STJ: PROTESTO DE CDA. LEI 9.492⁄1997. INTERPRETAÇÃO CONTEXTUAL COM A DINÂMICA MODERNA DAS RELAÇÕES SOCIAIS E O “II PACTO REPUBLICANO DE ESTADO POR UM SISTEMA DE JUSTIÇA MAIS ACESSÍVEL, ÁGIL E EFETIVO”. SUPERAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO STJ.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.126.515 – PR (2009⁄0042064-8)

RELATOR: MINISTRO HERMAN BENJAMIN

RECORRENTE: MUNICIPIO DE LONDRINA

PROCURADOR: JOÃO LUIZ MARTINS ESTEVES E OUTRO(S)

RECORRIDO: PROTENGE ENGENHARIA DE PROJETOS E OBRAS LTDA

ADVOGADO: JOÃO TAVARES DE LIMA FILHO E OUTRO(S) 

EMENTA

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. PROTESTO DE CDA. LEI 9.492⁄1997. INTERPRETAÇÃO CONTEXTUAL COM A DINÂMICA MODERNA DAS RELAÇÕES SOCIAIS E O "II PACTO REPUBLICANO DE ESTADO POR UM SISTEMA DE JUSTIÇA MAIS ACESSÍVEL, ÁGIL E EFETIVO". SUPERAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO STJ.

1. Trata-se de Recurso Especial que discute, à luz do art. 1º da Lei 9.492⁄1997, a possibilidade de protesto da Certidão de Dívida Ativa (CDA), título executivo extrajudicial (art. 586, VIII, do CPC) que aparelha a Execução Fiscal, regida pela Lei 6.830⁄1980.

2. Merece destaque a publicação da Lei 12.767⁄2012, que promoveu a inclusão do parágrafo único no art. 1º da Lei 9.492⁄1997, para expressamente consignar que estão incluídas "entre os títulos sujeitos a protesto as certidões de dívida ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas autarquias e fundações públicas".

3. Não bastasse isso, mostra-se imperiosa a superação da orientação jurisprudencial do STJ a respeito da questão.

4. No regime instituído pelo art. 1º da Lei 9.492⁄1997, o protesto, instituto bifronte que representa, de um lado, instrumento para constituir o devedor em mora e provar a inadimplência, e, de outro, modalidade alternativa para cobrança de dívida, foi ampliado, desvinculando-se dos títulos estritamente cambiariformes para abranger todos e quaisquer "títulos ou documentos de dívida". Ao contrário do afirmado pelo Tribunal de origem, portanto, o atual regime jurídico do protesto não é vinculado exclusivamente aos títulos cambiais.

5. Nesse sentido, tanto o STJ (RESP 750805⁄RS) como a Justiça do Trabalho possuem precedentes que autorizam o protesto, por exemplo, de decisões judiciais condenatórias, líquidas e certas, transitadas em julgado.

6. Dada a natureza bifronte do protesto, não é dado ao Poder Judiciário substituir-se à Administração para eleger, sob o enfoque da necessidade (utilidade ou conveniência), as políticas públicas para recuperação, no âmbito extrajudicial, da dívida ativa da Fazenda Pública.

7. Cabe ao Judiciário, isto sim, examinar o tema controvertido sob espectro jurídico, ou seja, quanto à sua constitucionalidade e legalidade, nada mais. A manifestação sobre essa relevante matéria, com base na valoração da necessidade e pertinência desse instrumento extrajudicial de cobrança de dívida, carece de legitimação, por romper com os princípios da independência dos poderes (art. 2º da CF⁄1988) e da imparcialidade.

8. São falaciosos os argumentos de que o ordenamento jurídico (Lei 6.830⁄1980) já instituiu mecanismo para a recuperação do crédito fiscal e de que o sujeito passivo não participou da constituição do crédito.

9. A Lei das Execuções Fiscais disciplina exclusivamente a cobrança judicial da dívida ativa, e não autoriza, por si, a insustentável conclusão de que veda, em caráter permanente, a instituição, ou utilização, de mecanismos de cobrança extrajudicial.

10. A defesa da tese de impossibilidade do protesto seria razoável apenas se versasse sobre o "Auto de Lançamento", esse sim procedimento unilateral dotado de eficácia para imputar débito ao sujeito passivo.

