Artigo: O notário e o testamento vital – Por Frank Wendel Chossani

*Frank Wendel Chossani
Não é segredo para ninguém que a personalidade civil da pessoa natural começa do nascimento com vida, como a rigor preceitua o Código Civil – art. 2º, embora os direitos do nascituro sejam tutelados desde a concepção.

Por outro lado, o encerramento da personalidade civil é corolário da morte, sendo esta o fim da existência de todo homem.

O tema “morte”, embora tão natural e corriqueiro, nunca foi de diálogo simplista e cômodo, e isso, talvez, em razão do medo do desconhecido, nutrido por alguns, ou ainda pela semente de sobrevivência arraigada em todo ser humano.

Mas se todos hão de morrer, pode-se escolher o momento e a maneira pela qual isso ocorrerá?

É garantido ao ser humano o direito a antecipar a sua morte para evitar sofrimento e agonia, diante de situações determinadas?

O assunto ganhou maior relevância no final do ano passado, quando foi noticiado que uma jovem americana de 29 anos, diagnosticada com um devastador câncer no cérebro, anunciou que daria fim à sua vida em 1º de novembro de 2014.

Tal prática só foi possível, após a jovem e sua família se mudarem da Califórnia para o Estado do Oregon, um dos cinco Estados americanos onde o suicídio com assistência de médicos é permitido, como noticiado pela BBC-Brasil[1].

No Brasil é possível tal prática?

Deixando de lado as complexas discussões filosóficas, médicas, morais e religiosas que envolvem a matéria, o direito brasileiro proíbe a antecipação da morte de uma pessoa, pela ministração de substâncias e assistência médica, o que é chamado de “eutanásia”.

Um dos pilares pelo qual se proíbe a prática é a premissa de que o direito a vida e a integridade física são inerentes a dignidade e a personalidade de todo ser humano, e por assim ser, são indisponíveis. Tanto é assim, que o diploma privado, prevê que “salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes” (art. 13), admitindo-se a disposição para fins de transplante, se observado o estabelecido em lei especial.

Tema bastante interessante, e que não é demais mencionar, diz respeito a chamada conduta de “wanna be”, que é aquela onde a pessoa, de forma deliberada, amputa parte do próprio corpo que não lhe agrada, o que não é permitido no ordenamento jurídico pátrio.

Em sua obra “Manual de Direito Civil”, o nobre professor Flávio Tartuce, faz referência ao “wanna be”, e para isso afirma que

Como se sabe o transexualismo é reconhecido por entidades médicas como sendo uma patologia ou doença, pois a pessoa tem “um desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e ao autoextermínio” (Resolução 1.955/2010 do Conselho Federal de Medicina). O transexual constitui uma forma de “wanna be”, pois a pessoa quer ser do outro sexo, havendo choques psíquicos graves atormentando-a. A Resolução do CFM não considera ilícita a realização de cirurgias que visam à adequação do sexo, geralmente do masculino para o feminino, autorizando a sua realização em nosso País (grifei)[2].
Mas tal conduta acima referida não se confunde com o testamento vital.

Em que pese a proibição da eutanásia no Brasil, é possível a lavratura de um instrumento onde a pessoa manifeste de forma antecipada sua vontade acerca dos cuidados e procedimentos a serem adotados no caso de eventual tratamento médico, se em tal ocasião o paciente não estiver revestido de sua capacidade – é o chamado “testamento vital”, ou ainda, “diretivas antecipadas de vontade”.

Roxana Cardoso Brasileiro Borges, Doutora em Direito Civil pela PUC/SP, ensina que o testamento vital, é também chamado de testamento em vida, “living will”, “testament de vie”, e que:

O testamento vital é um documento em que a pessoa determina, de forma escrita, que tipo de tratamento ou não tratamento que deseja para a ocasião em que se encontrar doente, em estado incurável ou terminal, e incapaz de manifestar sua vontade. Visa-se, com o testamento vital, a influir sobre os médicos no sentido de uma determinada forma de tratamento ou, simplesmente, no sentido do não tratamento, como uma vontade do paciente que pode vir a estar impedido de manifestar sua vontade em razão da doença.[3]
Sobre o assunto, o site do Colégio Notarial do Brasil – Seção São Paulo (CNB-SP)[4] dispõe que o testamento vital
…é um instrumento que permite ao paciente, antecipadamente, expressar sua vontade quanto às diretrizes de um tratamento médico futuro, caso fique impossibilitado de manifestar sua vontade em virtude de acidente ou doença grave.
Assim, como bem disposto no site do CNB-SP,
…por esse documento é possível determinar que a pessoa não deseja submeter-se a tratamento para prolongamento da vida de modo artificial, às custas de sofrimento, ou ainda, deixar claro que recusa-se a receber transfusão de sangue em caso de acidente ou cirurgia. 
Canal interessante sobre discussões em torno do tema, e que merece menção, é o sitewww.testamentovital.com.br, desenvolvido com o objetivo disponibilizar informações, fomentar discussão acerca da temática, disponibilizar publicação de trabalhos realizados, coleta de dados e divulgação para leigos, estudantes e profissionais do direito e da saúde.

Ao que parece, a nomenclatura “testamento vital”, embora usual, não é a mais técnica, pois o ato não se trata de testamento, mas sim de escritura pública de declaração, já que vigora antes da morte daquele que manifestou sua vontade, perdendo o seu objeto se a morte ocorrer.
Atualmente a legislação pátria não possui tratamento específico sobre o tema.

O Conselho Federal de Medicina, através da Resolução nº 1.995 de 09 de agosto de 2012, define

…diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade (art. 1º).
E prevê ainda que
...nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade (art. 2º).
Diante da ausência legal sobre o tema, aliado ao fato de que a validade da declaração de vontade não depende de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir (art. 107 – Código Civil), tem sido comum a manifestação sobre diretivas antecipadas de vontade, através de documento particular com reconhecimento de firma.

