CSM/SP: Registro de imóveis – Pretensão de registro de contrato de locação – Dissonância entre a qualificação do proprietário e daquele que consta como locador – Quebra do princípio da continuidade – Dúvida prejudicada – Discordância parcial das exigências – Recurso não conhecido.

ACÓRDÃOS

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

Apelação n° 0075967-91.2013.8.26.0100

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação n° 0075967-91.2013.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que é apelante AUTO POSTO VITRINE LTDA., é apelado 12° OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA CAPITAL.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “PREJUDICADA A DÚVIDA, NÃO CONHECERAM DO RECURSO, V.U. DECLARARÁ VOTO CONVERGENTE O DES. ARTUR MARQUES DA SILVA FILHO, DIVERGINDO APENAS QUANTO AOS FUNDAMENTOS, ACOMPANHADO PELOS DES. GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO E RICARDO MAIR ANAFE.”, de conformidade com o voto do(a) Relator(a), que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Desembargadores JOSÉ RENATO NALINI (Presidente), EROS PICELI, GUERRIERI REZENDE, ARTUR MARQUES, PINHEIRO FRANCO E RICARDO ANAFE.

São Paulo, 16 de outubro de 2014.

HAMILTON ELLIOT AKEL

CORREGEDOR GERAL DA JUSTIÇA E RELATOR

Apelação Cível n° 0075967-91.2013.8.26.0100

Apelante: Auto Posto Vitrine Ltda.

Apelado: 12° Oficial de Registro de Imóveis da Capital.

VOTO N° 34.098

Registro de imóveis – Pretensão de registro de contrato de locação – Dissonância entre a qualificação do proprietário e daquele que consta como locador – Quebra do princípio da continuidade – Dúvida prejudicada – Discordância parcial das exigências – Recurso não conhecido.

Auto Posto Vitrine Ltda. interpôs recurso administrativo contra a r. sentença que manteve a recusa de registro de contrato de locação.

A recusa baseou-se no fato de que a qualificação do locador é dissonante à do proprietário. O registro, dessa forma, implicaria quebra de continuidade.

A apelante afirma que o imóvel foi alienado fiduciariamente para empresa de factoring e, portanto, seria necessário obter sua anuência para o registro. Diz, mais, que a locadora está em processo de falência e que teme que seu contrato seja rescindido, embora o esteja cumprindo corretamente.

O Ministério Público, após observar que a dúvida está prejudicada, opinou pelo desprovimento do recurso.

É o relatório.

O conhecimento da dúvida, de fato, está prejudicado. O Oficial do Registro de Imóveis, além de afirmar a quebra do princípio da continuidade, fez exigências quanto à descrição do imóvel no contrato de locação; a apresentação de documentos da locatária, interveniente anuente e fiadora; a qualificação dos representantes do Auto Posto Vitrine e de Oiratecos Participações Ltda.; a apresentação de documentos outros, o reconhecimento de firma etc, conforme notas de devolução de fls. 56/57. A recorrente, no entanto, limitou-se a impugnar uma das exigências.

A concordância parcial com as exigências do Oficial prejudica a dúvida, que só admite duas soluções: a determinação do registro do título protocolado e prenotado, que é analisado, em reexame da qualificação, tal como se encontrava no momento em que surgida dissensão entre a apresentante e o Oficial de Registro de Imóveis; ou a manutenção da recusa do Oficial. Para que se possa decidir se o título pode ser registrado ou não é preciso que todas as exigências – e não apenas parte delas – sejam reexaminadas pelo Corregedor Permanente. Nesse sentido, é pacífica a jurisprudência deste Egrégio Conselho Superior, como demonstra o julgamento da apelação cível no. 1.118-6/8, rel. Des. Ruy Camilo, de 30 de junho de 2009.

De qualquer maneira, ainda que não estivesse prejudicada a dúvida, a exigência feita foi correta.

Em primeiro lugar, ressalte-se que as razões expostas no inconformismo são absolutamente dissociadas da questão registral. Aliás, além de dissociadas, sequer retratam o que a apelante havia dito na fase de conhecimento. Basta ler fls. 59-A/63 e se verá que a argumentação dessa impugnação pouco tem a ver com as razões do recurso.

Trata-se, aqui, de dois imóveis, matrículas 116.787 e 118.099. O proprietário do primeiro é José Antônio Pereira da Silva. O proprietário do segundo é Álvaro Bovolenta e Cia. Ltda. Esse segundo imóvel foi objeto de promessa de venda, devidamente registrada, ao mesmo José Antônio Pereira da Silva.

O contrato de locação de fl. 42 tem, como locador, Vibrapar Participações Ltda. e, como locatário, Auto Posto Vitrine Ltda. Consta, nesse contrato, como interveniente anuente, Prime Administração de Bens e Participações Ltda. Nos aditamentos que seguem, essa empresa, antes anuente, passa a ser a locadora.

Na impugnação de fl. 61, a recorrente junta um contrato de locação, datado de 1999, no qual o proprietário José Antônio Pereira da Silva consta como locador. Locatárias são duas pessoas físicas. O fiador desse contrato, Alexandre Argoud Malavazzi – sem nenhuma explicação razoável para isso – surge num instrumento particular de compra e venda, posteriormente, no ano de 2007, como representante da empresa Vibrapar, alienando o imóvel para a empresa Prime. Nesse instrumento, consta que Vibrapar adquiriu o imóvel em arrematação, no processo de execução que Banco do Brasil ajuizou em face do anterior proprietário (de fato, nas matrículas, há penhora sobre os imóveis, a favor de Banco do Brasil).

Dos documentos juntados pode-se deduzir que o proprietário José Antônio Pereira da Silva sofreu ação de execução, pelo Banco do Brasil, e teve seu imóvel arrematado, pela empresa Vibrapar. Essa empresa alienou o bem à Prime. Por essa razão, o contrato de locação e os posteriores aditamentos colocam tais empresas como locadoras.

Contudo, nem a carta de arrematação nem o compromisso de compra e venda posterior foram registrados no fólio real. Na matrícula, permanece, como proprietário, José Antônio Pereira da Silva.

Para piorar a situação, de forma absolutamente inovadora, em suas razões de recurso, a recorrente afirma que a empresa Prime alienou fiduciariamente o imóvel para a empresa B.S. Factoring Fomento Comercial Ltda. E diz, pasme-se, que a alienação fiduciária está devidamente registrada, o que não é verdade, bastando ler as matrículas de fls. 04/06.

