IMPOSTO DE TRANSMISSÃO NA CESSÃO DA POSSE

Muito se discute sobre a constitucionalidade do imposto de transmissão na cessão de direitos de posse sobre imóveis. A questão necessita maior reflexão, uma vez que há sérias divergência legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais.

Primeiramente, é necessário investigar o que estabelece a Constituição Federal sobre o imposto de transmissão, de competência estadual, quando se trata de transmissãomortis causa ou doação, ou municipal, se a transferência for onerosa.

No âmbito estadual não há nenhuma dificuldade. O art. 155 (I), da CF, é extremamente simples: “Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir imposto sobre transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos” (grifei).

É pacífico: na cessão gratuita do direito de posse sobre imóveis pode o estado exigir o recolhimento do imposto de transmissão. A posse é um direito que pode ser transferido a outrem, isto é, transmitido por ato entre pessoas vivas, ou causa mortis. Logo, a constituição federal autoriza a cobrança do imposto estadual na cessão de posse a título gratuito, equiparada à doação, ou na transmissão por herança.

Pacífico. Pacífico. Cumpre esclarecer que embora a constitucionalidade do imposto na cessão gratuita da posse, que é modo derivado de aquisição do direito sobre a propriedade, o mesmo não ocorre na usucapião, eis que em tal caso não há transmissão: a usucapião é modo originário de aquisição. A distinção é necessária, porque tanto nas esferas legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais, se nota haver confusão entre os institutos – cessão e usucapião – que são absolutamente diversos. 

Ainda que sejam discutidas teorias pelas quais alguns entendem ser a posse um direito real, enquanto outros defendem que é um direito pessoal, isso não tem nenhuma relevância sobre o que se discute,  pois o imposto de transmissão a título gratuito ou mortis causa recai não somente sobre imóveis, mas também sobre móveis, semoventes, eletrodomésticos, e inclusive dinheiro. É preciso desmistificar a ideia de que o tributo incide apenas nas transmissões que envolvam direito real.

Mas, quando se trata de cessão por ato oneroso, hipótese de aplicação de lei municipal, pode se afirmar a mesma coisa?

Algumas peculiaridades devam ser examinadas, a começar pela abismal diferença entre as tantas leis municipais, tantas quantos são os municípios brasileiros. No mais das vezes o legislador quer ser diferente, mesmo ainda que procure adequar o antigo texto estadual anterior à CF/88 – até então o imposto era de competência exclusiva dos estados – e para isso inverte palavras, extirpa outras, inventa algumas, resultando numa absurda miscelânea. Alguns exigem o ITBI na cessão de direitos de posse, outros declaram que o imposto não incide na cessão, e outros ainda referem-se a usucapião, confundindo os institutos.

A competência municipal para tributar a transmissão inter vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição (grifei), vem esculpida no art. 156 (II) da carta maior. Talvez resulte daí o equívoco de que o imposto somente pudesse abarcar a transmissão objeto de direitos reais. A regra continua, e torna claro: "bem como cessão de direitos a sua aquisição". Recorde-se que a aquisição pode se dar de dois modos: a) por modo originário (usucapião); b) por modo derivado – cessão (gratuita ou onerosa) e herança. 

No comparativo com a permissão dada aos Estados e ao Distrito Federal, que podem tributar a transmissão de quaisquer bens ou direitos, o principal diferenciador é que os Municípios podem somente instituir imposto sobre a transmissão de bens imóveis… bem como a cessão de direitos à sua aquisição.

Assim, se a lei maior autoriza a municipalidade em tributar a transmissão onerosa da cessão de direitos à aquisição – o cessionário de direitos possessórios pode unir a sua posse à do antecessor, para os efeitos legais (Código Civil brasileiro, art. 1.207, última parte) – então o ITBI que não incide na aquisição por usucapião, que é modo originário de aquisição da propriedade imóvel, pode ser exigível na cessão, modo derivado, que precede a usucapião.

Por fim, é certo que o tabelião de notas deve sempre encaminhar a guia informativa do imposto de transmissão ao fisco municipal, nas hipóteses de cessão onerosa de direitos de posse sobre imóveis, ou à Secretaria da Fazenda Estadual, se a transmissão for a título gratuito, ou por herança, para manifestação do ente público, seja para declarar a não incidência, seja para exigir o tributo.

