TJ/SP: Averbação de ata de assembleia de associação – Natureza jurídica de alteração do estatuto e não adequação redacional – Impossibilidade de receber como alteração do estatuto pelo quórum por não ter sido esse o objeto da votação realizada pelos associados – Exigência mantida – Recurso não provido.

Número do processo: 1030311-55.2017.8.26.0100

Ano do processo: 2017

Número do parecer: 183

Ano do parecer: 2018

Parecer

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA

Processo CG n° 1030311-55.2017.8.26.0100

(183/2018-E)

Averbação de ata de assembleia de associação – Natureza jurídica de alteração do estatuto e não adequação redacional – Impossibilidade de receber como alteração do estatuto pelo quórum por não ter sido esse o objeto da votação realizada pelos associados – Exigência mantida – Recurso não provido.

Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça,

Trata-se de recurso administrativo interposto contra decisão da MM. Juíza Corregedora Permanente do Sr. 1º Oficial de Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca da Capital que manteve parcialmente o óbice à averbação de ata de Assembleia Geral Extraordinária.

Sustenta a recorrente o cabimento da averbação por se tratar de adequação do estatuto; prejudicialmente, mencionou o cumprimento do quórum para alteração do ato constitutivo competindo, igualmente, a realização do ato registral (a fls. 219/228).

O parecer da D. Procuradoria Geral da Justiça foi no sentido do não acolhimento do recurso (a fls. 237/240).

Houve determinação de nova manifestação do Sr. Oficial (a fls. 242 e 247/253).

É o breve relatório.

Não serão considerados os argumentos apresentados à fls. 247/253 pelo Sr. Oficial em cumprimento ao despacho da MM. Juíza Assessora da Corregedoria de fls. 242; portanto, desnecessária manifestação prévia da recorrente; competindo a decisão com o constante dos autos até o parecer da D. Procuradoria Geral da Justiça.

O Estatuto da Associação encerra um ato de autonomia privada coletiva realizado em conformidade ao interesse comum dos associados enquanto concretização dos valores constitucionais e os ditames legais incidentes.

A obediência ao estatuto encerra o respeito ao direito de autodeterminação dos integrantes da associação como manifestação de vontade coletiva, daí a impossibilidade da produção de efeitos jurídicos no âmbito interno e externo das deliberações em violação àquele.

As bem elaboradas razões recursais são centradas em dois fundamentos: (i) a natureza jurídica de adequação do estatuto a ditames legais e não alteração e (ii) de qualquer forma, o cumprimento do quórum necessário à deliberação atinente à alteração do ato de autonomia privada coletiva.

As modificações havidas em Assembleia, conforme consta do recurso administrativo, foram as seguintes:

Texto anterior do art. 48:

Art. 48 – São administradores da ADPM, sem qualquer diferenciação hierárquica, salvo nas situações estabelecidas por este Estatuto: (…).

Com a modificação:

Art. 48 – São administradores da ADPM, sem qualquer diferenciação hierárquica, salvo nas situações estabelecidas por este Estatuto, bem como sem direito a qualquer remuneração (…). (grifos meus)

Texto anterior do art. 155:

Art. 155 – Constituem despesas da ADPM, tudo quanto seja necessário a realização de seus fins, desde que observadas as disponibilidades financeiras, com prévia consulta ao Departamento de Tesouraria da entidade e administração da Diretoria Executiva, tais como:

I – Pagamentos de salários de empregados e encargos sociais decorrentes da folha de pagamento;

II – Taxas, impostos, gratificações, prêmios, ajudas de custo e outros encargos pessoais com atletas, responsáveis por Seções Desportivas, membros do Conselho Deliberativo, do Conselho Fiscal e da Diretoria;

III – Gastos com recepções, homenagens, honrarias, brindes e doações;

IV – Verbas de representação devidas aos Membros do Conselho Deliberativo, do Conselho Fiscal e da Diretoria; e

V – Gastos com compra de materiais de consumo, móveis e imóveis necessários para a administração da entidade e bem estar dos associados.