De qualquer maneira, o fato é que o registro do contrato de locação e de seus aditamentos feriria, completamente, o princípio da continuidade. A aplicação do princípio da continuidade não se restringe aos casos em que há transferência de domínio. O registro de outros negócios jurídicos também exige a sua observância. Não pode haver averbação se o proprietário, que consta da matrícula, não é o mesmo do contrato. Ferido o princípio da continuidade e sequer impugnadas as demais exigências, o registro do contrato de locação não é mesmo possível.

Nesses termos, pelo meu voto, prejudicada a dúvida, não conheço do recurso.

HAMILTON ELLIOT AKEL

CORREGEDOR GERAL DA JUSTIÇA E RELATOR

Embargos de declaração n° 0075967-91.2013.8.26.0100

Apelante: Auto Posto Vitrine Ltda.

Apelado: 12° Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo

DECLARAÇÃO DE VOTO CONVERGENTE

VOTO N. 27.511

  1. Auto Posto Vitrine Ltda. interpôs apelação contra a sentença que deu por procedente a dúvida suscitada pelo 12° Ofício de Registro de Imóveis de São Paulo, o qual, por sua vez, negara registro stricto sensu a contrato de locação.

Segundo o termo de dúvida e a sentença, esse registro stricto sensu, se deferido, implicaria violação ao princípio da continuidade (LRP/1973, art. 195), uma vez que o locador não seria o proprietário do imóvel.

  1. Respeitável é o entendimento do eminente Desembargador Relator ao dar por prejudicada a dúvida. Isto porque, a apelante de fato só impugnara algumas das exigências feitas pelo ofício de registro de imóveis.

No entanto, diverge-se quanto à apresentação de solução que, em tese, deveria dar-se ao caso, na hipótese de conhecimento do recurso.

Em primeiro lugar, este Conselho só há de conhecer do mérito, se antes não conhecer de preliminar que com ele seja incompatível (CPC/1973, art. 560, caput). Disso se conclui que, se houver (como in casu houve) preliminar que impeça o exame do mérito, sobre ele não cabe pronunciamento. Há de ser entregue a prestação jurisdicional, e não mais que isso. Como diz Pontes de Miranda (Comentários ao Código de Processo Civil, Rio de Janeiro: Forense, 1975, tomo VIII, p. 266):

Se a decisão na preliminar processual ou na questão prejudicial elimina o julgamento do mérito, claro que não mais se prossegue; julgado está o feito; a decisão, por si só, é terminativa.

Em segundo lugar, é entendimento consolidado que o Poder Judiciário – mesmo no exercício de função administrativa, como seja a corregedoria dos serviços extrajudiciais – não é órgão consultivo, e que as consultas só muito excepcionalmente se devem admitir, em hipóteses de extrema relevância:

Ora, por tudo isso se evidencia a completa carência de interesse e legitimação para o reclamo assim tão singularmente agitado, por quem, não dispondo, ainda, da titularidade do domínio (condomínio), não poderia alegar lesão ou ameaça de lesão, por parte da administração, a um direito seu, que sequer existe. O pedido, na verdade, traduziria inconcebível e descabida consulta dirigida ao Judiciário, ainda que na sua função atípica de agente administrativo, sobre interpretação e aplicação, em tese, das leis e regulamentos. Nesse sentido, é da melhor doutrina que a “reclamação administrativa é a oposição expressa a atos da Administração, que afetem direitos ou interesses legítimos dos administrados. O direito de reclamar é amplo, e se estende a toda pessoa física ou jurídica que se sentir lesada ou ameaçada de lesão pessoal ou patrimonial por atos ou fatos administrativos” (Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 3ª ed., Revista dos Tribunais, p. 617 e Caio Tácito, Direito Administrativo, 1975, Saraiva, p. 29), pressupostos esses que, absolutamente ausentes na hipótese, inviabilizam, por completo, a postulação inicial. (Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo, Proc. 53/1982, parecer do juiz José Roberto Bedran, 22.7.1982, g. n.)

A E. Corregedoria Geral da Justiça, em regra, e conforme pacífica orientação, não conhece de consultas, cujo exame, portanto, excepcional, fica condicionado à peculiaridade do assunto, sua relevância e o interesse de âmbito geral da matéria questionada. (Corregedoria Geral da Justiça, Proc. CG 10.715/2012, Des. José Renato Nalini, j. 18.12.2013).

Como é sabido, não cabe a este Juízo responder a consultas formuladas pelo interessado, pois a sua função primordial é solucionar conflitos e não figurar como consultor jurídico. Além disso, como bem observou a Douta Promotora: “Conforme já decidiu a E. Corregedoria Geral da Justiça, em parecer exarado pelo então Juiz Auxiliar da Corregedoria, Dr. Hélio Lobo Júnior, no procedimento n° 27.435/88 (02/89):”…é inconcebível e descabida consulta dirigida ao Judiciário, ainda que na sua função atípica de agente administrativo, sobre interpretação e aplicação, em tese, das leis e regulamentos (cf. ementa 10.2, das Decisões Administrativas da Corregedoria Geral da Justiça – Ed. RT, 1981/1982, p. 24). Neste mesmo sentido, manifestou-se o Dr. Aroldo Mendes Viotti, D. Juiz Auxiliar da Corregedoria, em parecer proferido nos autos do procedimento n° 113/90 (567/90), onde consta: “O comando emergente do dispositivo da r. sentença não pode – por isso – prevalecer, porquanto não é dado ao Juízo Corregedor Permanente emitir declaração positiva ou negativa de registro de título no Ofício Predial sem regular instauração de procedimento de dúvida, e sem que, consoante o devido procedimento de lei, se materialize o dissenso entre particular e registrador acerca daquele ato de registro. A atuação do Juízo da dúvida dirige-se tão-somente à revisão da atividade do registrador, devolvendo-se-lhe a tarefa de qualificação a este cabente em primeiro momento: não pode o Juízo administrativo, porém, substituir-se ao Oficial nessa primeira atividade, isto é, apreciar a registrabilidade de título sem que o responsável pelo Cartório Predial, em momento anterior, o faça. Por incômodo ou intrincado que se revele o ônus de qualificação dos títulos, dele deverá se desincumbir o Serventuário, nada justificando busque transferi-lo a terceiros. Também se presume detenha o titular da Serventia Imobiliária capacitação técnica não apenas para operacionalizar os comandos legais que disciplinam a questão da preferência a registro de títulos constitutivos de direitos reais reciprocamente contraditórios, como, igualmente, para conhecer os efeitos jurídicos que possam advir das medidas previstas nos arts. 867 e ss. (Seção X, Livro III) do CPC. Por isso, não cabia ao Juízo Corregedor fornecer resposta à consulta do Serventuário. Também não lhe era dado determinar registro de títulos à margem do procedimento legal, e sem que o registrador se houvesse previamente desincumbido de seu ônus de emitir juízo conclusivo a respeito de sua registrabilidade”. (Primeira Vara de Registros Públicos de São Paulo, autos 1023331-97.2014.8.26.0100, Juíza Tânia Mara Ahualli, j. 16.05.2014)