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José Hildor Leal

Fonte: Blog do CNB-CF I 30/12/13

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LOTE VAGO EM REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA

* Amilton Alvares e George André Alvares         

A Lei nº. 11.977/2.009, alterada pela Lei nº. 12.424/2.011, dotou o Município de instrumentos e meios efetivos para implementar a regularização fundiária dos assentamentos urbanos irregulares. Agora, com a possibilidade de expedir Auto de Demarcação Urbanística e títulos de legitimação de posse, não pode mais o Município esquivar-se de promover a regularização dos loteamentos clandestinos e parcelamentos irregulares em seu território.        

No assentamento urbano irregular não há muito o que exigir em termos procedimentais para a regularização. O procedimento deve ser simples e célere, como agora determinado em lei; é necessário alcançar logo o objetivo final de entregar um título ao ocupante. Não deve haver preocupação com reserva de áreas públicas e a lei até mesmo permitiu a regularização de assentamentos em APP – Área de Preservação Permanente, ocupadas até 31/12/2.007, desde que o Município assegure que a regularização do assentamento importará em melhoria das condições ambientais na ocupação consolidada (art. 54, § 1º da Lei nº. 11.977/2.009).

O principal favorecido na regularização do assentamento irregular é o morador cadastrado. No entanto, percebe-se que as Prefeituras começam a apresentar requerimentos de registro de parcelamento com declaração da existência de lotes vagos no assentamento irregular. Em São José dos Campos, a Prefeitura Municipal já expediu diversos termos de legitimação de posse de lote sem moradia. Diante desse quadro, é importante que o Registro de Imóveis tenha a exata noção de sua responsabilidade no controle a ser exercido na qualificação registral.

1.  Como a regularização fundiária tem por fim conceder aos ocupantes cadastrados o título de legitimação de posse (art.58 e 59, da Lei nº. 11.977/2.009), no registro do parcelamento, é importante exigir do Município a declaração de que não há lote vago no assentamento irregular.

2.  Se houver lote vago, deve o Município declarar expressamente quais são os lotes vagos e essa informação deve constar do registro do parcelamento e da matrícula dos respectivos lotes.

Recomenda-se fazer na matrícula de cada lote vago a seguinte averbação:

AV….LOTE VAGO: Procede-se a esta averbação, de ofício, para constar a existência de declaração expressa da Prefeitura do Município de …, arquivada na pasta própria do registro do parcelamento e regularização do assentamento urbano, com informação de que o imóvel desta matrícula constitui LOTE VAGO. Protocolo nº….de……… 

3.  A conseqüência direta é que o Município passará a ter limitações para outorgar títulos de legitimação de posse dos lotes vagos, pois o interesse magno tutelado pela Lei nº. 11.977/2.009 é o do morador cadastrado do assentamento regularizado. A lei ressalva a possibilidade de outorgar títulos de legitimação de posse aos proprietários de partes ideais (art. 59, § 2º), mas também quanto a estes há a exigência de que sejam cadastrados pela Prefeitura e comprovado o exercício da posse em lote específico.

O fim almejado na regularização fundiária é o de “conceder aos ocupantes cadastrados o título de legitimação de posse”. Se o lote está vago, por óbvio não pode haver morador cadastrado quanto a esse lote. Conforme o art. 59, § 1º, da Lei nº. 11.977/2.009, a legitimação de posse será concedida aos moradores cadastrados pelo poder público. O título de legitimação de posse não pode ser outorgado a quem não foi cadastrado previamente, pois, o art. 46 da Lei nº. 11.977/2.009 assegura a regularização fundiária para outorgar titulação aos ocupantes do parcelamento irregular, certamente, ocupantes, na data da demarcação urbanística. A Lei nº. 11.977/2.009 é rigorosa quanto a esse aspecto, a ponto de não ter assegurado aos ocupantes relocados o direito à legitimação de posse no próprio local (art. 58, §3º, da Lei nº. 11.977/2.009). Aos relocados, o poder público deverá assegurar o direito social de moradia de alguma outra maneira.