Com a modificação:

Art. 155 – Constituem despesas da ADPM, tudo quanto seja necessário a realização de seus fins, desde que observadas as disponibilidades financeiras, com prévia consulta ao Departamento de Tesouraria da entidade e administração da Diretoria Executiva, tais como:

I – Pagamentos de salários de empregados e encargos sociais decorrentes da folha de pagamento;

II – Taxas, impostos, gratificações, prêmios, ajudas de custo e outros encargos pessoais com atletas, responsáveis por Seções Desportivas, membros do Conselho Deliberativo, do Conselho Fiscal e da Diretoria;

III – Gastos com recepções, homenagens, honrarias, brindes e doações;

IV – revogado; (grifos meus)

V – Gastos com compra de materiais de consumo, móveis e imóveis necessários para a administração da entidade e bem estar dos associados.

A tese recursal, de acordo com o deliberado em Assembleia, compreende a mera adaptação ou adequação da redação do Estatuto aos termos do Decreto Estadual que impede a remuneração das funções diretivas da entidade, por disposição estatutária expressa.

Não obstante, como decidido pela i. MM. Juíza Corregedora Permanente, antes da modificação realizada era possível remunerar as funções diretivas da Associação em virtude da ausência de impedimento estatutário expresso, conforme simples interpretação do estatuto.

Doravante, não mais seria possível qualquer remuneração, justamente, pela inclusão da expressão – sem direito a qualquer remuneração – e exclusão da previsão – Verbas de representação devidas aos Membros do Conselho Deliberativo, do Conselho Fiscal e da Diretoria.

De outra parte, o fato dos dirigentes jamais haverem sido remunerados não tem o condão de modificar a previsão estatutária permissiva de pagamento àqueles.

Nestes termos, patente a natureza jurídica de alteração do estatuto e não mera melhora de redação de previsão já existente (adequação).

A manifestação de vontade dos associados em Assembleia também ocorre por meio de declaração unilateral de vontade – o voto.

Na ata cuja averbação é pretendida, antes da votação o Sr. Presidente da Diretoria afirmou que a modificação pretendida encerra “adequação” e não “alteração” do estatuto, esse o objeto da deliberação associativa.

Diante disso, todos os presentes não foram informados da alteração do estatuto (com modificação para impossibilidade de qualquer remuneração aos dirigentes) e sim de mera adequação sem modificação das previsões estatutárias. As declarações foram firmes e veementes nesse sentido, como se observa do conteúdo da ata (a fls. 71/75).

Nessa linha, os associados presentes não votaram pela alteração do estatuto em virtude do equívoco na qualificação jurídica da alteração pretendida, afirmada pelo Presidente.

Nessa ordem de ideias, independentemente do quórum de aprovação, não é possível receber a deliberação assemblear como alteração do estatuto, pois não foi isso o que foi votado.

Também é possível acrescentar o referido pelo D. Procuradoria Geral da Justiça, de acordo com a documentação existente nos autos, acerca da impossibilidade da verificação objetiva da formação do quórum qualificado; justamente, repito, em virtude da votação assemblear não ter por objeto a modificação do estatuto.

Ante o exposto, o parecer que, respeitosamente, submeto à elevada apreciação de Vossa Excelência é no sentido do não provimento do recurso administrativo.

Sub Censura.

São Paulo, 3 de maio de 2018.

Marcelo Benacchio

Juiz Assessor da Corregedoria

DECISÃO: Aprovo o parecer do MM. Juiz Assessor da Corregedoria e, por seus fundamentos, que adoto, nego provimento ao recurso administrativo. Publique-se. São Paulo, 07 de maio de 2018. (a) GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO, Corregedor Geral da Justiça – Advogada: MARIA ANGELICA DE LIRA RODRIGUES, OAB/SP 115.416, FABIANE REGINA CORREA VIANA, OAB/SP 252.827 e ELISANGELA DOS SANTOS GOMES COSTA, OAB/SP 150.392.