11. A inscrição em dívida ativa, de onde se origina a posterior extração da Certidão que poderá ser levada a protesto, decorre ou do exaurimento da instância administrativa (onde foi possível impugnar o lançamento e interpor recursos administrativos) ou de documento de confissão de dívida, apresentado pelo próprio devedor (e.g., DCTF, GIA, Termo de Confissão para adesão ao parcelamento, etc.).

12. O sujeito passivo, portanto, não pode alegar que houve "surpresa" ou "abuso de poder" na extração da CDA, uma vez que esta pressupõe sua participação na apuração do débito. Note-se, aliás, que o preenchimento e entrega da DCTF ou GIA (documentos de confissão de dívida) corresponde integralmente ao ato do emitente de cheque, nota promissória ou letra de câmbio.

13. A possibilidade do protesto da CDA não implica ofensa aos princípios do contraditório e do devido processo legal, pois subsiste, para todo e qualquer efeito, o controle jurisdicional, mediante provocação da parte interessada, em relação à higidez do título levado a protesto.

14. A Lei 9.492⁄1997 deve ser interpretada em conjunto com o contexto histórico e social. De acordo com o "II Pacto Republicano de Estado por um sistema de Justiça mais acessível, ágil e efetivo", definiu-se como meta específica para dar agilidade e efetividade à prestação jurisdicional a "revisão da legislação referente à cobrança da dívida ativa da Fazenda Pública, com vistas à racionalização dos procedimentos em âmbito judicial e administrativo".

15. Nesse sentido, o CNJ considerou que estão conformes com o princípio da legalidade normas expedidas pelas Corregedorias de Justiça dos Estados do Rio de Janeiro e de Goiás que, respectivamente, orientam seus órgãos a providenciar e admitir o protesto de CDA e de sentenças condenatórias transitadas em julgado, relacionadas às obrigações alimentares.

16. A interpretação contextualizada da Lei 9.492⁄1997 representa medida que corrobora a tendência moderna de intersecção dos regimes jurídicos próprios do Direito Público e Privado. A todo instante vem crescendo a publicização do Direito Privado (iniciada, exemplificativamente, com a limitação do direito de propriedade, outrora valor absoluto, ao cumprimento de sua função social) e, por outro lado, a privatização do Direito Público (por exemplo, com a incorporação – naturalmente adaptada às peculiaridades existentes – de conceitos e institutos jurídicos e extrajurídicos aplicados outrora apenas aos sujeitos de Direito Privado, como, e.g., a utilização de sistemas de gerenciamento e controle de eficiência na prestação de serviços).

17. Recurso Especial provido, com superação da jurisprudência do STJ.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da SEGUNDA Turma do Superior Tribunal de Justiça: "Prosseguindo-se no julgamento, após o voto-vista da Sra. Ministra Eliana Calmon, acompanhando o Sr. Ministro Herman Benjamin, a Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso, nos termos do voto do Sr. Ministro-Relator." Os Srs. Ministros Og Fernandes, Mauro Campbell Marques, Eliana Calmon (voto-vista) e Humberto Martins votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília, 03 de dezembro de 2013(data do julgamento).

MINISTRO HERMAN BENJAMIN 

Clique aqui e leia o acórdão na íntegra.

Fonte: STJ.

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Modelo alemão de mediação é tema de palestra promovida pela Enfam

Uma espécie de mediador privado de conflitos entre bancos e seus clientes com poderes para obrigar instituições financeiras a cumprir o que foi acordado e, se for o caso, até mesmo depositar o que devem na conta do reclamante. Essa figura existe na Alemanha desde 1992 e lá é chamada de ombudsman. A fim de debater a experiência alemã, o Diretor da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), Ministro João Otávio de Noronha, juntamente com o Ministro Sidnei Beneti convidaram o ex-diretor do Instituto Max Planck para Direito Privado Internacional e ex-professor titular da Universidade de Hamburgo, na Alemanha, Klaus Hopt, para proferir palestra sobre o tema “Ombudsman de Bancos e Desjudicialização”. A palestra será realizada no dia 18 de fevereiro próximo, na Sala de Conferências do STJ, das 10 às 12 horas.