  1. Ante o exposto, não conheço do recurso de apelação.

ARTUR MARQUES DA SILVA FILHO

Presidente da Seção de Direito Privado

Fonte: DJE/SP | 03/12/2014.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

Para acompanhar as notícias do Portal do RI, siga-nos no twitter, curta a nossa página no facebook, assine nosso boletim eletrônico (newsletter), diário e gratuito, ou cadastre-se em nosso site.


MG: Acesse já a íntegra da edição de novembro/dezembro da Revista Recivil

A edição do mês de Novembro/Dezembro/2014 da Revista Recivil já foi distribuída aos registradores civis mineiros. Acesse já a íntegra da publicação.

Veja os principais destaques: 

– Matéria de capa: Cartórios de registro civil começam a utilizar o selo eletrônico

Oito serventias de registro civil estão participando da segunda etapa do projeto piloto. 

– Entrevista especial: Roberto Dias Andrade

O registrador de imóveis de Viçosa e presidente da Serjus/Anoreg-MG foi eleito para o cargo de deputado estadual. A revista do Recivil conversou com ele sobre as propostas feitas durante a campanha, os principais desafios que terá e de que forma irá representar toda a classe extrajudicial mineira. 

– Institucional: Lei da compensação da gratuidade completa 10 anos em dezembro

Lei 15.424, aprovada em dezembro de 2004, já permitiu a compensação de mais de cinco milhões de atos gratuitos na última década. 

– Institucional: Recivil realiza Assembleia Geral Ordinária

Exercício financeiro de 2013 foi aprovado em assembleia. 

– Jurídico: Tabeliães de Notas devem se cadastrar na Central Nacional de Indisponibilidade de Bens

A partir do dia 13 de novembro, os notários deverão incluir em seus atos o código gerado pela Central.

Clique aqui e veja a publicação na íntegra. 

Fonte: Recivil | 05/01/2015.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

Para acompanhar as notícias do Portal do RI, siga-nos no twitter, curta a nossa página no facebook, assine nosso boletim eletrônico (newsletter), diário e gratuito, ou cadastre-se em nosso site.


TJ/DF: Civil – Processual Civil – Sucessão – Registro e cumprimento de testamento – Jurisdição voluntária – Testamento conjuntivo – Vedação

Órgão : 1ª TURMA CÍVEL
Apelante(s):
Apelado(s):
APELAÇÃO
20110610113130APC (0011120-70.2011.8.07.0006)
MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS
 
MARIA FERNANDA FERNANDES HENRIQUES
 
Desembargador ALFEU MACHADO
Relator
 
Desembargadora MARIA IVATÔNIA
Revisora
 
Acórdão N.823214
E M E N T A
 
Poder Judiciário da UniãoTribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios
 
Civil – Processual Civil – Sucessão – Registro e cumprimento de testamento – Jurisdição voluntária – Testamento conjuntivo – Vedação legal – Código Civil de 1916 – Vedação repetida no Código Civil de 2012 – Excepcionalidade da situação fática – Testadores estrangeiros (Portugueses) – Equivoco do tabelião – Excesso de formalismo – Aplicação do juízo de equidade – Possibilidade – Art. 1.109 do CPC – Legalidade estrita – Mitigação – Recurso conhecido e improvido.
 
1. No caso dos autos, não há dúvidas de que o casal falecido, estrangeiros (portugueses) que residiam no Brasil, criaram a requerente, também portuguesa, como a filha que não tiveram. Também não resta nenhuma dúvida de que a intenção deles foi a de deixar o único bem que amealharam em vida para a filha de criação. Não há outros filhos, nem parentes conhecidos do casal falecido. 
 
2. Incasu, não se pode desprezar, em razão do equivoco perpetrado pelo Tabelião – que lavrou as últimas  vontades dos testadores em um único documento -, a intenção ali assentada, vez que os falecidos manifestaram inequívoco interesse em deixar seus bens (presentes e futuros), em favor da requerente/apelada, sua filha de criação.
 
3. O argumento de que o testamento que aparelha os autos é conjuntivo, o que ensejaria, nos termos do art. 1.630 do CC/1916 (dispositivo repetido no art. 1.863 do CC/2002), sua nulidade; encerra excessivo apego ao formalismo, tendo em vista que, em razão da moldura fática apresentada nos autos, os bens deixados pelo casal falecido, em razão da ausência de ascendentes, descendentes e da inexistência de notícia de colaterais, serão entregues à Fazenda Pública.
 
4. Precedente: “[…] NÃO SE DEVE ALIMENTAR A SUPERSTIÇÃO DO FORMALISMO OBSOLETO, QUE PREJUDICA MAIS DO QUE AJUDA. EMBORA AS FORMAS TESTAMENTARIAS OPEREM COMO JUS COGENS, ENTRETANTO A LEI DA FORMA ESTA  SUJEITA A INTERPRETAÇÃO E CONSTRUÇÃO APROPRIADAS AS CIRCUNSTÂNCIAS. RECURSO CONHECIDO, MAS DESPROVIDO. (REsp 1422/RS, Rel. Ministro GUEIROS LEITE, TERCEIRA TURMA, julgado em 02/10/1990, DJ 04/03/1991, p. 1983)”
 
5. Ail. Magistrada de primeiro grau converteu o feito em Registro e Cumprimento de Testamento, conforme decisão interlocutória, portanto, de jurisdição voluntária.
 