Diário da Justiça Eletrônico de 10.05.2018

Decisão reproduzida na página 082 do Classificador II – 2018

Fonte: INR Publicações

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STJ: Recurso Especial – Civil – Ação anulatória de testamento – Negativa de prestação jurisdicional – Não ocorrência – Cláusula de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade – Vigência da restrição – Vida do beneficiário – Ato de disposição de última vontade – Validade – Recurso provido – 1. Inexiste afronta ao art. 535 do CPC/1973 quando a Corte local pronuncia, de forma clara e suficiente, sobre as questões deduzidas nos autos, manifestando-se sobre todos os argumentos que, em tese, poderiam infirmar a conclusão adotada pelo Juízo – 2. Conforme a doutrina e a jurisprudência do STJ, a cláusula de inalienabilidade vitalícia tem duração limitada à vida do beneficiário – herdeiro, legatário ou donatário –, não se admitindo o gravame perpétuo, transmitido sucessivamente por direito hereditário – 3. Assim, as cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade não tornam nulo o testamento que dispõe sobre transmissão causa mortis de bem gravado, haja vista que o ato de disposição somente produz efeitos após a morte do testador, quando então ocorrerá a transmissão da propriedade – 4. Recurso especial provido para julgar improcedente a ação de nulidade de testamento.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.641.549 – RJ (2014/0118574-4)

RELATOR : MINISTRO ANTONIO CARLOS FERREIRA

RECORRENTE : ELIENE DOS SANTOS COSTA DE OLIVEIRA

RECORRENTE : ELIEDE DOS SANTOS COSTA

ADVOGADO : LAURO MÁRIO PERDIGÃO SCHUCH RJ037500

RECORRIDO : ANTONIO SIMOES GONCALVES ESPÓLIO

REPR. POR : MARIA VERÔNICA GONÇALVES LUCENA

ADVOGADO : ANDRÉ ESTEVES LAMARCA RJ095948

EMENTA Decisão selecionada e originalmente divulgada pelo INR

RECURSO ESPECIAL. CIVIL. AÇÃO ANULATÓRIA DE TESTAMENTO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE, INCOMUNICABILIDADE E IMPENHORABILIDADE. VIGÊNCIA DA RESTRIÇÃO. VIDA DO BENEFICIÁRIO. ATO DE DISPOSIÇÃO DE ÚLTIMA VONTADE. VALIDADE. RECURSO PROVIDO.

1. Inexiste afronta ao art. 535 do CPC/1973 quando a Corte local pronuncia, de forma clara e suficiente, sobre as questões deduzidas nos autos, manifestando-se sobre todos os argumentos que, em tese, poderiam infirmar a conclusão adotada pelo Juízo.

2. Conforme a doutrina e a jurisprudência do STJ, a cláusula de inalienabilidade vitalícia tem duração limitada à vida do beneficiário – herdeiro, legatário ou donatário –, não se admitindo o gravame perpétuo, transmitido sucessivamente por direito hereditário.

3. Assim, as cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade não tornam nulo o testamento que dispõe sobre transmissão causa mortis de bem gravado, haja vista que o ato de disposição somente produz efeitos após a morte do testador, quando então ocorrerá a transmissão da propriedade.

4. Recurso especial provido para julgar improcedente a ação de nulidade de testamento.

ACÓRDÃO

A Quarta Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Marco Buzzi (Presidente), Luis Felipe Salomão, Raul Araújo e Maria Isabel Gallotti votaram com o Sr. Ministro Relator.

Sustentação Oral: Dr(a). LAURO MÁRIO PERDIGÃO SCHUCH, pela parte RECORRENTE: ELIENE DOS SANTOS COSTA DE OLIVEIRA.

Brasília-DF, 13 de agosto de 2019 (Data do Julgamento)

Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA

Relator

RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO ANTONIO CARLOS FERREIRA (Relator): Trata-se de recurso especial interposto contra acórdão do TJRJ assim ementado (e-STJ fl. 223):

APELAÇÃO CÍVEL. NULIDADE DO TESTAMENTO. SENTENÇA QUE ACOLHEU A PRETENSÃO DO AUTOR PARA DECLARAR A NULIDADE DO TESTAMENTO. REJEIÇÃO DA PRELIMINAR RECURSAL DE JULGAMENTO EXTRA PETITA. CLÁUSULA RESTRITIVA DE INALIENABILIDADE. IMPOSSIBILIDADE DE DISPOSIÇÃO DO BEM. NULIDADE RECONHECIDA. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO.