O evento é voltado não apenas a magistrados, mas a profissionais que atuam em departamentos jurídicos das instituições bancárias e financeiras, agências reguladoras e demais operadores do Direito. As inscrições são gratuitas e podem ser feitas no link http://www.cjf.jus.br/cjf/eventos/palestra-ombudsman.

O termo “ombudsman” tem origem no idioma sueco, tendo na Alemanha adquirido o sentido de “mediador” ou “advogado particular”. O Ministro Beneti conta que conheceu o sistema quando visitou o “Verband der deutschen privaten Banken”, em Berlim, uma espécie de “Febraban” alemã. Essa associação de bancos privados mantém um escritório do ombudsman, encarregado da composição de conflitos extrajudiciais entre bancos e clientes. “A grande vantagem está tanto no tipo de conciliação quanto no tipo de solução de conflitos”, afirma o ministro.

De acordo com ele, o caso começa com uma reclamação do cliente feita mediante preenchimento de formulário disponível nas agências bancárias. Caso a reclamação não seja solucionada pelo departamento de atendimento aos clientes do banco, ela é enviada ao escritório central do ombudsman, em Berlim. O ministro ressalta que o tipo de conciliação feito pelo ombudsman, nesses casos, dispensa a necessidade de chamar as pessoas a um fórum, não movimenta qualquer estrutura administrativa e, principalmente, não tem qualquer ônus para o Estado.

O ombudsman, que, em geral, é um juiz aposentado de um tribunal superior ou professor universitário, redige sua decisão, “em poucas páginas e em linguagem mais clara possível”, destaca. Se a decisão reconheceu o direito do reclamante e corresponder a quantia não for superior a 5 mil euros (equivalente no Brasil a R$ 16 mil), o banco é obrigado a depositá-la na conta bancária do reclamante. “Tem que pagar sem processo de execução e sem processo judicial”, observa o ministro. Mas se o banco foi o vencedor, o reclamante tem direito a entrar com ação em juízo e o prazo de prescrição é aumentado em seis meses. Outra vantagem, segundo Beneti, é que, mesmo nas causas superiores a 5 mil euros, o cliente pode abrir mão do restante, finalizando o conflito.

A importância desse modelo para o Brasil, de acordo com o ministro, está na possibilidade de diminuir consideravelmente as ações judiciais de consumidores contra os bancos. Ele exemplifica que no Brasil, somente as causas judiciais contra os bancos, relativas aos planos econômicos, representam mais de dois milhões de processos. Ele estima que 40% do número de recursos que chegam à mesa de trabalho de cada um dos ministros da Seção de Direito Privado do STJ tratam de questões envolvendo conflitos entre bancos e clientes.

Esse modelo de ombudsman que, de acordo com Beneti, é seguido por diversos países da União Europeia, não se aplica apenas aos bancos, podendo ser utilizado para prestações de serviços em geral, contratos de seguro, planos de saúde e diversas outras modalidades de relações de consumo.

Palestra

Em sua palestra, Klaus Hopt falará sobre as experiências com o ombudsman dos bancos privados na Alemanha, de 1992 a 2012, o processo de conciliação privada na Alemanha e na Europa, as vantagens do modelo, a regulamentação da conciliação em 2009 e um panorama da resolução alternativa de litígios e da mediação na União Europeia.

O palestrante destaca que, além de ser mais ágil e menos oneroso à máquina administrativa, o modelo doombudsman conferiu maior transparência à relação entre bancos e clientes, aumentando a confiabilidade dessas instituições.

Quanto à regulamentação da conciliação, o palestrante abordará os seguintes tópicos: pedido, admissibilidade do processo, exame preliminar, conciliação, cooperação com conciliações estrangeiras, prescrição, custas, liberdade advocatícia, confidencialidade e relatório.

No panorama da resolução alternativa de litígios na União Europeia, Hopt dissertará sobre a Diretiva Europeia sobre resolução alternativa de litígios em questões de consumidores, o Decreto Europeu sobre a plataforma on line de resolução alternativa de litígios em questões de consumidores, e a Diretiva Europeia sobre aspectos da mediação em matéria civil e comercial. 

Fonte: CJF I 11/02/2014.