Em primeiro plano, não se pode conceber a legitimação de posse em favor de quem não seja morador do assentamento regularizado. Pode, eventualmente, o título de legitimação de posse ser concedido a quem é “proprietário” de parte ideal cadastrado pela Prefeitura (art. 59, § 2º, da Lei nº. 11.977/2.009); entretanto, tal circunstância deve ser declarada expressamente no termo de legitimação de posse ou em documento apartado, expedido pelo Município, sob sua responsabilidade exclusiva, de maneira a espancar qualquer dúvida.

4. Importa ressaltar que somente os títulos de legitimação de posse, de lotes com até 250 m2, terão direito ao pedido de conversão do registro da posse em registro de propriedade, após o decurso do prazo de 5 (cinco) anos. No caso de lotes com área superior a 250 m2, o pedido de conversão ficará sujeito ao decurso do prazo da usucapião, conforme estabelecido na legislação pertinente (art. 60, § 3º da Lei nº. 11.977/2.009).

5. Lotes vagos não são bens indisponíveis ou fora de comércio. Se a área originária da demarcação urbanística for um imóvel com vários proprietários de partes ideais, eventualmente, esses proprietários de partes ideais (ou seus sucessores), poderão invocar a posse do lote vago e requerer a especialização da sua parte ideal num determinado lote vago do parcelamento registrado (item 222, Capítulo XX, NSCGJ-SP, conforme Provimento CGJ/SP nº. 21/2.013). Também poderão ser registrados os instrumentos expedidos anteriormente à regularização, em nome dos respectivos adquirentes ou titulares de direitos decorrentes de contratos de compra e venda, compromisso de venda e compra, cessões e promessas de cessão (item 230, Capítulo XX, NSCGJ-SP, conforme Provimento CGJ/SP nº. 21/2.013). E não há impedimento para a Prefeitura outorgar título de legitimação de posse em lote vago, mediante justificativa expressa de que o legitimado é proprietário ou sucessor do proprietário de parte ideal, com posse localizada em certo lote individualizado e identificado (art. 59,§2º, da Lei nº. 11.977/2.009. Essa verificação incumbe à Prefeitura, antes de outorgar o título de legitimação de posse. Eventual fiscalização, para prevenir e coibir favorecimento indevido, competirá ao Ministério Público (art. 127 da Constituição Federal).

Em algumas hipóteses aventadas poderá haver cobrança de emolumentos cartorários, pois tais atos, especialmente os referentes à especialização da parte ideal em favor do proprietário tabular, que na prática corresponde a retificação, não estão compreendidos na norma de isenção do art. 68 da Lei nº. 11.977/2.009. A Corregedoria Geral da Justiça- SP já se pronunciou acerca do tema, afirmando que tal norma deve receber exegese estrita, como é a regra de interpretação das isenções tributárias (Processo CG nº. 2.011/42.551 e 2.009/95.948).

6. Poderá o Município pensar em alguma outra forma prática de dar destinação aos lotes vagos. Poderia até mesmo pensar nisso antes de requerer o registro do parcelamento; poderia, por exemplo, dar destinação pública a tais lotes vagos ou dotar os mesmos de instalações e equipamentos urbanos de uso comunitário ou social, no interesse dos moradores do assentamento e da vizinhança.

Não se deve afastar a possibilidade de o Município fomentar a instalação, nos lotes vagos, de postos de comércio e serviços, unidades de interesse e utilidade pública, para atendimento da comunidade local e regional.

O Município também poderá desapropriar os lotes vagos para os fins previstos no art. 44 da Lei nº. 6.766/79, reloteamento, reconstrução (ou construção) e incorporação. Pagará pouco por isso, se o fizer logo, e poderá oferecer mais unidades habitacionais à população de baixa renda.

Qualquer que seja a solução adotada pelo Município quanto aos lotes vagos, mostra-se recomendável que os títulos outorgados sejam registrados na Matrícula do lote. Hoje, no regime da Lei nº. 11.977/2.009, não há previsão para transformar em domínio, título que não seja oriundo de legitimação de posse ou de desapropriação. Mas podemos ter avanços legislativos e jurisprudenciais para assegurar tratamento mais favorável a esses lotes de regularização fundiária, em que a ocupação der-se em data posterior ao registro do parcelamento.        