Os embargos de declaração opostos ao aresto foram rejeitados (e-STJ fls. 240/248).

No especial (e-STJ fls. 250/274), fundamentado no art. 105, III, “a” e “c”, da CF/1988, as recorrentes apontam, além de divergência jurisprudencial, violação dos seguintes dispositivos legais:

(i) art. 535, I, do CPC/1973, em razão de contradição e obscuridade no acórdão recorrido, “pois, tratando de testamento e sucessão testamentária, como reconhecido e declarado no acórdão, não se está diante de transmissão de propriedade por ato inter vivos, por óbvio e elementar, embora assim no aresto esteja registrado” (e-STJ fl. 262), e

(ii) arts. 1.676 e 1.723 do CC/1916, pois, ao considerar que a cláusula de inalienabilidade “importa na vedação a que o proprietário da coisa dela disponha por testamento, a valer após sua morte e quando da abertura de sua sucessão” (e-STJ fl. 257), “não observou a decisão recorrida que o testamento público não constitui ato inter vivos de alienação da propriedade, mas tão só manifestação de vontade, unilateral, para vigorar e produzir efeitos após a morte do testador. O que transmite a propriedade não é o testamento, mas a abertura da sucessão pela morte do autor da herança. Tanto assim que mesmo após a confecção do testamento, o titular dos bens que lhe constituem objeto da vontade manifestada pode deles dispor livremente, inclusive, e em prejuízo do próprio testamento, aliená-los em vida ou legá-los de modo diverso através de outro testamento” (e-STJ fl. 257). Aduzem ainda que “o art. 1.723 do mesmo Código Civil de 1916, expressamente dispunha, e diferentemente do que diz o acórdão, os bens gravados com a cláusula de inalienabilidade poderiam ser objeto de disposição testamentária pelo seu titular” (e-STJ fl. 261).

Contrarrazões apresentadas às fls. 303/309 (e-STJ).

É o relatório.

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO ANTONIO CARLOS FERREIRA (Relator): Inicialmente, verifico que a Corte local pronunciou-se, de forma clara e suficiente, acerca das questões suscitadas nos autos, manifestando-se sobre todos os argumentos que, em tese, poderiam infirmar a conclusão adotada pelo Juízo. Desse modo, não há falar em violação do art. 535 do CPC/1973.

Quanto ao mérito, cinge-se a controvérsia à validade de testamento que dispôs sobre bens gravados com cláusula de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade.

Consta dos autos que “no ano de 1979 o pai do falecido ANTONIO SIMÕES GONÇALVES deixou para o filho os oito apartamentos que integram o imóvel da Rua Guatemala, nº 227, gravando-os com as cláusulas de incomunicabilidade, inalienabilidade e impenhorabilidade (fls. 32)” (e-STJ fl. 184).

Em 1996, ANTÔNIO SIMÕES GONÇALVES fez um testamento deixando parte dos imóveis para sua companheira, Helena Rosa dos Santos, com quem conviveu por 35 (trinta e cinco) anos.

A sentença considerou nulo o testamento, de acordo com o art. 1.676 do CC/1916, por contrariar a cláusula restritiva gravada nos bens imóveis. O Tribunal de origem manteve a nulidade testamentária sob os seguintes fundamentos (e-STJ fls. 229/232):

Antes de adentrar no mérito, cabe esclarecer que ANTONIO SIMÕES GONÇALVES recebeu de herança de seu pai, através de testamento, alguns bens, gravados com as cláusulas de incomunicabilidade, inalienabilidade e impenhorabilidade, em decorrência da sua condição de ébrio habitual.

Resta evidente que procurou o testador garantir o patrimônio não só do seu filho, mas também dos seus netos.

Ocorre que, o de cujus, no ano de 1996, fez um testamento em favor da parte ré, deixando-lhe a parte disponível dos bens.

O Juiz acolheu o pleito de anulação do testamento por entender que o negócio versou sobre bens clausulados, que não poderiam ter sido legados.