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CGJ/SP: não é possível o registro de sociedade integrada exclusivamente por EIRELI e seu titular

PROCESSO Nº 2013/111946 – SÃO PAULO – MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO – Parte: PAULISTANA ADMINISTRAÇÃO E PARTICIPAÇÕES LTDA. – Advogados: FERNANDO RUDGE LEITE NETO, OAB/SP 84.786, LUIZ ANTONIO GOMIERO JÚNIOR, OAB/SP 154.733 e ANA LIGIA GOMIERO-GUTHRIE, OAB/SP 228.303.

Parecer: (261/13-E)

REGISTRO CIVIL DE PESSOAS JURÍDICAS – Empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI) – Pessoa jurídica de direito privado (artigo 44, VI, do CC) – Organização jurídica unipessoal da exploração empresarial – Plena subjetividade jurídica – Favor ao desenvolvimento da atividade econômica exercida pelo empresário individual – Vedada sua instrumentalização para recompor a pluralidade de sócios de sociedade cujo remanescente é seu titular – Ofensa a ratio legis (artigos 980-A, §§ 2.º e 3.º, e 1.033, IV e parágrafo único, do CC) – Alteração contratual inválida – Autocontratoilegal – Colisão de interesses empresariais – Averbação – Desqualificação registral confirmada – Recurso provido.

Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça,

O Ministério Público do Estado de São Paulo recorre contra a sentença que, ao afastar a pertinência da exigência formulada pelo 2.º Oficial de Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Capital(1), determinou a averbação da 11.ª alteração contratual da interessada Paulistana Administração e Participações Ltda(2).

O recorrente argumenta que a recomposição da pluralidade de sócios perseguida pela interessada não pode ser obtida mediante o ingresso de empresa individual de responsabilidade limitada – Busch Empreendimentos e Participações EIRELI – cujo titular é o sócio remanescente dela, Paulistana Administração e Participações Ltda., e invoca os princípios da transparência e da segurança jurídica(3).

Recebido o recurso(4), os autos, com a resposta apresentada pela interessada(5), foram enviados ao Conselho Superior da Magistratura(6) e a Procuradoria Geral de Justiça, depois de ressaltar a competência da Corregedoria Geral da Justiça para analisá-lo, propôs o provimento do recurso(7).

Com o reconhecimento de que o juízo negativo de qualificação registral recaiu sobre título passível de averbação, a incompetência do Conselho Superior da Magistratura foi declarada e os autos encaminhados à Corregedoria Geral da Justiça, órgão competente para apreciá-lo(8).

É o relatório. OPINO.

A interessada, sociedade simples por quotas de responsabilidade limitada (artigo 983, caput, do CC(9)), subsiste com um sócio, José Carlos Macedo Soares Busch, desde a 10.ª alteração do seu contrato social, motivada pelo falecimento do outro sócio, José Gustavo Macedo Soares(10).

Com o propósito de recompor a pluralidade de sócios, e impedir sua dissolução, porque a unipessoalidade não pode perdurar por mais de cento e oitenta dias (artigo 1.033, IV, do CC(11)), a interessada apresentou, para averbação (artigo 45, caput, e parágrafo único do artigo 999, ambos do CC(12)), alteração contratual prevendo, como outro sócio, a Busch Empreendimentos e Participações EIRELI, a quem o remanescente cedeu 96 das 9.600 quotas integrantes do capital social(13).

No entanto, o sócio remanescente, José Carlos Macedo Soares Busch, é o titular da EIRELI, e a questão posta é se, nessas circunstâncias, a empresa individual de responsabilidade limitada pode servir ao restabelecimento da pluralidade de sócios da interessada.

Com o advento da Lei n.º 12.441/2011, as empresas individuais de responsabilidade limitada, constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social (artigo 980-A, caput, do CC(14)), foi erigida à qualidade de pessoa jurídica de direito privado (artigo 44, VI, do CC(15)).

Introduziu-se na ordem jurídica pátria um novo tipo de pessoa jurídica; personificou-se, à vista da realidade social, não um agrupamento de pessoas naturais que congregam esforços e haveres direcionados à realização de fins comuns, tampouco um patrimônio vinculado a fim específico, não econômico, típico das fundações, mas a empresa(16), por iniciativa e vontade de uma só pessoa, seu titular, para fins de limitação de responsabilidade, e com constituição de patrimônio especial.