Apesar da utilização do documento particular em algumas situações, a melhor solução e sugestão é no sentido de que o documento seja elaborado por um Tabelião de Notas, tendo em vista que o tabelião, nos termos da lei, é profissional de direito, dotado de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial (art. 3º – Lei 8.935 de 18 de novembro de 1994), e por assim ser, tem como pressuposto a prestação do serviço de maneira eficiente e adequada.

A Lei 8.935 de 18 de novembro de 1994, chamada de “Lei dos notários e dos registradores”, ao tratar da das atribuições e competências dos notários, prevê que compete aos notários “formalizar juridicamente a vontade das partes” (art. 6º inciso I), bem como “intervir nos atos e negócios jurídicos a que as partes devam ou queiram dar forma legal ou autenticidade, autorizando a redação ou redigindo os instrumentos adequados, conservando os originais e expedindo cópias fidedignas de seu conteúdo” (art. 6º inciso II), e por assim ser, é inequívoco a competência e o preparo do notário para lavrar o ato.

Oportuno sempre lembrar a brilhante redação constante dos itens 1 e 1.1 do Capítulo XIV das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo (Provimento nº 58/89):
1. O Tabelião de Notas, profissional do direito dotado de fé pública, exercerá a atividade notarial que lhe foi delegada com a finalidade de garantir a eficácia da lei, a segurança jurídica e a prevenção de litígios.
1.1 Na atividade dirigida à consecução do ato notarial, atua na condição de assessor jurídico das partes, orientado pelos princípios e regras de direito, pela prudência e pelo acautelamento.

Pelo exposto resta clara a ideia de que o notário prestará toda a assessoria de que a parte necessita para que sua vontade seja perfeitamente manifesta.

As diretivas antecipadas de vontade, em que pese desconhecida por alguns, são muito utilizadas por determinados segmentos da sociedade, como é o caso, por exemplo, dos chamados “Testemunhas de Jeová”, que por convicções religiosas, baseadas, sobretudo no Pentateuco, evitam procedimentos que envolva a utilização de sangue de terceiros.

Também tem sido comum, na lavratura de escritura pública de união estável, além da declaração base de convivência, disposição acerca de providências médicas em caso de incapacidade superveniente de um(a) dos(as) companheiros(as), de modo que em caso de enfermidade, o(a) companheiro(a) são (sã) pode deliberar, prioritariamente aos demais familiares, sobre as providências médico-hospitalares oportunas[5].

Atualmente é possível a consulta livre sobre a existência das escrituras de Diretivas Antecipadas de Vontade (testamento vital), através da Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados – CENSEC – administrada pelo Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal – CNB-CF – com a finalidade de gerenciar banco de dados com informações sobre existência de testamentos, procurações e escrituras públicas de qualquer natureza, inclusive separações, divórcios e inventários lavradas em todos os cartórios do Brasil.

Segundo o jornal o Estadão, entre 2009 e 2014, o número de documentos do tipo (testamento vital) lavrados em cartório cresceu 2.000%, conforme levantamento efetuado pelo CNB-SP[6], e a tendência é que o numero cresça ainda mais, à medida que a sociedade descubra as benesses da escritura.

Importante mencionar que as diretivas antecipadas de vontade podem ser revogadas ou alteradas em qualquer oportunidade, sendo que o único requisito é que a parte demonstre aptidão mental para o ato. “A vontade criadora é a vontade que extingue”.

Como ninguém esta imune a doenças que reduzem ou aniquilam a capacidade de manifestação de vontade, como, por exemplo, a Alzheimer, ou outras advindas até mesmo da condição de senilidade, e o consequentemente tratamento médico, é aconselhado, de forma contumaz, a todos aqueles que não desejam se submeter a tratamento que prolongue artificialmente a vida, a exemplo da transfusão de sangue, a realização da escritura tratando das diretivas antecipadas de vontade (testamento vital), para que tais decisões não fiquem ao livre arbítrio de terceiros, para tanto disponha sempre de um Tabelião de Notas.

[1]Jovem americana com câncer terminal decide morrer em 1º de novembro. Disponível em:http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/10/141013_jovem_morte_anunciada_mv. Acesso em: 18 fev. 2015.
[2] Manual de direito civil: volume único / Flávio Tartuce. 4. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014.p.98.
[3] Eutanásia, ortotanásia e distanásia – você sabe o que são? Disponível em: http://www.radiocriciuma.com.br/portal/vernoticia.php?id=16487. Acesso em: 18 fev. 2015.
[4] Testamento. http://www.cnbsp.org.br/AtosNotariais.aspx?AtoID=16. Disponível em: http://www.radiocriciuma.com.br/portal/vernoticia.php?id=16487. Acesso em: 18 fev. 2015.
[5] Nesse sentido: RCPN. Reconhecimento de filiação socioafetiva. Registro Civil das Pessoas Naturais – Reconhecimento da filiação socioafetiva perante o Registro Civil das Pessoas Naturais – Possibilidade – Recurso não provido. CGJSP – PROCESSO: 88.189/2014 CGJSP – PROCESSO LOCALIDADE: São Paulo. DATA JULGAMENTO: 23/10/2014 DATA DJ: 07/11/2014. Relator: Elliot Akel.
[6] Procura por testamentos vitais cresce 2.000% no País. Disponível em:http://saude.estadao.com.br/noticias/geral,procura-por-testamentos-vitais-cresce-2000-no-pais,1624408. Acesso em: 18 fev. 2015.
Fonte: Notariado – Artigo – Frank Wendel Chossani | 19/02/2015.