Com razão. A instituição da cláusula de inalienabilidade obsta que o patrimônio doado ou herdado possa ser transferido a terceiros, sob qualquer forma, seja a título gratuito ou oneroso, evitando que o beneficiário disponha de maneira indiscriminada, dilapidando o patrimônio.

Assim, os bens recebidos com este gravame não poderão ser vendidos, doados, permutados, dados em pagamento, sendo lícito ao beneficiário somente usar, gozar e reaver a coisa de quem quer que a possua injustamente, faltando-lhe, no entanto, o direito de deles dispor.

Em outras palavras, a cláusula de inalienabilidade, que gravava os bens, deixados por testamento à ANTONIO SIMÕES, impede a transmissão dos bens. Assim, a inalienabilidade impossibilita a transmissão patrimonial por ato inter vivos.

Logo, acertada a sentença ao reconhecer a nulidade do testamento.

O art. 1.676 do CC/1916, fundamento central da declaração de nulidade do testamento, versa sobre a cláusula de inalienabilidade imposta aos bens pelos testadores ou doadores, nos seguintes termos:

Art. 1.676. A clausula de inalienabilidade temporária, ou vitalícia, imposta aos bens pelos testadores ou doadores, não poderá, em caso algum, salvo os de expropriação por necessidade ou utilidade publica, e de execução por dividas provenientes de impostos relativos aos respectivos imóveis, ser invalidada ou dispensada por atos judiciais de qualquer espécie, sob pena de nulidade.

Importante desde logo definir que o efeito substancial da cláusula de inalienabilidade “consiste na proibição de alienar o bem clausulado. Assim é que o proprietário fica impedido de praticar qualquer ato de disposição pelo qual o bem passe a pertencer a outrem. Em síntese, não pode transferi-lo voluntariamente, ou seja, por sua livre e espontânea vontade. Portanto, o proprietário não pode vendê-lo, permutá-lo ou doá-lo. Abrange esta proibição os atos de alienação eventual ou transitória (dar em hipoteca, penhor etc.)” (MALUF, Carlos Alberto Dabus. Cláusulas de Inalienabilidade, Incomunicabilidade e Impenhorabilidade. Editora Revista dos Tribunais. 4ª ed. 2006, p. 49).

Por outro lado, se vitalícia, “a proibição dura toda a vida do herdeiro do legatário ou do donatário. Não se admite, porém, a inalienabilidade perpétua, transmitida, sucessivamente, por direito hereditário” (MALUF, Carlos Alberto Dabus. Op. cit., p. 47).

Registrem-se, por oportuno, as lições de Clóvis Beviláqua, citado na obra acima indicada:

A inalienabilidade não pode ser perpétua. Há de ter uma duração limitada ou vitalícia. Os vínculos perpétuos, ou cuja duração se estenda além da vida de uma pessoa, são condenados. A inalienabilidade imobiliza os bens, impede a circulação das riquezas; é, portanto, antieconômica, do ponto de vista social. Por considerações especiais, para defender a inexperiência dos indivíduos, para assegurar o bem-estar da família, para impedir a dilapidação dos pródigos, o direito consente em que seja, temporariamente, entravada a circulação de determinados bens.

(MALUF, Carlos Alberto Dabus. Op. cit., p. 47).

Nesse mesmo sentido encontra-se a jurisprudência desta Corte Superior, segundo a qual “a cláusula de inalienabilidade vitalícia tem vigência enquanto viver o beneficiário, passando livres e desembaraçados aos seus herdeiros os bens objeto da restrição” (REsp 1101702/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 22/09/2009, DJe 09/10/2009).

A propósito:

TESTAMENTO. INALIENABILIDADE. COM A MORTE DO HERDEIRO NECESSARIO (ART. 1721 DO CC), QUE RECEBEU BENS CLAUSULADOS EM TESTAMENTO, OS BENS PASSAM AOS HERDEIROS DESTE, LIVRES E DESEMBARAÇADOS. ART. 1723 DO CODIGO CIVIL.