Pode-se dizer que o Município está com a faca e o queijo na mão para fazer um grande banquete social e político nas regularizações fundiárias. A mesa está posta e muitas são as iguarias. Os talheres (ferramental) do Município constituem peças de ouro e prata; o Município só não pode perder o bonde da história e esquecer-se dos lotes vagos. Para não ter de enfrentar, no futuro, uma nova onda de regularizações fundiárias com a ocupação irregular dos lotes vagos que ficaram para trás.

Leia também: LOTE VAGO EM REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA – Parte II. Clique aqui!

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* Amilton Alvares é Procurador da República aposentado, Oficial do 2º Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca de São José dos Campos/SP, colaborador do Portal do Registro de Imóveis (www.PORTALdoRI.com.br) e colunista do Boletim Eletrônico, diário e gratuito, do Portal do RI.

* George André Alvares é Advogado e Presidente do Instituto Lares (ONG de regularização fundiária).

Como citar este artigo: ALVARES, Amilton; ALVARES, George André. LOTE VAGO EM REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA. Boletim Eletrônico do Portal do RI nº. 214/2013, de 17/12/2013. Disponível em https://www.portaldori.com.br/2013/12/17/lote-vago-em-regularizacao-fundiaria/. Acesso em XX/XX/XX, às XX:XX.

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O Usucapião tabular – parte I

* Vitor Frederico Kümpel

Pretendemos iniciar hoje uma série de discussões, bem com uma contextualização, a respeito do conhecido instituto do usucapião, tendo em vista as alterações que lhe disseram respeito ao longo dos anos. Nesse sentido, nosso objetivo final é explicar o advento da lei 12.424 de 16 de junho de 2011, que disciplinou o instituto do usucapião tabular familiar no ordenamento jurídico brasileiro.

O usucapião, assim como outros institutos, se adaptou à mudança do tempo e passou a proteger muito mais do que a tutela da posse. Nos últimos tempos, vem tutelando a regularização formal dos imóveis dentro da tábula registral, de forma a ganhar novos contornos, o que, inclusive, justifica a redução considerável do prazo para o seu aperfeiçoamento.

Logo, iniciaremos, hoje, com uma breve contextualização do usucapião tabular, e, posteriormente, em uma segunda coluna, trabalharemos o enfoque do ordenamento a partir da disciplina da segurança jurídica. Por fim, no nosso terceiro e último encontro da série, chegaremos ao objetivo final, que é discutir o usucapião tabular familiar, dada a importância que este adquire no ordenamento jurídico brasileiro no contexto da reestruturação fundiária.

O usucapião, em sua acepção original, refere-se ao modo originário de aquisição da propriedade, bem como de outros direitos reais, caracterizado pelo exercício contínuo e inconteste da posse por determinado tempo. Seu fundamento é a consolidação da propriedade, de modo a conferir juridicidade a uma situação de fato, isto é, a posse unida ao tempo1.

É sabido que originalmente, o usucapião remonta ao direto romano. O instituto já gozava de grande relevância desde a Lei das XII Tábuas, embora, tenha atingido seu ápice no direito de Justiniano, com a fusão em um único instituto da usucapio e da praescriptio – meio de defesa processual concedido ao possuidor contra quem lhe exigisse a coisa por meio de ação reivindicatória2.

Em âmbito Nacional, seu mais antigo precedente está no art.5º da lei 601, de 1850, no qual os posseiros poderiam adquirir terras devolutas. A partir da constituição de 1934, há referências expressas ao instituto em todas as demais constituições, não restando à Constituição Federal de 1988 grandes novidades. Atualmente, a lei 10.406/2002, que institui o atual Código Civil trouxe algumas inovações em relação ao antigo código de Beviláqua. Este conferia maior proteção à propriedade, por isso designava prazos extensos à faculdade de usucapir. O atual código reduziu tais prazos em benefício da posse, tendo em vista a função social da propriedade. Dentro das inovações, também houve a introdução de novas modalidades do instituto do usucapião.