Malgrado a perplexidade que possa provocar, dada a confusão entre sujeito de direito e objeto, superada por decisão do legislador voltada à realização de uma política jurídica e o alcance de fins social e economicamente úteis, tal como, antes, ocorreu com as fundações(17), conferiu-se, pontual e originalmente, por ficção de Direito, mediante o processo técnico da ficção(18), capacidade jurídica à empresa, atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços (artigo 966, caput, do CC(19)).

Atribuiu-se personalidade jurídica à EIRELI, com segregação do patrimônio da pessoa que a constitui, de forma a evitar confusão patrimonial, para favorecer a empresa como atividade econômica desenvolvida pelo empresário individual, limitar o risco do empreendimento e estimular o desenvolvimento econômico.

Reflexamente, a inovação inibe as sociedades supostas, compostas por homes de palha para atender a pluralidade de sócios; viabiliza a regularização da situação de inúmeros empresários que atuam à margem do sistema legal, permite o cadastramento fiscal(20); beneficia os consumidores e agrega valores sociais (empregos, impostos, facilitação de acesso a bens e serviços, entre outros)(21).

Marcelo Fortes Barbosa Filho observa, com justeza, a finalidade principal da criação legislativa:

No âmbito do direito de empresa, a mais importante alteração sofrida pelo Código Civil foi trazida pela Lei n. 12.441, de 11.07.2011, e corresponde à introdução da empresa individual de responsabilidade limitada. Permite-se um desdobramento da personalidade jurídica do indivíduo (pessoa física) ou do ente imaterial (pessoa jurídica) para que uma segregação patrimonial seja realizada. Uma parcela do patrimônio da pessoa física ou jurídica é separada, com o fim precípuo de limitar o risco econômico-financeiro de um empreendimento. Não surge uma sociedade unipessoal ou uma nova espécie de empresário individual. Não surge uma nova pessoa, criando-se, isso sim, limites para os riscos assumidos a partir do patrimônio separado(22).

No entanto, a novidade não ficou na separação patrimonial, com a formação de duas massas patrimoniais distintas, uma delas separada do patrimônio geral, individualizada e especificamente afeta à atividade empresarial, importante, mas insuficiente para os fins projetados.

Por escolha do legislador, preocupado também com a coerência sistemática, criou-se, mediante construção técnica, uma nova pessoa jurídica, outro centro de imputação de direitos e deveres, com existência independente e autonomia patrimonial, denominado empresa individual de responsabilidade limitada.

Nessa linha, o Enunciado n.º 469 aprovado na V Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal (CJF) por meio de seu Centro de Estudos Judiciários (CEJ):

469 – Arts. 44 e 980-A: A empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI) não é sociedade, mas novo ente jurídico personificado.

O enunciado n.º 3, aprovado na I Jornada de Direito Comercial, também realizada pelo CEJ do CJF, não destoa:

3. A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI não é sociedade unipessoal, mas um novo ente, distinto da pessoa do empresário e da sociedade empresária.

Diante do sistema jurídico pátrio, nitidamente contratualista em matéria societária, no qual a sociedade unipessoal é exceção(23) e a unipessoalidade superveniente é temporária(24), resolveu-se por nova fórmula, outra organização jurídica unipessoal da exploração empresarial, alternativa à sociedade, à forma societária, mas dotada de plena subjetividade jurídica.

Optou-se, para instrumentalizar a limitação de responsabilidade do empresário individual, pela solução personificada: a inovação normativa não se restringiu, insista-se, à separação patrimonial, do patrimônio especial afeto a uma atividade, a um objetivo, a uma finalidade econômica, à satisfação de necessidades determinadas.

Tal como a União Europeia, que igualmente aderiu à solução personificada, porém sob a forma societária (sociedade unipessoal)(25), o legislador nacional deu prevalência às ponderações de ordem prática – guiadas por fatores econômicos, orientadas no sentido de tutelar a continuidade e preservação da empresa, proteger o patrimônio do empresário individual, garantir o acesso ao crédito, impulsionar o empreendedorismo e estimular o desenvolvimento -, em detrimento da coerência lógica.