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Artigo: Aplicação da súmula 377 do STF aos inventários extrajudiciais? – Por Letícia Franco Maculan Assumpção

* Letícia Franco Maculan Assumpção
APLICAÇÃO DA SÚMULA 377 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL AOS INVENTÁRIOS EXTRAJUDICIAIS?
O questionamento cuja análise é objeto do presente artigo deriva da diversidade de tratamento dado ao regime da separação obrigatória de bens pelo Código Civil e pela Jurisprudência, consubstanciada na Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal – STF, que estabelece[1]: “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.”

A Súmula 377 do STF não é uma Súmula Vinculante, que, na definição constante do Glossário Jurídico constante da página eletrônica do próprio STF é[2]:

Efeito Vinculante – Descrição do Verbete: Efeito vinculante é aquele pelo qual a decisão tomada pelo tribunal em determinado processo passa a valer para os demais que discutam questão idêntica. No STF, a decisão tomada em Ação Direta de Inconstitucionalidade, Ação Declaratória de Constitucionalidade ou na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental possui efeito vinculante, ou seja, deve ser aplicada a todos os casos sobre o mesmo tema. As Súmulas Vinculantes aprovadas pela Corte também conferem à decisão o efeito vinculante, devendo a Administração Pública atuar conforme o enunciado da súmula, bem como os juízes e desembargadores do país. Os demais processos de competência do STF (habeas corpus, mandado de segurança, recurso extraordinário e outros) não possuem efeito vinculante, assim a decisão tomada nesses processo só tem validade entre as partes. Entretanto, o STF pode conferir esse efeito convertendo o entendimento em Súmula Vinculante. Outro caminho é o envio de mensagem ao Senado Federal, a fim de informar o resultado do julgamento para que ele retire do ordenamento jurídico a norma tida como inconstitucional.

Apesar de não se tratar de Súmula Vinculante, a Súmula nº 377 do STF é parâmetro para todo o Judiciário e orienta a regulamentação existente nos Códigos de Normas do Extrajudicial dos Estados da Federação.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de ser aplicável a Súmula 377 do STF, mesmo após a vigência do Código Civil de 2002, de modo que, no caso de o casamento ter sido celebrado sob o regime da separação obrigatória de bens, é devida a partilha igualitária do patrimônio adquirido onerosamente na constância do casamento, com base no princípio da solidariedade e a fim de evitar a ocorrência de enriquecimento ilícito de um consorte em detrimento de outro.

Nesse sentido o Acórdão do STJ cuja ementa abaixo se reproduz (no original não há grifos ou negritos):

Processo REsp 1171820 / PR – RECURSO ESPECIAL
2009/0241311-6 – Relator(a) Ministro SIDNEI BENETI (1137) – Relator(a) p/ Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI (1118) – Órgão JulgadorT3 – TERCEIRA TURMA – Data do Julgamento 07/12/2010 – Data da Publicação/Fonte DJe 27/04/2011 – LEXSTJ vol. 262 p. 149

Ementa
DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. ALIMENTOS. UNIÃO ESTÁVEL ENTRE SEXAGENÁRIOS. REGIME DE BENS APLICÁVEL. DISTINÇÃO ENTRE FRUTOS E PRODUTO.
1. Se o TJ/PR fixou os alimentos levando em consideração o binômio necessidades da alimentanda e possibilidades do alimentante, suas conclusões são infensas ao reexame do STJ nesta sede recursal.
2. O regime de bens aplicável na união estável é o da comunhão parcial, pelo qual há comunicabilidade ou meação dos bens adquiridos a título oneroso na constância da união, prescindindo-se, para tanto, da prova de que a aquisição decorreu do esforço comum de ambos os companheiros.
3. A comunicabilidade dos bens adquiridos na constância da união estável é regra e, como tal, deve prevalecer sobre as exceções, as quais merecem interpretação restritiva, devendo ser consideradas as peculiaridades de cada caso.
4. A restrição aos atos praticados por pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos representa ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana.
5. Embora tenha prevalecido no âmbito do STJ o entendimento de que o regime aplicável na união estável entre sexagenários é o da separação obrigatória de bens, segue esse regime temperado pela Súmula 377 do STF, com a comunicação dos bens adquiridos onerosamente na constância da união, sendo presumido o esforço comum, o que equivale à aplicação do regime da comunhão parcial.
6. É salutar a distinção entre a incomunicabilidade do produto dos bens adquiridos anteriormente ao início da união, contida no § 1º do art. 5º da Lei n.º 9.278, de 1996, e a comunicabilidade dos frutos dos bens comuns ou dos particulares de cada cônjuge percebidos na constância do casamento ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão, conforme previsão do art. 1.660, V, do CC/02, correspondente ao art. 271, V, do CC/16, aplicável na espécie.
7. Se o acórdão recorrido categoriza como frutos dos bens particulares do ex-companheiro aqueles adquiridos ao longo da união estável, e não como produto de bens eventualmente adquiridos anteriormente ao início da união, opera-se a comunicação desses frutos para fins de partilha.
8. Recurso especial de G. T. N. não provido.
9. Recurso especial de M. DE L. P. S. provido.

Com a possibilidade de que os inventários sejam lavrados por meio de escritura pública, de forma extrajudicial, conforme previsão expressa da Lei nº 11.441/2007, regulamentada pela Resolução nº 35 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, a questão se tornou mais complexa, posto que o Tabelião, ao contrário do Juiz, não tem poder para determinar que seja afastada a lei para que seja aplicada a Jurisprudência do STF, ainda que sumulada.

A Secretaria do Estado da Fazenda de Minas Gerais – SEF/MG não vem aplicando a Súmula 377 do STF nos inventários extrajudiciais em que o falecido era casado sob o regime da separação obrigatória de bens, de modo que, se há atribuição de meação ao viúvo ou viúva, a SEF/MG vem tributando tal valor como se fosse uma doação dos herdeiros.

Já nos inventários judiciais, tendo em vista a sentença proferida nos autos respectivos, a Súmula 377 do STF vem sendo acolhida, de forma que a SEF/MG tem reconhecido a meação do cônjuge sobrevivente.

