registro de Imóveis. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 236.
Na mesma direção, já decidiu a Corregedoria Geral da Justiça (Processo CG nº 167/2005), como se observa: Tal dispositivo legal atribui ao elenco de hipóteses de averbação discriminadas na Lei de Registros Públicos o caráter de rol meramente exemplificativo, diversamente do que se passa com as hipóteses de registro do art. 167, I, enumeradas em caráter taxativo (cf. Vicente de Abreu Amadei, ob. cit., p. 50, nota 111; Valmir Pontes, Registro de Imóveis. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 178, nota 2) – (…)” (Apel. Cível n. 0035067.98.2010.8.26.0576, DJ: 11/08/2011 – Relator: Maurício Vidigal).
Assim, a forma de inscrição de títulos no fólio real tem finalidade própria, reservada para cobrir situação jurídica distinta:
“Embora uma e outra cubram mutações jurídico-reais, a primeira destina-se a certas mutações e a segunda a outras diversas. A inscrição, nela absorvida a transcrição discrepante, cobre as aquisições e onerações de imóveis, que são os assentos importantes, ao passo que a averbação cobre as demais, que alteram por qualquer modo os principais. A nomenclatura binária condiz com a diferença entre a principalidade dos primeiros atos e a acessoriedade dos segundos. Essa diferença, derivada da consideração recíproca dos atos, implica outra de natureza temporal, pois o que altera é necessariamente posterior ao alterado. Assim, pressupondo a inscrição, a averbação lhe é posterior, devendo consignar fatos subsequentes. A nova lei registral confirma esse conceito, visto como, após referência a casos expressos de averbação, a prevê para ‘as sub-rogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro’ (art. 246). (…)
A averbação não muda nem a causa nem a natureza do título que deu origem à inscrição, não subverte o assento original, tão somente o subentende (…)” (Afrânio de Carvalho, Registro de Imóveis, 4ª edição, Rio de Janeiro: editora Forense, 1998, página 117).
Importante observar, ademais, que no sistema registral, vigora o princípio da legalidade estrita, pelo qual somente se podem admitir hipóteses de registro e de averbação autorizadas por lei.
No caso concreto, não há previsão legal para o ato registral pretendido: estipulação de cláusula de inalienabilidade da parte ideal de 1/3 da fração de 50% do imóvel como garantia do pagamento de obrigações mencionadas no referido instrumento particular de alteração societária (negócio oneroso).
A cláusula restritiva em questão somente se aplica a atos de liberalidade, implicando impenhorabilidade e incomunicabilidade, como se extrai dos artigos 1848 e 1911 do Código Civil.
Embora ausente qualquer ressalva na previsão do artigo 167, II, item 11, da Lei de Registros Públicos, a interpretação sistemática à luz dos princípios que regem o Direito Registral e o direito de propriedade, inclusive sob o aspecto da responsabilidade patrimonial do proprietário, deixa evidente que referido dispositivo não pode ser aplicado em disposição voluntária, feita pelo próprio titular do domínio, como bem observa Ademar Fioranelli:
“Se é certo que a lei não proíbe expressamente a imposição de cláusula restritiva pelo titular do domínio do imóvel, não menos certo é que a proibição para tanto está inserida nos princípios que regem o direito de propriedade, e em geral. Admiti-la, afora o instituto do bem de família, seria contrariar princípios de direito e normas legais; apoiar-se tal posição seria facultar ao devedor isentar seu bem de responder por uma dívida, quando o princípio normativo é no sentido de que o patrimônio do devedor responde por suas obrigações. Chegaríamos, assim, às raias da imoralidade” (Direito Registral Imobiliário. Porto Alegre: Instituto de Registro Imobiliário do Brasil / Sergio Antonio Fabris Editor, 2001, página 171).
Portanto, não se afigura possível, mediante negócio privado firmado onerosamente, bloquear o patrimônio do devedor em face de outros credores que não participaram da alteração societária.
Em suma, a cláusula de inalienabilidade em questão abarca simples obrigação de não fazer, pelo que não pode ingressar na matrícula do imóvel, por ausência de previsão legal de instituição desta restrição em atos onerosos.
Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida suscitada para manter o óbice.
Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.
Oportunamente, ao arquivo.
P.R.I.C.
São Paulo, 05 de junho de 2024.
Renata Pinto Lima Zanetta
Juíza de Direito (DJe de 07.06.2024 – SP).
Fonte: DJE/SP
Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!
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