Assim, quanto ao usucapião de bens imóveis, o Código previu sete hipóteses. São elas: o extraordinário, o ordinário, o constitucional urbano, o constitucional rural, o especial coletivo, além do extraordinário com prazo reduzido, e, por fim, o usucapião ordinário com prazo reduzido, também denominado tabular ou de livro, objeto de estudo deste artigo.

Quanto ao usucapião ordinário, este se destina a sanar alguns dos defeitos graves do título de transmissão da propriedade imóvel. É previsto pelo art. 1242 do Código Civil de 2002 e possui como base o princípio da confiança, somado à boa-fé e à segurança jurídica. Para caracterizar tão grande vantagem, o possuidor, no entanto, deve preencher o requisito do decurso de tempo de 10 anos entre os presentes ou 20 anos entre ausentes, de modo que a lei exige ainda a boa-fé e o justo título.

Em matéria de usucapião, nas palavras de Alípio Silveira, temos o justo título como o fato ou ato-jurídico hábil em tese para a transmissão da propriedade, mas que, eventualmente, devido a defeitos graves, torna-se inoperante. Desse modo, caso preencham suas respectivas formalidades legais indispensáveis, a compra-venda e a doação, por exemplo, constituem-se justos títulos para o usucapião quando a transmissão não se opera em função de outros vícios ou defeitos, dentre a transmissão a "non domino", por exemplo3. Portanto, embora ilegítimas, servem de fundamento à aquisição de um direito real. Já a boa-fé se insere como elemento saneador do justo título, a fim de não prejudicar o possuidor, estando, dessa forma, intimamente ligada a este.

Nesse contexto, como espécie do gênero do usucapião ordinário, o Código Civil inseriu no parágrafo do art. 1242 a figura do usucapião ordinário com prazo reduzido, também conhecido como usucapião tabular, conforme o direito alemão. Nessa hipótese, o código reduziu o prazo de consolidação da propriedade para cinco anos.

O nome usucapião tabular ou de livro lembra o instituto posto no direito alemão, que regulamenta tal modalidade no parágrafo 900 do Código Civil Alemão (BGB): "Quem, como proprietário de um prédio, estiver inscrito no Livro de Imóveis, sem que tenha ele obtido a propriedade, adquirirá a propriedade quando a inscrição durar trinta anos e, durante esse tempo, tiver tido ele a posse do prédio a título de propriedade". Nesse sentido, o usucapião se dá em relação ao imóvel já previamente registrado ou tabulado no livro registral como propriedade em nome de determinado indivíduo, que, no entanto, por um vício do título, por exemplo, possui somente a posse do imóvel. O direito alemão não exige a boa-fé do sujeito a usucapir, além de manter prazo consideravelmente extenso para a caracterização do instituto.

Embora desprovido da extensão que lhe é conferida pelo direito Alemão, no Brasil, o usucapião ordinário com prazo reduzido, ou tabular, se refere diretamente aos casos em que o imóvel foi adquirido de maneira onerosa, porém com base em um registro posteriormente cancelado. Observe:

"Art. 1242. Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico".

Cabe ressaltar, que apenas caracterizam o referido parágrafo, os possuidores que estabeleceram sua moradia no imóvel ou os que realizaram investimentos consideráveis, com interesse social e econômico. Um possível exemplo do tipo de situação prevista no artigo 1.242 do Código Civil consiste naquela em que alguém adquire um imóvel daquele que não é o verdadeiro proprietário, tendo, porém efetivado o registro da propriedade. Neste caso, uma vez verificado os requisitos da boa-fé, justo título, posse continua e inconteste, aplica-se a redução do prazo para a caracterização do usucapião tabular.

Desse modo, houve uma preocupação do legislador com a salvaguarda do direito daquele que, de boa fé, acreditava estar adquirindo a propriedade de determinado imóvel, mas, que, por algum erro ou vício anterior, teve como resultado o cancelamento do registro feito na matrícula do imóvel. Assim, mesmo se tratando de um título registrado e posteriormente cancelado, irá ser garantida a propriedade do comprador de boa-fé, desde que, claro, cumprido os requisitos legais apontados.