A respeito do assunto, da utilidade jurídico-econômica da limitação de responsabilidade do empresário individual, das formas por meio das quais é instrumentalizada no direito comparado e da indispensabilidade “de uma forma jurídica que permita intermediar a relação entre empresário e empresa”, principalmente em razão das peculiaridades do fenômeno empresarial, os ensinamentos de Calixto Salomão Filho são valiosíssimos(26).

Embora prefira a forma organizativa societária, adotada pela Comunidade Europeia, o renomado professor das Arcadas respaldou, em certa medida, e previamente, com seu texto anterior à Lei n.º 12.441/2011, a solução incorporada à ordem jurídica nacional:

Soluções parciais como o patrimônio separado não parecem capazes de resolver o problema da proteção dos credores, nem tampouco de fornecer um meio de incentivo à atividade do pequeno comerciante individual. Caso se queira insistir na forma não societária, a solução mais aceitável e realista parece ser a de uma organização tão vizinha à societária e dotada de uma capacidade jurídica tão ampla, que chamá-la ou não de sociedade torna-se uma questão terminológica(27). (grifei)

Realmente, a instituição da empresa individual de responsabilidade limitada como pessoa jurídica, submetida, no que couber, às “regras previstas para as sociedades limitadas” (§ 6.º do artigo 980-A do CC(28)), reflete claramente essa opção.

A solução idealizada foi aplaudida por Modesto Carvalhosa, ao prefaciar a obra de Paulo Leonardo Vilela Cardoso, com apontamentos elucidativos:

a empresa individual surge no Brasil para atender necessidades de caráter prático e, em particular para satisfazer a pretensão legítima dos empresários em obter o benefício da limitação de responsabilidade no exercício da atividade.

Preferiu-se aqui denominá-la “empresa individual”, de modo a evitar incoerências lógico-lexicais decorrentes do emprego do termo “sociedade” ao referir-se a uma pessoa jurídica formada por um único participante, como ocorre na Comunidade Europeia.

Deve-se ter em mente que, diferentemente das sociedades, não se trata de organizar uma pluralidade de pessoas para a consecução de um fim comum, mas de criar uma estrutura formal voltada para a exploração da empresa por um único indivíduo, que permita a limitação de sua responsabilidade e consecução de seu objeto.

A empresa individual não deve ser entendida como uma manifestação patológica ou atípica, de modo a ser admitida ou tolerada somente para satisfazer situações específicas. Pelo contrário, necessita ser compreendida como uma situação ordinária, a exigir apenas o emprego de determinadas soluções no que se refere ao seu regime jurídico, que se justificam precisamente pela presença de um único participante, sem alterar as características essenciais da atividade empresária desenvolvida(29).

Dentro desse contexto, a EIRELI poderá, em nome próprio, adquirir direitos e contrair obrigações e, inclusive, “ter participação no capital de outras sociedades”(30).

Entretanto, isso não significa que possa ser utilizada, instrumentalizada, para, em direta afronta a ratio legis, recompor a pluralidade de sócios de sociedade da qual seu titular é o remanescente.

A transformação da sociedade em EIRELI é uma alternativa para impedir a dissolução decorrente da unipessoalidade superveniente (§ 3.º do artigo 980-A e 1.033, IV e parágrafo único, do CC(31)), não uma saída – planejada, in concreto, por José Carlos Macedo Soares Busch -, para restabelecer a pluralidade de sócios e, a piorar, driblar impedimento legal e viabilizar a entrada pela porta dos fundos de situação cujo acesso, pela da frente, foi vedado.

Tolerada a operação planeada pela interessada, no seu interesse empresarial e no do seu sócio remanescente, titular da EIRELI, abre-se possibilidade de contornar, por via oblíqua, indireta, sob a aparência de sociedade, a proibição de constituição de mais de uma empresa individual de responsabilidade limitada pela mesma pessoa natural (§ 2.º do artigo 980-A do CC(32)).

Fere as sensibilidades éticas primárias permitir à EIRELI servir de impulso e ferramenta para a formação sociedades fictícias: é contrário à teleologia legal admiti-la como trampolim para a perpetuação de situações fáticas indesejadas; o efeito colateral visado, antecipou-se, foi outro, o desencorajamento das sociedades de fachada, porque não mais necessárias para fins de limitação da responsabilidade.