6. Em sendo assim, o juiz não está obrigado a decidir com base na legalidade estrita (art. 1.109, CPC), facultando-lhe, portanto, o juízo por equidade, ou seja, poderá adotar, no caso concreto, a solução que reputar mais conveniente ou oportuna. A doutrina entende que tal dispositivo reconhece a presença de certa discricionariedade do juiz.
 
7. Recurso conhecido e improvido. Sentença mantida.
 
Acórdão
 
Acordam os Senhores Desembargadores  da 1ª TURMA CÍVEL do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, ALFEU MACHADO – Relator, MARIA IVATÔNIA – Revisora, TEÓFILO CAETANO – 1º Vogal, sob a presidência da Senhora Desembargadora SIMONE LUCINDO,  em proferir a seguinte decisão:
 
Conhecer e Negar Provimento, Unânime, de acordo com a ata do julgamento e notas taquigráficas.
Brasilia(DF), 1 de Outubro de 2014.
 
Documento Assinado Eletronicamente
ALFEU MACHADO
 
Relatório
 
Adoto, em parte, o relatório da r. sentença de fls. 106/110, que ora transcrevo:

“[…] Vistos, etc.    
 
Trata-se de pedido de registro e cumprimento do testamento público deixado por Luiz Canelhas e Prazeres dos Santos, falecidos em 16 de dezembro de 1986 e 05 de novembro de 1998, respectivamente, formulado por Maria Fernanda Fernandes Henriques.
 
Consta às fls. 17/18 a disposição de última vontade dos falecidos, na qual informam que não possuem filhos e que deixam os seus bens para a autora.
 
Às fls. 86/87 o Ministério Público afirmou que o testamento acostado às fls. 17/18 é conjuntivo, o que era vedado pelo artigo 1630 do Código Civil de 1916, em disposição que foi, inclusive, repetida no artigo 1863 da atual codificação cível.

Em manifestação de fls. 88-92, a requerente alegou não se tratar de testamento conjuntivo, visto que restou documentado que os testadores teriam “falado cada um por sua vez”.
 
Ademais, aduziu a existência de prescrição do prazo para arguir eventual nulidade.
 
Parecer do Ministério Público às fls. 101-102v.  […]
Acrescento que a il. Magistrada de primeiro grau, com base no art. 1.125 e s.s. do CPC, determinou que se registre, arquive e cumpra o presente testamento (fls. 17/18), obedecendo a vontade dos testadores.
 
O órgão ministerial, nos termos do art. 499, § 2º, do CPC, apresentou recurso de apelação, no qual requer a reforma da r. sentença de primeiro grau, para que seja reconhecida a nulidade do testamento público encartado nos autos.
 
Sustenta, em apertada síntese, que o Código Civil de 1916 (assim como o atual) veda o testamento conjuntivo, ou seja, aquele feito por duas ou mais pessoas, por intermédio de um mesmo documento, em proveito próprio ou de terceiro.

Assim, entende que não há que se falar na aplicação da conversão do negócio jurídico no presente caso (art. 170 do Código Civil), quando há vedação expressa no ordenamento jurídico para o testamento conjuntivo.
 
Recurso isento de preparo.
 
A apelada, em contrarrazões (fls. 118/125), rechaçou a tese recursal, pugnando pela manutenção do r. julgado.
 
A d. Procuradoria de Justiça oficiou pelo conhecimento e improvimento do recurso manejado pelo Parquet.
 
É o relatório.
 
À douta revisão.
 
Cuida-se de apelação interposta em face da r. sentença que ratificou as declarações de vontades expressas no testamento encartado nos autos, conforme anteriormente relatado.

Em suas razões recursais, o Parquet sustenta, em apertada síntese, que o Código Civil de 1916 (assim como o atual) veda o testamento conjuntivo, ou seja, aquele feito por duas ou mais pessoas, por intermédio de um mesmo documento, em proveito próprio ou de terceiro.
 
Assim, entende que não há que se falar na aplicação da conversão do negócio jurídico no presente caso (art. 170 do Código Civil), quando há vedação expressa no ordenamento jurídico para o testamento conjuntivo.
 
Sem preliminares ou prejudiciais, ingresso no mérito recursal.
Compulsando os autos, verifico que a il. Magistrada de primeiro grau resolveu a questão, nos seguintes termos:
 
V O T O S
 
O Senhor Desembargador ALFEU MACHADO – Relator
Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso.
 
“[…] Trata-se de pedido de registro e cumprimento do testamento público deixado por Luiz Canelhas e Prazeres dos Santos, falecidos, respectivamente, em 16 de dezembro de 1986 e 05 de novembro de 1998.
 
Em manifestação de fls. 86/87 o Ministério Público requer o reconhecimento da invalidade do testamento, sob o fundamento de o ordenamento jurídico brasileiro não permitir a elaboração de disposições testamentárias conjuntivas.
 
Buscando refutar as alegações do órgão ministerial, a autora argumenta que já decorreu o prazo para o pleito de invalidade do testamento. Contudo, no que concerne à contagem do prazo para questionar a última manifestação de vontade, ressalto que o assunto não era regulado pela legislação anterior, passando a se aplicar a disposição do art. 1859 do atual Código Civil, o qual estabelece que “Extingue-se em cinco anos o direito de impugnar a validade do testamento, contado o prazo da data do seu registro”.
 
Todavia, não há que se interpretar o registro descrito na norma legal como sendo aquele realizado perante o tabelião no cartório onde foi lavrado o testamento. Ao contrário, aquele termo refere-se ao procedimento ora pleiteado. Caso assim não o fosse, o diploma legislativo estaria abrindo a possibilidade de se discutir a herança da pessoa ainda em vida, o que não é permitido, visto que o testador pode alterar o documento quantas vezes se fizer necessário até a sua morte.
 
No mesmo sentido, o eminente Desembargador Sérgio Izidoro Heil do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em voto proferido na Apelação Cível nº 2005.033368-1 (AC 333681/SC), elucidou o tema, ao destacar o entendimento doutrinário nos seguintes termos:
 
“Ocorre que a norma do art. 1.859, do Diploma Legal deve ser interpretada com ressalvas, uma vez que a impugnação do testamento apenas pode ser efetivada após a morte do testador, com o seu efetivo registro. Somente após a abertura da sucessão e da apresentação do testamento ao Juiz, com o atendimento das disposições dos arts. 1.128 e 1.133 do CPC, é que deve correr o prazo quinquenal.
 