Neste artigo questiona-se a possibilidade de a Corregedoria-
Geral de Justiça, por meio de norma conjunta com a SEF/MG, reconhecer a possibilidade de aplicação da Súmula 377 do STF também no meio extrajudicial, para afastar tratamentos diversos em situações idênticas e evitar que haja opção pela via judicial unicamente para garantir a meação do viúvo ou viúva que havia se casado sob o regime da separação obrigatória de bens.

O REGIME DA SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS

Sílvio Rodrigues muito bem definiu o instituto jurídico denominado regime de bens: “Regime de bens é o estatuto que regula os interesses patrimoniais dos cônjuges durante o matrimônio.” (2008, p. 135).

Nos termos do art. 1641, do Código Civil de 2002, por razões de ordem pública, visando proteger o nubente ou terceiro, o legislador impôs a separação obrigatória de bens.

Determina o referido art. 1641:

Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:
I – das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;
II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos;
III – de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.

A doutrina assim explica o regime da separação obrigatória de bens:

Trata-se de um regime imposto por lei, que reduz a autonomia privada dos nubentes. Desse modo, nos seus casos, se eleito por pacto antenupcial o regime da comunhão universal, da comunhão parcial ou da participação final dos aquestos, tal pacto será nulo por infração à norma de ordem pública […] (SIMÃO e TARTUCE, 2008, p. 154)

Logo, as pessoas inseridas nas situações previstas no art. 1641 do Código Civil terão que suportar os efeitos da imposição legal do regime, já que o legislador excepcionou a regra da livre manifestação de vontade dos consortes, estabelecendo a separação compulsória de bens.

A questão sucessória é a que interessa neste artigo. No regime da separação obrigatória de bens, a inexistência de meação decorre da literal determinação do art. 1.641, no sentido de que “é obrigatório o regime da separação de bens”.

Ocorre que a jurisprudência[3], representada inclusive por julgados recentes do Superior Tribunal de Justiça – STJ, é no sentido de ser aplicável a Súmula 377 do STF, mesmo após a vigência do Código Civil de 2002, de modo que é devida a partilha igualitária do patrimônio adquirido onerosamente na constância do casamento, com base no princípio da solidariedade e a fim de evitar a ocorrência de enriquecimento ilícito de um consorte em detrimento de outro.

Cabe esclarecer que a dúvida no que tange à Súmula 377 refere-se unicamente à meação, pois a herança é objeto de regulamentação no art. 1.829 do Código Civil, que estabelece:

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III – ao cônjuge sobrevivente;
IV – aos colaterais.

Logo, no regime da separação obrigatória de bens, o cônjuge, havendo descendentes, não é herdeiro. Se concorrer com os ascendentes, é herdeiro; na hipótese de não existirem descendentes ou ascendentes, é o único herdeiro.

Mas como se soluciona o problema da meação na separação obrigatória de bens? Se o inventário tiver curso pelo meio judicial, certamente será aplicada a Súmula 377 do STF, de forma que a SEF/MG calculará o ITCD considerando a meação e deixando de fazer incidir o ITCD sobre tal parcela do patrimônio. No entanto, se o inventário se realizar por escritura pública, a SEF/MG não aplicará a Súmula 377 do STF e tributará eventual meação do viúvo ou viúva como se estivesse ocorrendo uma doação dos herdeiros em favor do cônjuge sobrevivente.

Não é possível que situações idênticas recebam tratamentos distintos unicamente em razão de o inventário correr pela via judicial ou ser resolvido pela via extrajudicial. Assim, defende-se que a Corregedoria-Geral de Justiça, por meio de norma conjunta com a SEF/MG, reconheça a possibilidade de aplicação da Súmula 377 do STF também no meio extrajudicial.

Tal interpretação normativa é possível e tem sido feita em casos semelhantes pela Administração Pública. A Procuradoria da Fazenda Nacional, por exemplo, tem uma lista contendo temas que, por estarem pacificados no STF ou no STJ, ou em ambos (quando se tratar de matéria de natureza “mista”), não devem mais ser objeto de recurso especial e/ou extraordinário[4]. Também a Procuradoria do Estado de Minas Gerais tem resoluções que dispensam recursos, como a Resolução AGE nº 311/2012, que dispensa a interposição de recursos nas ações relativas a cobrança de honorários de  advogado nomeado para defender a parte beneficiária de assistência judiciária[5].

No caso de ter havido casamento sob o regime da separação obrigatória de bens, enquanto não houver tal norma conjunta da CGJ/MG e da SEF/MG, os caminhos que se apresentam para garantir a meação e a não tributação do ITCD sobre a referida parcela que cabe ao cônjuge sobrevivente são os seguintes: 1) em ação declaratória ou em mandado de segurança, solicitar provimento jurisdicional no sentido de que é aplicável a Súmula 377 do STF e de que há meação, com pedido de antecipação de tutela ou liminar, determinando à SEF/MG que observe tais parâmetros no cálculo do ITCD e autorizando o Tabelião a lavrar a escritura considerando a referida Súmula; 2) realizar o inventário judicial.

As duas alternativas acima mencionadas, no entanto, estão na contramão de tudo o que tem sido proposto pela Administração Pública e pelo próprio Poder Judiciário, posto que, na ausência de lide, a tendência tem sido a desjudicialização.

CONCLUSÃO

Conclui-se que é imprescindível a regulamentação conjunta pela CGJ/MG e pela SEF/MG da aplicabilidade da Súmula 377 do STF também para os inventários extrajudiciais, a fim de evitar procedimentos divergentes e injustos para as partes e para evitar o congestionamento do Poder Judiciário com ações totalmente desnecessárias.

BIBLIOGRAFIA

ESTADO DE MINAS GERAIS. Resolução AGE nº 311/2012. Disponível em: < http://www.age.mg.gov.br/images/stories/downloads/resolucoes/resolucao-311atexto-consolidado.pdf>. Acesso em: 11 fev. 2015.