A situação ainda expressa uma autocontratação inválida: a alteração contratual cuja averbação é discutida, projetada por José Carlos Macedo Soares Busch, que intervém na operação com dupla qualidade – na de sócio e administrador da interessada e na de titular e administrador da Busch Empreendimentos e Participações EIRELI -, concentrando em si centros de interesses diversos e dispondo de dois patrimônios distintos, evidencia típica hipótese de contrato consigo mesmo.

A propósito, os esclarecimentos de Gustavo Tepedino são oportunos:

O Código de 2002 traz previsão expressa da autocontratação inspirado nos diplomas italiano e português. O contrato consigo mesmo também denominado autocontrato, decorre do fenômeno da representação, e pode se manifestar por duas hipóteses distintas. Na primeira, aquele que intervém em duplo papel é, ao mesmo tempo, uma das partes contratantes, vale dizer, o representante, em vez de estipular o contrato com terceiro, celebra consigo próprio, reunindo, em sua pessoa, centro de interesses diversos; na segunda, o detentor das duas situações jurídicas representa ao menos duas outras pessoas por força de relações jurídicas representativas diversas, configurando-se hipótese de dupla representação, isto é, vontades pertencentes a titulares distintos são expressas por um único emitente. Nesta última hipótese, o representante não figura no negócio jurídico representativo; não adquire direitos nem obrigações, os quais são reservados, exclusivamente, aos representados(33). (grifei)

Além de inexistir expressa autorização para a engenhosa negociação, ofensiva ao espírito da Lei n.º 12.441/2011, resta caracterizada a concentração de interesses empresariais antagônicos em uma mesma pessoa: trata-se de causa objetiva de anulabilidade(34). O conflito de interesses é latente; a operação objetiva atender apenas aos interesses empresariais da Paulistana Administração e Participações Ltda.; os da EIRELI, instrumento a serviço daquela, são desconsiderados.

Debaixo dessa ótica, e embora não proscrito o autocontrato (artigo 117, caput, do CC(35)), o negócio jurídico sob análise é inválido, porque – inócua, pela peculiaridade da situação, eventual anuência do representado, a EIRELI que está sob a titularidade do sócio da recorrida, e ausente expressa permissão legal -, a inocorrência de colisão de interesses em potência era imprescindível para aceitação do contrato consigo mesmo(36).

Ademais, para resolução do dissenso, pouco importa que alterações contratuais semelhantes, também envolvendo o sócio remanescente da interessada, José Carlos Macedo Soares Busch, foram aceitas pela Junta Comercial do Estado de São Paulo – JUCESP(37), contemporaneamente à constituição da EIRELI(38): aliás, evidenciam o mau uso, a instrumentação da Busch Empreendimentos e Participações EIRELI.

Enfim, a desqualificação registral se mostrou acertada; justifica-se, nessa trilha, a reforma da r. sentença impugnada, nada obstante seus judiciosos fundamentos.

Pelo exposto, o parecer que respeitosamente submeto à apreciação de Vossa Excelência propõe o provimento do recurso administrativo, com reconhecimento do acerto do juízo negativo de qualificação registral e, para conhecimento, o envio de cópias do parecer e da r. decisão que eventualmente aprová-lo à JUCESP.

Sub censura.

São Paulo, 25 de julho de 2013.

Luciano Gonçalves Paes Leme

Juiz Assessor da Corregedoria

NOTAS DE RODAPÉ

(1) Fls. 77.

(2) Fls. 89/92.

(3) Fls. 93/99.

(4) Fls. 101

(5) Fls. 104/113.

(6) Fls. 115.

(7) Fls. 119/121.

(8) Fls. 122.

(9) Artigo 983. A sociedade empresária deve constituir-se segundo um dos tipos regulados nos arts. 1.039 a 1.092; a sociedade simples pode constituir-se de conformidade com um desses tipos, e, não o fazendo, subordina-se às normas que lhe são próprias. (grifei)

(10) Fls. 7/16.