A abordagem brasileira do instituto do usucapião tabular torna evidente o enorme valor atribuído, pelo legislador, ao princípio da boa-fé, além da ampliação da aplicação da presunção de veracidade dos registros públicos, valorizando a segurança e estabilidade das relações jurídicas. Ademais, trata-se de inovação a contemplar a função social da propriedade e da posse, dentro da teoria da utilidade social e do ato de soberania, sem deixar de delimitar o poder do proprietário, na perspectiva do poder de império do estado4.

Dentro da teoria da função social da propriedade, prima-se pela eliminação da incerteza nas relações jurídicas fundamentais, o domínio deve ser certo e o usucapião ocorre para aniquilar a incerteza. A propriedade deve possuir destinação útil à sociedade, de modo que, para alguns, esta chegaria a compreender uma espécie de pena, dada a negligência do dono que abandona a coisa. Tais características motivaram alguns autores a denominá-lo usucapião ordinário social.

Neste contexto, o usucapião tabular enfoca uma mudança de paradigma do instituto do usucapião. Este passa a envolver também a questão da regularização fundiária e não mais somente a proteção do exercício da posse. Tal utilidade se amplia consideravelmente na realidade brasileira, dado seu contexto histórico-social de ocupação territorial maciça por meio da posse.

Como leciona Alfonsin, temos por regularização fundiária o processo conduzido em parceria pelo poder Público e pela população beneficiária. Envolve as dimensões jurídicas, física e social de uma intervenção que prioritariamente objetiva legalizar a permanência de moradores de áreas urbanas ocupadas irregularmente para fins de moradia e acessoriamente promove melhorias no ambiente urbano e na qualidade de vida do assentamento, além de incentivar o plano exercício da cidadania pela comunidade, sujeito do projeto5. Nessa perspectiva surge o instituto do usucapião tabular, como um meio eficaz a promover a reestruturação fundiária brasileira, por meio da regularização da propriedade.

A legislação, há muitos anos vem se preocupando com a regularização fundiária, sendo um dos seus vértices tornar o registro de imóveis mais flexível e mais aberto, agasalhando o direito constitucional de moradia (Art. 6º, CF). Não foi à toa que a Lei 10.931, de 10 de agosto de 2004, entre seus muitos avanços estabeleceu o parágrafo 5º ao artigo 214 da lei dos Registros Públicos que passou a dispor "A nulidade não será decretada se atingir terceiro de boa-fé que já tiver preenchido as condições de usucapião do imóvel". Tal dispositivo prestigiou o usucapião tabular do artigo 1.242, parágrafo único, na hipótese de cancelamento posterior de propriedade, cujo título era uma escritura ou contrato de compra e venda, devidamente registrado no Registro de Imóveis, mas cancelado de forma superveniente.

Por todo o exposto, conclui-se que o usucapião tabular é um instituto de extrema valia para o direito. É via razoavelmente adequada e célere para proteger o adquirente de boa-fé, tendo, ainda como fundamento essencial a regularização fundiária, dado o processo de ocupação fundiária brasileira, baseado principalmente na posse. Há que se reconhecer que a ideia do legislador, como decorrência do uso social da propriedade e até mesmo da proteção da moradia, um direito fundamental da pessoal humana, é extremamente respeitável.

Nas próximas registralhas, abordaremos outras peculiaridades e benefícios do instituto, bem como seus aspectos práticos e efeitos dele decorrentes no ordenamento.

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1Diniz, M. H. Curso de Direito Civil Brasileiro. 19 ed. São Paulo: Saraiva. V2.

2Marky, T. Curso Elementar de Direito Romano. 8 ed. São Paulo: Saraiva. p.84.

3Jacomino, R. D. S. Doutrinas Essenciais Direito Registral. Edições Especiais Revista dos Tribunais. Vol. III, Registro Imobiliário: Aquisição da Propriedade, p. 1078.

4NETO, Júlio S. Usucapião Tabular. Instituto de Registro Imobiliário do Brasil. Acessado em 28/11/2013.

5Alfonsin, B. Direito à moradia: instrumentos e experiências de regularização fundiária nas cidades brasileiras.Rio de Janeiro: Observatório de Políticas Públicas, FASE, IPPUR, 1997.

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* Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo, doutor em Direito pela USP e coordenador da pós-graduação em Direito Notarial e Registral Imobiliário na EPD – Escola Paulista de Direito.

Fonte: Migalhas I 03/12/2013.

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