RODRIGUES, Silvio. Direito civil, volume 6: direito de família. 28 ed.; São Paulo: Saraiva, 2004.

SIMÃO, José Fernando; TARTUCE, Flávio. Direito Civil 5: Direito de Família. 3 ed.; São Paulo: Método, 2008.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – STJ. Processo REsp 1171820 / PR – RECURSO ESPECIAL 2009/0241311-6 – Relator(a) Ministro SIDNEI BENETI – Relatora para Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI – Órgão Julgador TERCEIRA TURMA – Data do Julgamento 07/12/2010 – Data da Publicação/Fonte DJe 27/04/2011 – LEXSTJ vol. 262 p. 149.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – STF. Súmula nº 377 – 03/04/1964 – DJ de 8/5/1964, p. 1237; DJ de 11/5/1964, p. 1253; DJ de 12/5/1964, p. 1277.

UNIÃO FEDERAL. http://www.pgfn.fazenda.gov.br/legislacao-e-normas/listas-de-dispensa-de-contestar-e-recorrer>  e também em <http://www.pgfn.fazenda.gov.br/legislacao-e-normas/atos-declaratorios-arquivos/atos-declaratorios-da-pgfn>. Acesso em: 05 nov. 2014.

* Letícia Franco Maculan Assumpção é graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1991), pós-graduada e mestre em Direito Público. Foi Procuradora do Município de Belo Horizonte e Procuradora da Fazenda Nacional. Aprovada em concurso, desde 1º de agosto de 2007 é Oficial do Cartório do Registro Civil e Notas do Distrito de Barreiro, em Belo Horizonte, MG. É autora de diversos artigos na área de Direito Tributário, Direito Administrativo, Direito Civil e Direito Notarial, publicados em revistas jurídicas, e do livro Função Notarial e de Registro.

[1] STF Súmula nº 377 – 03/04/1964 – DJ de 8/5/1964, p. 1237; DJ de 11/5/1964, p. 1253; DJ de 12/5/1964, p. 1277. Regime de Separação Legal de Bens – Comunicação – Constância do Casamento: No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento
[2] Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/glossario/verVerbete.asp?letra=E&id=461>. Acesso em: 4 nov. 2014.
[3] A título de exemplo, reconhecendo a aplicação da Súmula 377 do STF, são relacionados os seguintes julgados: TJ-RS – Agravo de Instrumento AI 70056385123 RS (TJ-RS); TJ-RS – Agravo de Instrumento AI 70055544324 RS (TJ-RS); TJ-RS – Agravo de Instrumento AI 70046191128 RS (TJ-RS); TJ-RS – Apelação Cível AC 70055655450 RS (TJ-RS); TJ-MG – Agravo de Instrumento Cv AI 10713110024690001 MG (TJ-MG); TJ-MG – Apelação Cível AC 10024097527519001 MG (TJ-MG); TJ-MG – Agravo de Instrumento Cv AI 10024030893796007 MG (TJ-MG); TJ-RS – Apelação Cível AC 70056955396 RS (TJ-RS); TJ-RS – Apelação Cível AC 70043412626 RS (TJ-RS); TJ-RS – Apelação Cível AC 70056305162 RS (TJ-RS).
[4] Disponível em: <http://www.pgfn.fazenda.gov.br/legislacao-e-normas/listas-de-dispensa-de-contestar-e-recorrer>  e também em <http://www.pgfn.fazenda.gov.br/legislacao-e-normas/atos-declaratorios-arquivos/atos-declaratorios-da-pgfn>. Acesso em: 05 nov. 2014.
[5] Disponível em: <http://www.age.mg.gov.br/images/stories/downloads/resolucoes/resolucao-311atexto-consolidado.pdf>. Acesso em: 11 fev. 2015.
Fonte: Notariado – Artigo – Letícia Franco Maculan Assumpção | 19/02/2015.

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DJ/CNJ: RECURSO EM PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. CONCURSO PÚBLICO PARA OUTORGA DE DELEGAÇÕES DE SERVENTIAS EXTRAJUDICIAIS. EXAME PSICOTÉCNICO. RESOLUÇÃO CNJ 81. LEGALIDADE. NÃO PROVIMENTO DO RECURSO.

Autos: PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO – 0004296-07.2014.2.00.0000

Requerente: FERNANDO PUPO MENDES

Requerido: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO – TJES

EMENTA:

RECURSO EM PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. CONCURSO PÚBLICO PARA OUTORGA DE DELEGAÇÕES DE SERVENTIAS EXTRAJUDICIAIS. EXAME PSICOTÉCNICO. RESOLUÇÃO CNJ 81. LEGALIDADE. NÃO PROVIMENTO DO RECURSO.

1. Procedimento de controle administrativo contra a exigência de exame psicotécnico em concurso público para outorga de delegações de serventias extrajudiciais.

2. A Resolução CNJ 81/2009 prevê a submissão dos candidatos a exames de personalidade, compreendidos o psicotécnico e o neuropsiquiátrico, bem como à entrevista pessoal.

3. “A exigência de realização da investigação social ou do exame psicotécnico não encerra qualquer vício de ilegalidade, porquanto conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal, os atos normativos do Conselho Nacional de Justiça são dotados de vontade normativa primária, pois retiram seu fundamento de validade do próprio texto Constitucional” (CNJ – PP 0001159-56.2010.2.00.0000).