Sobre a matéria, lecionam Silvio de Salvo Venosa e Débora Gozzo:
 
‘Como a eficácia do testamento somente pode ocorrer após a morte do testador, é somente após a sua morte que pode ser questionada a higidez do negócio, sua validade e seus efeitos’ (Comentários ao  Código Civil Brasileiro, v. XVI: do direito das sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 274).
 
No mesmo sentido, comenta Zeno Veloso:
 
‘Não se pode questionar a validade do testamento em vida do testador. O testamento é negócio jurídico mortis causa, e somente com a abertura da sucessão é que a alegação da sua invalidade terá pertinência e poderá ser apresentada (…). A contagem do quinquênio dá-se com a apresentação do testamento ao juiz, e cumpridos os requisitos legais (CPC, arts. 1.126, 1.128, 1.133 e 1.134)’ (Comentários ao Código Civil: parte especial: direito das sucessões , vol. 21. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 21/22).
 
Por fim, anota Sebastião Luiz Amorim:
 
‘Há de se observar que a validade do testamento não pode ser questionada em vida do testador, pois que se trata ela de negócio jurídico cujos efeitos se produzem após a morte. Com a abertura da sucessão é que pode o testamento sofrer contestação’ (Código Civil Comentado: direito das sucessões, sucessão testamentária, artigos 1.857 a 1.990, vol. XIX. São Paulo: Atlas, 2004, p. 42)” (Apelação Cível nº 2005.033368-1, Terceira Câmara de Direito Civil, Relator: Sérgio Izidoro Heil, Julgado em: 18/11/2005).
 
Assim, não há que se falar em prescrição.
 
Em relação ao pedido do Ministério Público, verifico que o art. 1.863 do Código Civil/2002 dispõe ser proibido o testamento conjuntivo, seja simultâneo, recíproco ou correspectivo.
 
Esclarecendo o conceito de testamento conjuntivo simultâneo, Carlos Roberto Gonçalves ressalta que:
 
“É simultâneo quando os testadores dispõem em benefício de terceiros, num só ato (uno contextu)”.
 
(Gonçalves, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 7: direito das sucessões. 6ª Ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2012, pág. 253).
 
Apesar da disposição taxativa do mencionado dispositivo legal, o caso em questão possui peculiaridades que exigem um maior aprofundamento.
 
Os testadores eram casados e não tiveram filhos. O cônjuge varão faleceu em 16 de dezembro de 1986 enquanto que sua esposa veio a óbito em 05 de novembro de 1998. No período de 12 (doze) anos transcorrido entre as datas dos falecimentos não houve pedido de cumprimento de testamento ou pleito questionando a sua validade.
 
Hoje, não há ascendentes, descendentes, e sequer notícias de quaisquer colaterais que seriam beneficiados com a declaração de invalidade do testamento, de forma que se houver o reconhecimento da sua nulidade, os bens deixados pelo casal serão entregues à Fazenda Estadual.
 
Investigando os fundamentos da proibição legal do testamento conjuntivo, encontram-se o não reconhecimento dos pactos sucessórios, o respeito à privacidade e a impossibilidade deste vir a ser revogado unilateralmente, impedindo o interessado de modificá-lo quando lhe conviesse. Quanto ao assunto, assim esclarecem Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery:

“A proibição, que já constava no CC/1916 1630, repousa no fato de o ato de testar ser personalíssimo e revogável.
 
Segundo os doutrinadores que defendem a proibição do testamento de mão comum, a presença de mais de um testador, celebrando o mesmo ato, revestiria o negócio com o caráter da irrevogabilidade” (Nery Junior, Nelson; Andrade Nery, Rosa Maria de. Código civil comentado. 8ª Ed. rev., ampl. e atual. até 12.07.2011. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. Pág. 1863).
 
Já Mauro Antonini afirma que:
 
“A razão da proibição decorre, em primeiro lugar, do entendimento de que, ao testar conjuntamente, no mesmo testamento, os testadores estariam violando o preceito que veda contrato sobre herança de pessoa viva (art. 426), pois a reciprocidade dele resultante, o objetivo pretendido pela disposição comum, poderia acarretar interesse, que repugna à moral e ao direito, na morte do cotestador. Em segundo lugar, o testamento conjuntivo tornaria iníqua a revogabilidade que é característica essencial do testamento (art. 1.858), pois, tendo duas pessoas testado conjuntamente, por algum tipo de vínculo, a revogação das disposições testamentárias por uma delas acarretaria frustração desse liame que é vedado nas disposições de última vontade.” (Antonini, Mauro. Código civil comentado: doutrina e jurisprudência. Coordenador Cezar Peluso. 7ª Ed. rev. e atual. Barueri/SP: Manole, 2013. Pág. 2247)

Desta forma, destacados os fundamentos que ensejam a proibição do testamento conjuntivo, retorno à analise dos fatos.

Assim, desde já reitero que, apesar de terem transcorridos cerca de 12 (doze) anos entre a data dos falecimentos, a então viúva não demonstrou interesse em modificar a sua disposição de última vontade. Tal conduta comprova que Prazeres dos Santos não se submeteu ao arbítrio do seu cônjuge Luiz Canelhas, preservando o caráter personalíssimo daquela escritura.

Ademais, ressalto que a falecida seria a única herdeira do seu marido. Destarte, tem-se no caso concreto que somente quem poderia ser prejudicada pelas disposições testamentárias seria Prazeres dos Santos. Esclarecendo, destaco que, caso o testamento não existisse, esta receberia a integralidade do monte-mor deixado por aquele. E então, detendo a totalidade do patrimônio, poderia dispor como bem lhe conviesse.

Todavia, entre os anos de 1986 e 1998 a falecida optou por manter as disposições de fls. 17/18. Ou seja, não suscitou qualquer prejuízo em decorrência de eventual diminuição da sua legítima. Portanto, nada lhe impediu de revogar aquele ato.

Ao contrário, conservou a sua última vontade em deixar os seus bens para Maria Fernanda Fernandes Henriques. Neste sentido, relembro que o objetivo do testamento é permitir à parte dispor do seu patrimônio da forma que desejar, expressão da autonomia da vontade. No caso em apreço, não há dúvidas quanto à pretensão do casal, e sobretudo da última falecida.