(11) Artigo 1.033. Dissolve-se a sociedade quando ocorrer: (…)

IV – a falta de pluralidade de sócios, não reconstituída no prazo de cento e oitenta dias; (…). (grifei)

(12) Artigo 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo. (grifei) Artigo 999. (…)

Parágrafo único. Qualquer modificação do contrato social será averbada, cumprindo-se as formalidades previstas no artigo antecedente. (grifei)

(13) Fls. 17/25, 26/34 e 35/43.

(14) Artigo 980-A. A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País.

(15) Artigo 44. São pessoas jurídicas de direito privado: (…)

VI – as empresas individuais de responsabilidade limitada. (grifei)

(16) Rubens Requião. Curso de Direito Comercial. 32.ª ed. Atualizada por Rubens Edmundo Requião. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 114. v. 1; Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery. Código Civil comentado. 10.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 307, nota 18, e p. 1.014, nota 7.

(17) A propósito de controvérsia semelhante envolvendo as fundações, conferir as notas oportunas do mestre Silvio Rodrigues (Direito Civil: parte geral. 25.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 76-80. v. 1).

(18) Cf. Orlando Gomes. Introdução ao Direito Civil. 19.ª ed. Atualizada por Edvaldo Brito e Reginalda Paranhos de Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 167-171.

(19) Artigo 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

(20) Rubens Requião, op. cit., 114.

(21) Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, op. cit., p. 1.013.

(22) Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 6.ª ed. Ministro Cezar Peluso (coord.). São Paulo: Manole, 2012. p. 991.

(23) Casos da subsidiária integral, prevista na Lei das Sociedades por Ações (artigo 251 da Lei n.º 6.404/1976), que tem como único acionista uma sociedade brasileira, e das empresas públicas.

(24) Situações positivadas nos artigos 1.033, IV, do Código Civil, e 206, I, d, da Lei das Sociedade por Ações.

(25) Diretiva 2009/102/CE do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia, de 16 de setembro de 2009, em matéria de direito das sociedades relativa às sociedades de responsabilidade limitada com um único sócio.

(26) O novo direito societário. 4.ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2011. p. 202-231.

(27) Op. cit., p. 226-227.

(28) Artigo 980-A. (…)

§ 6º Aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada, no que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas.

(29) O empresário de responsabilidade limitada. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 13-14.

(30) Rubens Requião, op. cit., p. 117.

(31) Artigo 980-A. (…)

§ 3º A empresa individual de responsabilidade limitada também poderá resultar da concentração das quotas de outra modalidade societária num único sócio, independentemente das razões que motivaram tal concentração.

Artigo 1.033. (…)

Parágrafo único. Não se aplica o disposto no inciso IV caso o sócio remanescente, inclusive na hipótese de concentração de todas as cotas da sociedade sob sua titularidade, requeira, no Registro Público de Empresas Mercantis, a transformação do registro da sociedade para empresário individual ou para empresa individual de responsabilidade limitada, observado, no que couber, o disposto nos arts. 1.113 a 1.115 deste Código.

(32) Artigo 980-A. (…)

§ 2º A pessoa natural que constituir empresa individual de responsabilidade limitada somente poderá figurar em uma única empresa dessa modalidade. (grifei)

(33) Gustavo Tepedino, op. cit., p. 140-141.

(34) A técnica da representação e os novos princípios contratuais. In: Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 125-144. t. III. p. 138-139.

(35) Artigo 117. Salvo se o permitir a lei ou o representado, é anulável o negócio jurídico que o representante, no seu interesse ou por conta de outrem, celebrar consigo mesmo.

(36) Mairam Gonçalves Maia Júnior. A representação no negócio jurídico. 2.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. P. 189-195.

(37) Fls. 48/57, 58/67 e 68/76.

(38) Fls. 44/47.

DECISÃO: Aprovo o parecer do MM. Juiz Assessor da Corregedoria e, por seus fundamentos, que adoto, dou provimento ao recurso administrativo do Ministério Público do Estado de São Paulo, com reconhecimento do acerto da desqualificação registral e, para ciência, o encaminhamento de cópias do parecer e desta decisão à JUCESP. Publique-se, inclusive, pela relevância do tema discutido, o parecer. São Paulo, 30 de julho de 2013. (a) JOSÉ RENATO NALINI, Corregedor Geral da Justiça

Fonte: DJE/SP | 09/08/2013.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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