4. Recurso parcialmente conhecido e, nesta parte, improvido.

ACÓRDÃO

O Conselho, por unanimidade, conheceu parcialmente do recurso e na parte conhecida, negou provimento, nos termos do voto do Relator. Declarou suspeição a Conselheira Ana Maria. Ausentes, justificadamente, os Conselheiros Ricardo Lewandowski e Emmanoel Campelo. Presidiu o julgamento a Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 1º de dezembro de 2014. Presentes à sessão a Excelentíssima Senhora Vice-Presidente do Supremo Tribunal Federal Ministra Cármen Lúcia e os Conselheiros Nancy Andrighi, Maria Cristina Peduzzi, Ana Maria Duarte Amarante Brito, Guilherme Calmon, Flavio Sirangelo, Deborah Ciocci, Saulo Casali Bahia, Rubens Curado Silveira, Luiza Cristina Frischeisen, Gilberto Martins, Paulo Teixeira, Gisela Gondin Ramos e Fabiano Silveira.

Autos: PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO – 0004296-07.2014.2.00.0000

Requerente: FERNANDO PUPO MENDES

Requerido: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO – TJES

RELATÓRIO

O EXMO. SR. CONSELHEIRO SAULO CASALI BAHIA (RELATOR): Trata-se de recurso administrativo interposto por FERNANDO PUPO MENDES contra a decisão de arquivamento proferida em procedimento de controle administrativo (PCA), no qual se insurge contra a exigência de exame psicotécnico pelo TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO ESPIRITO SANTO, no concurso público para outorga de delegações de serventias extrajudiciais de notas e de registro do Estado (Edital 1 -TJ/ES).

Ao analisar a pretensão do requerente, julguei improcedente o pedido por não vislumbrar violação ao princípio da legalidade.

No recurso, o requerente renova os argumentos da inicial, pugna pela concessão de efeito suspensivo ao recurso e afirma que, além de inconstitucional, o edital do concurso não fixou elementos objetivos para o referido exame (Id 1484416).

Diante da ausência de fatos novos capazes de infirmar a decisão impugnada, indeferi o pedido de efeito suspensivo ao recurso, nos termos do artigo 115, §4º, do RICNJ (Id 1487601).

Intimado, o TJES defende a legalidade dos atos praticados (Id 1505008).

Em novas manifestações, o recorrente aduz “erros nas informações prestadas” pela Corte requerida e requer nova intimação do TJES, para correção dos dados referentes ao seu desempenho no concurso (Ids 1505850 e 1517434).

É o relatório.

Brasília, 16 de setembro de 2014.

Saulo Casali Bahia

Conselheiro

Autos: PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO – 0004296-07.2014.2.00.0000

Requerente: FERNANDO PUPO MENDES

Requerido: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO – TJES

VOTO

O EXMO. SR. CONSELHEIRO SAULO CASALI BAHIA (RELATOR): Trata-se de recurso administrativo contra a decisão que determinou o arquivamento dos autos, nos seguintes termos (Id1484300):

Trata-se de Procedimento de Controle Administrativo proposto por FERNANDO PUPO MENDES contra o TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO (TJES), no qual é requerida a declaração de inexigibilidade do exame psicotécnico aplicado na quarta etapa do concurso público para outorga de delegações de serventias extrajudiciais de notas e de registro do Estado do Espírito Santo (Edital 1 -TJ/ES).

Aduz que não compareceu na data estabelecida pelo TJES para realização do referido exame por entender que a submissão dos candidatos a esta avaliação é inconstitucional.

Afirma que o exame psicotécnico não constitui método de avaliação em concurso de provas e títulos e, apesar da previsão constante do edital do concurso e da Resolução CNJ 81, de 9 de junho de 2009, não há determinação neste sentido na Lei 8935, de 18 de novembro de 1994 ou em lei do Estado do Espírito Santo.

Pugna, ao final, pela concessão de liminar para assegurar a continuidade de sua participação no certame. No mérito, requereu a declaração de inexigibilidade do exame psicotécnico.

O procedimento veio-me por prevenção, nos termos do artigo 44, §5º, do Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça, conforme certidão da Secretaria Processual cadastrada sob a Id 1478750.

É o relatório. Decido.

Passo ao exame do mérito, razão pela qual fica prejudicada a análise do pedido de liminar.

O objeto do presente procedimento cinge-se ao controle de legalidade da exigência do exame psicotécnico previsto na quarta etapa do concurso regido pelo Edital 1 – TJ/ES.

O requerente sustenta que, devido à ausência de previsão legal, o procedimento é inconstitucional e não pode ser aplicado aos candidatos.

O pedido não merece acolhimento ante a sua manifesta improcedência.

O Supremo Tribunal Federal assentou a possibilidade de exigir a realização de exame psicotécnico, desde que a medida seja prevista em lei em sentido material – tal como o regulamento deste Conselho – e no instrumento convocatório, além de ser necessário um grau mínimo de objetividade na avaliação. Vejamos:

MANDADO DE SEGURANÇA. CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. CONTROLE DE LEGALIDADE DE ATO PRATICADO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO DE RONDÔNIA. CONCURSO PÚBLICO. EXAME PSICOTÉCNICO. PREVISÃO EM LEI. CRITÉRIOS OBJETIVOS. ORDEM DENEGADA. I – O art. 5º, I, da Lei 12.016/2009 não configura uma condição de procedibilidade, mas tão somente uma causa impeditiva de que se utilize simultaneamente o recurso administrativo com efeito suspensivo e o mandamus. II – A questão da legalidade do exame psicotécnico nos concursos públicos reveste-se de relevância jurídica e ultrapassa os interesses subjetivos da causa. III – A exigência de exame psicotécnico, como requisito ou condição necessária ao acesso a determinados cargos públicos, somente é possível, nos termos da Constituição Federal, se houver lei em sentido material que expressamente o autorize, além de previsão no edital do certame. IV – É necessário um grau mínimo de objetividade e de publicidade dos critérios que nortearão a avaliação psicotécnica. A ausência desses requisitos torna o ato ilegítimo, por não possibilitar o acesso à tutela jurisdicional para a verificação de lesão de direito individual pelo uso desses critérios V – Segurança denegada. (MS 30822, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 05/06/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-124 DIVULG 25-06-2012 PUBLIC 26-06-2012).