Quanto aos demais fundamentos a proibir o testamento conjuntivo, ressalto que não há que se falar em pacto sucessório no presente caso. Isso porque este se caracteriza como um negócio jurídico bilateral em que ocorre a concordância do herdeiro/legatário. Assim, tal situação somente acontece nas disposições em que os participantes emitissem vontades em proveito recíproco. Entretanto, destaco que no presente caso a beneficiária Maria Fernanda não teve qualquer participação quando da realização da escritura de fls. 17/18, afastando-se qualquer possibilidade de pacto sucessório.
 
Finalmente, observo que naquela escritura consta que cada qual falou à sua vez, respeitando-se a exigência de que seja expressa a vontade pessoalmente manifestada pela parte.
 
Demonstrado nos autos que os fundamentos que vedam o testamento conjuntivo não subsistem na presente demanda, saliento os esclarecimentos de Carlos Roberto Gonçalvesacerca da solenidade exigida pela legislação:
 
“A excessiva formalidade do testamento visa assegurar a sua autenticidade e a liberdade do testador, bem como chamar a atenção do autor para a seriedade do ato que está praticando.

Tem a jurisprudência, todavia, amenizado a rigidez formal quando a vontade do testador se mostra bem patenteada no instrumento. Nessa linha decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
 
‘Testamento. Descumprimento de formalidade. Circunstância que deve ser acentuada ou minorada de molde a assegurar a vontade do testador e proteger o direito de seus herdeiros,sobretudo os filhos”. (Gonçalves, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 7:direito das sucessões. 6ª Ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2012.Pág. 231).
 
No voto vencedor proferido no julgado indicado por aquele autor, o Eminente Ministro Relator Cesar Asfor Rocha salientou que:
 
“Não ponho nenhuma dúvida quanto à compreensão de que o testamento é um ato solene que deve submeter-se a numerosas formalidades que não podem ser descuradas ou postergadas, sob pena de nulidade. Mas todas essas formalidades não podem ser consagradas de modo exacerbado, pois a sua exigibilidade deve ser acentuada ou minorada em razão da preservação dos dois valores a que elasse destinam – razão mesma de ser do testamento -, na seguinte ordem de importância: a primeira, para assegurar a vontade do testador, que já não mais poderá, após o seu falecimento, por óbvio, confirmar a sua vontade ou corrigir distorções, nem explicitar o seu querer que possa ter sido expresso de forma obscura ou confusa; a segunda, para proteger o direito dos herdeiros, sobretudo dos seus filhos.
 
Assim ocorre, por exemplo, dentre muitos outros, se a vontade do autor do testamento não for claramente manifestada; se ela apresentar-se contraditória; se for de encontro à ordem natural das coisas abstraídas dos fatos da vida; se excluir da herança algum filho; se incluir algum herdeiro testamentário que possa despertar, por certas razões, surpresa ou espanto; se estabelecer cotas hereditárias desproporcionais entre os filhos,ainda que protegida a legítima; se estabelecer cláusulas injustificáveis a afetar a legítima, visivelmente prejudiciais a alguns herdeiros, etc.
 
Por outro lado, como disse, e creio que todos aqui acordamos nesse ponto, “não se deve levar o formalismo dos testamentos ao extremo, não se justificando interpretação apenas literal. O formalismo se põe como forma de dar maior segurança à declaração de vontade, cuja eficácia se realiza após a morte do declarante”, segundo lição de Marco Aurélio S. Viana (“Curso de Direito Civil”, v. 6, Belo Horizonte: Del Rey, 1993, pac. 7, nº7, pp. 97-98).
 
(…)
 
Por fim, reproduzo mais uma vez e fazendo minhas asseguintes preciosas colocações postas no voto vencedor doeminente Juiz Ronald Schulman:
 
‘E agora, proferindo meu voto, iluminado inclusive pelo principio da lógica razoável, estou convicto de que a vontade do testador, jamais impugnada nestes autos, deve prevalecer apesar do vício ocorrido no ato solene em que ela foi manifestada. Pois se a presença da testemunha era exigida justamente para a segurança da verdade e coerência das declarações do testador, e estas são reconhecidas por todos,penso, com a devida vênia dos votos em contrário, que deva prevalecer o testamento, pois o seu sacrifício importaria na violação de um bem maior, que é o da liberdade do indivíduo dispor em última vontade de seu patrimônio.’ (fls. 569/570)”(STJ. Resp 302.767/PR, Rel. Ministro Cesar Asfor Rocha.Julgado em 05.06.2001, Publicado em 24/09/2001).
 
Ora, no que tange ao formalismo legal, não se deve esquecer que é permitida a realização de testamentos no mesmo local e data, desde que em atos separados, conforme esclarece Zeno Veloso:

“Mas nada impede que duas pessoas, em atos separados,ainda que na mesma data, perante o mesmo tabelião, façam testamentos dispondo em favor de um terceiro, ou, mesmo, em proveito recíproco. Por sinal, isso ocorre com certa freqüência,quando os testadores são marido e mulher”.(Veloso, Zeno. Código civil comentado. Coordenadora Regina Beatriz Tavares da Silva. 7ª Ed. rev. e atual. São Paulo:Saraiva, 2010. Pág. 1892).
 
Portanto, analisando-se os fundamentos que destacam serdes necessário se apegar ao excessivo formalismo legal tem-seque o intuito primordial do instituto ora destacado é preservar que as disposições de última vontade dos falecidos sejam respeitadas, sem a interferência de terceiros.

No mesmo sentido, ao analisar decisão do STJ que afastou a alegação de nulidade de um testamento que não havia sido lavrado pelo Tabelião, mas apenas realizado sob sua supervisão, assim se manifestou Flávio Tartuce:

“O julgado é louvável, pois a tendência contemporânea é que o material prevaleça sobre o formal; que o concreto prevaleça sobre as ficções jurídicas. Tal constatação tem relação direta com o princípio da operabilidade, adotado pela codificação de2002, que busca um Direito Privado real e efetivo (a concretude realena)”.(Tartuce, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 2ª ed.rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo:Método. Pág. 1314).
 
Todavia, isso não significa dizer que seja permitida uma total -ausência de forma. Ao contrário, cabe ao interessado proceder conforme o estipulado no regramento cível. E para tanto, Luiz Canelhas e Prazeres dos Santos, um casal de portugueses,diligenciou junto ao 2º Ofício de Notas, Registro Civil e Protesto de Títulos de Sobradinho/DF, munidos das cinco testemunhas exigidas em lei para disporem do patrimônio em conformidade com os termos legais. Neste sentido, compareceram perante o Tabelião, profissional que recebeu delegação do Estado para o exercício da atividade notarial, e falaram cada um por sua vez.
 