No caso em comento, o TJES atendeu aos requisitos estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal para validade do exame psicotécnico.

Os itens 5.6.8 e 8.2 da minuta de edital anexa à Resolução CNJ 81/2009, expressamente preveem a submissão do candidato a exames de personalidade, compreendidos o psicotécnico e o neuropsiquiátrico, bem como à entrevista pessoal.

Além disso, o item 11.1.5 estabelece de antemão os critérios que serão considerados para avaliação psiquiátrica dos candidatos. Vejamos:

11.1.5 A avaliação psiquiátrica deve ser realizada por um especialista, com laudo (original ou cópia autenticada em cartório) sobre o comportamento, humor, coerência e relevância do pensamento, conteúdo ideativo, percepções, hiperatividade, encadeamento de ideias, orientação, memória recente, memória remota, tirocínio e uso ou não de psicofármacos.

Dessa forma, não há espaço para declaração de inexigibilidade do exame psicotécnico e os candidatos que não compareceram na data da avaliação devem suportar as consequências prevista no edital do certame.

Outro argumento suscitado pelo requerente foi o fato de que a Resolução CNJ 81/2009 não é uma lei e, em razão disso, não teria o condão de legitimar a exigência do exame psicotécnico. Nesse ponto, é imperioso registrar que a dúvida acerca da natureza jurídica dos atos normativos do CNJ foi dirimida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADC 12 – MC.

A Corte Suprema decidiu que o Conselho Nacional de Justiça é dotado de competência para expedir atos normativos cujo fundamento de validade é a Constituição Federal. Tais atos ostentam natureza primária e, dentro da esfera de competência do órgão, podem inovar no ordenamento jurídico sem a necessidade de uma lei em sentido formal para lhes dar suporte.

Dada a relevância da decisão, é salutar transcrever os seguintes trechos do voto proferido pelo Ministro Ayres Britto, relator da ADC 12 – MC:

“Agora vem a pergunta que tenho como a de maior valia para o julgamento desta ADC: o Conselho Nacional de Justiça foi aquinhoado com essa modalidade primária de competência? Mais exatamente: foi o Conselho Nacional de Justiça contemplado com o poder de expedir normas primárias sobre matéria que servem de recheio fático ao inciso II do § 4º do art. 103-B da Constituição?

[…]

Dá-se que duas outras coordenadas interpretativas parecem reforçar esta compreensão das coisas. A primeira é esta: a Constituição, por efeito da Emenda 45/04, tratou de fixar o regime jurídico de três conselhos judiciários: a) o Conselho da Justiça Federal (inciso II do parágrafo único do art. 105); b) o Conselho Superior da Justiça do Trabalho (inciso II do § 2º do art. 111-A); e c) o Conselho Nacional de Justiça (art. 103-B). Ao cuidar dos dois primeiros, ela, Constituição, falou expressamente que as respectivas competências – todas elas, enfatize-se – seriam exercidas ” na forma da lei “. Esse inequívoco fraseado ” na forma da lei ” a anteceder, portanto, o rol das competências de cada qual das duas instâncias. Ora, assim não aconteceu com o tratamento normativo dispensado ao Conselho Nacional de Justiça. Aqui, a Magna Carta inventariou as competências que houve por bem deferir ao CNJ, quedando silente quanto a um tipo de atuação necessariamente precedida de lei.

O segundo reforço argumentativo está na interpretação panorâmica ou sistemática ou imbricada que se possa fazer dos dispositivos que se integram na compostura vernacular de todo o art. 103-B da Constituição. É que tais dispositivos são tão ciosos da importância do CNJ em ambos os planos da composição e do funcionamento; tão logicamente concatenados para fazer do Conselho um órgão de planejamento estratégico do Poder Judiciário, assim no campo orçamentário como no da celeridade, transparência, segurança, democratização e aparelhamento tecnológico da função jurisdicional do Estado; tão explicitamente assumidos como estrutura normativa de contínua densificação dos estrelares princípios do art. 37 da Lei Republicana; tão claramente regrados para tornar o CNJ uma genuína instância do Poder Judiciário, e não uma instituição estranha a esse Poder elementar do Estado, enfim, que negar a esse Conselho o poder de aplicar imediatamente a Constituição-cidadã, tanto em concreto como em abstrato, seria concluir que a Emenda 45 homiziou o novo órgão numa fortaleza de paredes intransponíveis, porém fechada, afinal, com a mais larga porta de papelão. Metáfora de que muito se valia o gênio ético-libertário de Geraldo Ataliba para ensinar como não se deve interpretar o Direito, notadamente o de estirpe constitucional.” (grifos originais)

Vale registrar que o entendimento do Conselho Nacional de Justiça é no sentido de reconhecer a legalidade do exame psicotécnico quando esta avaliação está prevista na norma regulamentadora do concurso. Confira-se:

Pedido de Providências. Revisão da Resolução n. 75 do Conselho Nacional de Justiça. Concursos públicos para ingresso na carreira da magistratura. Precedentes deste Conselho. Improcedência. A avaliação sobre a compatibilidade da deficiência física com a função judicante deve ser empreendida no estágio probatório, conforme alteração procedida após a propositura deste procedimento de controle administrativo. Prejudicialidade. A exigência de realização da investigação social ou do exame psicotécnico não encerra qualquer vício de ilegalidade, porquanto conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal, os atos normativos do Conselho Nacional de Justiça são dotados de vontade normativa primária, pois retiram seu fundamento de validade do próprio texto Constitucional . […]. Pedido improcedente. (CNJ – PP – Pedido de Providências – Conselheiro – 0001159-56.2010.2.00.0000 – Rel. Milton Augusto de Brito Nobre – 102ª Sessão – j. 06/04/2010, grifei).