Nesta função, cabe àquele, profissional de direito dotado de fé pública, como dever do seu ofício, instruir, esclarecer e orientar o testador, sem se envolver no teor do conteúdo declarado.
 
Quanto ao assunto, leciona Walter Ceneviva que:

“A atividade registrária, embora exercida em caráter privado,tem característicos típicos de serviço público.
 
(…)
A delegação envolve, do ângulo do delegante, forma de representação do poder estatal, pois credencia o delegado do Poder Público, e não de um ou mais órgãos específicos do Estado. O delegante é o Estado.
 
(…)
Embora não sejam próprias do direito do consumidor, as relações entre o delegado e sua clientela são examinadas do ponto de vista do predominante interesse desta.

Compreendem, na adequada realização dos serviços:
(…)
 
b) dever de atender, informar e certificar o que for de direito, no prazo e na forma da lei”.(Ceneviva, Walter. Lei dos registros públicos comentada. 18ªEd. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. Págs. 6-9).
 
Fundamentando o acima exposto, a Constituição Federal, no seu artigo 236, estipula que:
 
Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.

Porém, no caso concreto o delegatário estatal não diligenciou para que o documento fosse realizado em instrumentos separados, o que estaria em consonância com o dispositivo legal. Assim, saliento que apesar da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro destacar que ninguém pode se escusar de cumprir a lei alegando que a desconhece, tenho que tal norma deve ser apreciada conforme cada situação.

Para tanto, não há que se exigir de um casal de portugueses que saibam todas as minúcias da legislação sucessória brasileira. Estes foram zelosos em cumprir a determinação codificada quando compareceram perante o tabelião munido das suas testemunhas.
 
Assim, não há dúvidas de que a presunção de que todos saibam da lei visa garantir a sua obrigatoriedade. Todavia, em casos concretos é possível detectar que não cabe punir o ser humano que agiu de forma diligente, conforme se espera daquele que almeja cumprir a legislação. Por tais motivos, e considerando que no presente caso já restou esclarecido que não subsistem os fundamentos que justificam a proibição do testamento conjuntivo, o qual é estipulado em uma norma cogente, afasto a proibição da denominada “conversão formal”e entendo pela possibilidade de se aplicar o artigo 170 do Código Civil, que assim estabelece:
 
Art. 170. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade.
 
Sobre a referida norma, ressalta Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, que esta:
 
“Tão somente autoriza-se o aproveitamento (pelo juiz) da vontade emitida para a celebração de um negócio, que é nulo,para que produza efeitos em outra espécie negocial, dês que a finalidade perseguida esteja respeitada.”(Chaves de Farias, Cristiano; Rosenvald, Nelson. Curso de direito civil: volume 1: parte geral e lindb. 10ª ed. rev., ampl. E atual. Salvador: Editora Juspodivm, Pág. 617.).
 
Desta forma, ressalto que a referida norma, que trata da denominada “conversão substancial do negócio jurídico”, pode ser aplicada ao presente caso. Assim, deve-se proteger o cerne do elemento volitivo dos testadores, visto ser possível o aproveitamento do ato por eles praticado, no qual é possível detectar a vontade externada e a existência dos requisitos mínimos de validade do testamento, cumprindo-se a exigência de serem atendidos os requisitos objetivos e subjetivos necessários para a adoção do instituto previsto no artigo 170.
 
Ademais, reitero que foi o delegatário estatal que não teve o cuidado de proceder conforme necessário. Diante de tal situação, a aplicação do artigo 1630 do Código Civil de 1916 impediria que Maria Fernandes fosse a beneficiária da vontade externada pelos falecidos. E neste caso, não havendo herdeiros do casal, o patrimônio que deixaram seria transmitido para o Distrito Federal. Ou seja, em virtude da falta de diligência por parte do Estado, por intermédio do Tabelião, este próprio seria beneficiado.
 
Portanto, a presente demanda deve ser analisada sob a ótica de um dos princípios basilares do direito, que é o de que ninguém pode se beneficiar do próprio erro.
 
Neste sentido, punir os testadores por uma falha do Estado é uma afronta ao princípio da confiança, corolário da tão almejada boa-fé nas relações jurídicas, a qual é um preceito de ordem pública fundamentada na probidade e na confiança.

Ademais, seria ignorar o desejo daqueles em privilégio de quem não cumpriu com o seu dever de aplicar o regramento legal estabelecido.
 
Assim, tenho que devidamente esclarecida a intenção dos testadores, não havendo dúvidas de que teriam procedido de outra forma não fosse o desconhecimento do real procedimento, visto que acreditavam estar atuando conforme o preceito normativo, e considerando que faltou ao Tabelião proceder com o dever de informar acerca da elaboração do testamento, tenho que resta caracterizado erro estatal, razão pela qual este não pode ser beneficiado quanto à sua conduta.
 
Esquivar-se de tal conclusão seria prejudicar quem agiu de boa-fé, equivocando-se de maneira perfeitamente desculpável em face do erro na atuação do Estado. Aliás, a Justiça deve estar acima do mero formalismo. Desta forma, tendo em vista que ninguém pode se beneficiar do próprio erro (Estado), e demonstrado que não subsistem no presente caso os fundamentos a proibir o aproveitamento do testamento conjuntivo, determino a conversão substancial do negócio jurídico para que seja preservada a vontade dos falecidos constante na Escritura Pública de Testamento apresentada nos autos, não figurando nenhum impedimento que vede o cumprimento dos termos ali dispostos.
 
Em face do exposto, com base no art. 1.125 e ss., do Código de Processo Civil, determino ao Cartório que registre, arquive e cumpra o presente testamento, obedecendo à vontade dos testadores.
 
Transcorrido o prazo para interposição do recurso, providencie a Secretaria do Juízo o termo de registro do testamento em livro próprio.
 
Condeno a requerente em custas processuais. Contudo, a exigibilidade ficará suspensa, nos termos da Lei 1.060/50. Sem honorários advocatícios. […]
 
Do acima exposto, mostra-se irreprochável a r. sentença de primeiro,não havendo qualquer irregularidade a suprir ou vício a sanar, razão pela qual integro-a nas minhas razões de decidir. Isso porque, in casu, não se pode desprezar, em razão do equivoco perpetrado pelo Tabelião – que lavrou as últimas  vontades dos testadores em um único documento -, a intenção ali assentada, vez que os falecidos manifestaram inequívoco interesse em deixar seus bens (presentes e futuros), em favor da requerente/apelada, sua filha de criação.
 
Assim, o argumento de que o testamento que aparelha os autos (fls.17/18) é conjuntivo, o que ensejaria, nos termos do art. 1.630 do CC/1916(dispositivo repetido no art. 1.863 do CC/2002), sua nulidade; encerra excessivo apego ao formalismo, tendo em vista que, em razão da moldura fática apresentada nos autos, os bens deixados pelo casal falecido, em razão da ausência de ascendentes, descendentes e da inexistência de notícia de colaterais, serão entregues à Fazenda Pública.
 
Nesse sentido, corroborando o entendimento acima delineado, é o parecer do d. Procurador de Justiça. Confira-se:

“[…] No mérito, todavia, pede a Procuradoria de Justiça a mais respeitosa vênia para divergir dos fundamentos esposados pelo órgão ministerial recorrente.
 
Em resumo, o órgão recorrente pede a anulação de um testamento particular levado a registro em cartório público denota no ano de 1984. o argumento é o de que referido testamento foi conjuntivo, isto é, foi realizado conjuntamente pelo casal que criava a requerente como filha de criação, o que já era vedado pelo Código Civil de {sic}1917 e também é vedado pelo atual Código Civil, ex vi do disposto no seu art.1.863.
 
Consoante se verifica, todavia, pelo exame detalhado dos autos, o que pretende o órgão apelante é a declaração de nulidade do testamento por mero apego ao formalismo,pois não há nenhuma dúvida de que o casal falecido,estrangeiros (portugueses) que residiam no Brasil, realmente criou a requerente, também portuguesa, como a filha que não tiveram.
 
Nem há dúvida de que a intenção deles foi a de deixar o único bem que amealharam em vida para a filha de criação.

Não há outros filhos, nem parentes conhecidos do casal falecido. Mas o órgão do MP recorrente entende que a requerente, para herdar o imóvel em causa, deve ajuizar previamente ação de reconhecimento de paternidade e maternidade sócio-afetiva post mortem, providencia, entretanto,que é custosa, morosa e absolutamente injustificada em face da prova dos autos.
 
[…]“(grifo nosso)
 
Caminhando pela mesma vereda, em situações semelhantes, o Col.STJ já dispôs:
 
TESTAMENTO PARTICULAR. REQUISITO DO ART. 1645, II, DO CÓDIGO CIVIL. NÃO HAVENDO DUVIDA QUANTO A AUTENTICIDADE DO DOCUMENTO DE ÚLTIMA VONTADE E CONHECIDA, INDUVIDOSAMENTE, NO PRÓPRIO, A VONTADE DO TESTADOR, DEVE PREVALECER O TESTAMENTO PARTICULAR, QUE AS TESTEMUNHAS OUVIRAM  LER E ASSINARAM UMA A UMA, NA PRESENÇA DO TESTADOR, MESMO SEM QUE TIVESSEM ELAS REUNIDAS, TODAS, SIMULTANEAMENTE, PARA AQUELE FIM.
 
NÃO SE DEVE ALIMENTAR A SUPERSTIÇÃO DO FORMALISMO OBSOLETO, QUE PREJUDICA MAIS DO QUE AJUDA. EMBORA AS FORMAS TESTAMENTARIAS OPEREM COMO JUS COGENS, ENTRETANTO A LEI DA FORMA ESTA  SUJEITA A INTERPRETAÇÃO E CONSTRUÇÃO APROPRIADAS AS CIRCUNSTÂNCIAS. RECURSO CONHECIDO, MAS DESPROVIDO. (REsp1422/RS, Rel. Ministro GUEIROS LEITE, TERCEIRA TURMA,julgado em 02/10/1990, DJ 04/03/1991, p. 1983)(grifo nosso)

Ademais, importante destacar, que a il. Magistrada de primeiro grau converteu o feito em Registro e Cumprimento de Testamento, conforme decisão interlocutória de fl. 105, portanto, de jurisdição voluntária.
 
Em sendo assim, o juiz não está obrigado a decidir com base na legalidade estrita (art. 1.109, CPC), facultando-lhe, portanto, o juízo por equidade, ou seja, poderá adotar, no caso concreto, a solução que reputar mais conveniente ou oportuna. A doutrina entende que tal dispositivo reconhece a presença de certa discricionariedade do juiz.
 
Nesse sentido, inclusive, Daniel Assumpção1 defende que o juiz poderá decidir até mesmo contrariamente à lei, desde que tenha em vista o bem comum e observe o princípio da proporcionalidade. Confira-se:
 
“[…] Para os defensores da teoria da jurisdição voluntária como uma atividade administrativa exercida pelo juiz, a previsão ora analisada afasta o princípio da legalidade, permitindo que o juiz resolva inclusive contra a letra da lei, desde que entenda ser sua decisão mais oportuna e conveniente. […]
Com razão a primeira e majoritária corrente doutrinária, ao menos em sua premissa. O dispositivo legal ora analisado é suficientemente claro ao afastar o juízo de legalidade estrita,dando ao juiz discricionariedade para resolver a demandada forma mais oportuna e conveniente, ainda que contrariamente à lei, sempre observando o que será melhor para as partes e para o bem comum. […]“ (grifo nosso)

1 NEVES, Daniel Amorim Assumpção, Manual de Direito Processual Civil, 4ª ed. rev., atual. e ampl., Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 212.
 
Assim, diante da excepcionalidade que permeia o caso, reputo hígida a r. sentença de primeiro grau, não merecendo qualquer reforma, conforme alhures já dito.
 
Isso posto, NEGO PROVIMENTO ao recurso manejado, mantendo incólume a r. sentença guerreada.
 
É como voto.
 
A Senhora Desembargadora MARIA IVATÔNIA – Revisora
Com o relator
 
O Senhor Desembargador TEÓFILO CAETANO – Vogal
Com o relator.
 
Decisão:
 
CONHECER E NEGAR PROVIMENTO, UNÂNIME

Fonte: Notariado – DOU | 05/01/2014.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

Para acompanhar as notícias do Portal do RI, siga-nos no twitter, curta a nossa página no facebook, assine nosso boletim eletrônico (newsletter), diário e gratuito, ou cadastre-se em nosso site.