Como se nota, o TJES atendeu aos requisitos estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal para exigir o exame psicotécnico. A fase está prevista na norma de natureza primária – lei em sentido material – que regula os concursos para outorga das serventias extrajudiciais (Resolução CNJ 81/2009) e os parâmetros de avaliação constam do instrumento convocatório.

Ante o exposto, com fundamento no artigo 25, X, do Regimento Interno do CNJ, julgo improcedente o pedido formulado na inicial .

Não vislumbro no recurso administrativo fundamentos aptos a modificar a decisão que determinou o arquivamento do feito.

Reafirmo a compreensão acerca da legalidade formal e material da Resolução CNJ 81/2009, em especial da exigência ali contida de submissão de candidatos ao exame psicotécnico. Nesse sentido, acrescente-se o seguinte julgado deste Conselho:

“Todos os concursos públicos de ingresso e os concursos de remoção nos serviços notariais e de registro realizados até a edição da Resolução nº 81/2009 do CNJ, tiveram por base a Lei Federal Nº 8.935/94 e a Lei Estadual nº 12.919/98.

(…)

1) “Os próximos concursos públicos de ingresso e os concursos de remoção para delegação dos serviços de tabelionato a serem realizados pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais poderão ser regidos pela Lei Estadual nº 12.919, de 1998, ou deverão observar a Resolução nº 81, de 2009?”

– Todos os concursos públicos para preenchimento e remoção da atividade notarial e de registro devem ser regidos pela Resolução no. 81/2009 do Conselho Nacional de Justiça

(…)

A minuta oferecida como anexo da Resolução é taxativa em seus termos, podendo ocorrer eventuais hipóteses de necessidades especiais de adequações ou peculiaridades, que, entretanto, NÃO devem contrariar o conteúdo da Resolução no. 81/09/CNJ. ” (trecho do voto do Rel. Cons. Paulo Tamburini).

(CNJ – CONS – Consulta – 0003016-40.2010.2.00.0000 – Rel. PAULO DE TARSO TAMBURINI SOUZA – 106ª Sessão – j. 01/06/2010 – Grifei).

Quanto à alegação de ausência de elementos objetivos no edital do concurso, tampouco assiste razão ao recorrente. O item 11.1.5 do Edital 1 TJ/ ES estabeleceu de antemão que o exame psicotécnico consistiria “na aplicação e na avaliação de baterias de testes e instrumentos psicológicos científicos, que permitam identificar a personalidade do candidato”.

Além disso, a alegação do recorrente é completamente extemporânea, pois somente após o transcurso de cerca de 12 (doze) meses da data de divulgação do Edital 1 TJ/ES questiona a ausência de elementos objetivos; o exame psicotécnico foi realizado em 20/7/2014, antes da propositura do presente PCA; e a eliminação no concurso decorreu de ato espontâneo do recorrente – não comparecimento ao local e data do exame.

Por fim, no que concerne ao pedido de nova intimação do TJES para correção dos dados referentes ao seu desempenho no concurso, dele não conheço por se tratar de questão meramente individual e sem repercussão geral para todo o Poder Judiciário. Sobre o tema, destaco ainda os seguintes julgados deste Conselho:

RECURSO ADMINISTRATIVO EM PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. DIREITO INDIVIDUAL. AUSÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL. CARÊNCIA DE NOVOS ARGUMENTOS. PRECEDENTES.

1. Trata-se de recurso administrativo em sede de Procedimento de Controle Administrativo, interposto pela Associação Cearense de Magistrados – ACM, em face de decisão por mim proferida no sentido de não conhecer do pedido formulado e determinar o arquivamento dos autos ante a manifesta incompetência deste Conselho para conhecer questões que não tenham repercussão geral para o Judiciário Nacional.

2. Este Conselho vem entendendo que atos que cerceiem apenas direitos individuais e que não tenham repercussão em todo o Poder Judiciário não devam ser conhecidos.

3. Embora tempestivo, nego provimento do presente Recurso Administrativo. (CNJ – RA – Recurso Administrativo em PCA – Procedimento de Controle Administrativo – 0005084-55.2013.2.00.0000 – Rel. DEBORAH CIOCCI – 179ª Sessão – j. 12/11/2013 – Grifei).

RECURSO ADMINISTRATIVO EM PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. ANULAÇÃO DE REMOÇÃO OU DO CONCURSO NACIONAL DE REMOÇÃO A PEDIDO MEDIANTE PERMUTA – 2012 DOS SERVIDORES DA JUSTIÇA FEDERAL. PRETENSÃO INDIVIDUAL DESPROVIDA DE INTERESSE GERAL. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS NOVOS CAPAZES DE ALTERAR O ENTENDIMENTO ADOTADO NA DECISÃO COMBATIDA. RECURSO CONHECIDO E A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

I. A matéria versada nos presentes autos tem caráter eminentemente individual, sem relevância para o Poder Judiciário nacional, pelo que carece do indispensável interesse geral a justificar a intervenção do CNJ.

II. O CNJ não é instância recursal ou originária para questões administrativas de caráter individual, consoante reiterada jurisprudência da Casa.

III. Ausência, nas razões recursais, de elementos novos capazes de alterar o entendimento adotado na decisão combatida.

IV. Recurso conhecido. Desprovido. (CNJ – RA – Recurso Administrativo em PCA – Procedimento de Controle Administrativo – 0006364-61.2013.2.00.0000 – Rel. RUBENS CURADO – 181ª Sessão – j. 17/12/2013 – Grifei). Ante o exposto, conheço parcialmente do recurso, e nesta parte, nego-lhe provimento, mantendo a decisão que julgou improcedente o pedido e determinou o arquivamento do presente procedimento.

É como voto.

Intimem-se. Em seguida, arquivem-se, independentemente de nova conclusão.

Brasília, 16 de setembro de 2014.

Saulo Casali Bahia

Conselheiro

Fonte: DJ – CNJ | 18/02/2015.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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