(REsp 80.480/SP, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 13/05/1996, DJ 24/06/1996, p. 22769.)

RECURSO ESPECIAL. DIREITO DAS SUCESSÕES. BEM GRAVADO COM CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE. CÔNJUGE QUE NÃO PERDE A CONDIÇÃO DE HERDEIRO.

1. O art. 1829 do Código Civil enumera os chamados a suceder e define a ordem em que a sucessão é deferida. O dispositivo preceitua que o cônjuge é também herdeiro e nessa qualidade concorre com descendentes (inciso I) e ascendentes (inciso II). Na falta de descendentes e ascendentes, o cônjuge herda sozinho (inciso III). Só no inciso IV é que são contemplados os colaterais.

2. A cláusula de incomunicabilidade imposta a um bem não se relaciona com a vocação hereditária. Assim, se o indivíduo recebeu por doação ou testamento bem imóvel com a referida cláusula, sua morte não impede que seu herdeiro receba o mesmo bem.

3. Recurso especial provido.

(REsp 1552553/RJ, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 24/11/2015, DJe 11/02/2016.)

Transcrevo, por oportuno, trecho do voto da Ministra Maria Isabel Gallotti, no julgamento do REsp n. 1.552.553/RJ, dispondo sobre a vigência da cláusula de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade:

Como visto, o testador impôs a cláusula de incomunicabilidade. Como consequência, é possível concluir que os bens deixados à filha não se comunicavam ao cônjuge, ou seja, não havia meação e, relação a eles. Essa disposição não afasta a conclusão de que, falecida a filha, o cônjuge sobrevivente, assim como quaisquer outros herdeiros necessários, tem direito à sua herança, nela incluídos aqueles bens.

(…).

A existência de cláusula de incomunicabilidade gravando o bem no primitivo ato jurídico que ensejara a transferência da propriedade à falecida esposa do recorrente (testamento de seus pais) não tem o efeito de, no futuro, excluir o genro da herança da beneficiária, nem mesmo se assim fosse expressa a disposição, porque isso significaria negar vigência ao Código Civil. Poderia, isso sim, ter sido acrescentada outra cláusula dispondo sobre a destinação do bem em caso da morte da beneficiária do testamento e, para tanto, bastaria instituir um fideicomisso. Conclui-se, então, que a posição defendida nesse voto em nada prejudica a autonomia da vontade, pois há mecanismos jurídicos para que o testador dê o encaminhamento que bem entender ao seu patrimônio material. O que não se pode fazer é dar à cláusula de incomunicabilidade alcance que ela não tem.

Assim, por força do princípio da livre circulação dos bens, não é possível a inalienabilidade perpétua, razão pela qual a cláusula em questão se extingue com a morte do titular do bem clausulado, podendo a propriedade ser livremente transferida a seus sucessores.

Registre-se, aliás, o conceito de testamento como um “negócio jurídico unilateral por meio do qual uma pessoa dispõe de seu patrimônio e faz outras disposições de última vontade para depois de sua morte (art. 1.857, caput e § 2º)” (DONIZETTI, Elpídio, e QUINTELLA, Felipe. Curso de Direito Civil. Editora Atlas. 2012, p. 1.164).

A respeito do testamento, Antônio Junqueira de Azevedo, de forma clara e didática, ensina que a disposição patrimonial somente se efetiva após o óbito do testador:

Plano da existência, plano da validade e plano da eficácia são os três planos nos quais a mente humana deve sucessivamente examinar o negócio jurídico, a fim de verificar se ele obtém plena realização.

Se tomarmos, a título de exemplo, um testamento, temos que, enquanto determinada pessoa apenas cogita de quais as disposições que gostaria de fazer para terem eficácia depois de sua morte, o testamento não existe; enquanto somente manifesta essa vontade, sem a declarar, conversando com amigos, parentes ou advogados, ou, mesmo, escrevendo em rascunho, na presença de muitas testemunhas, o que pretende que venha a ser sua última vontade, o testamento não existe. No momento, porém, em que a declaração se faz, isto é, no momento em que a manifestação, dotada de forma e conteúdo, se caracteriza como declaração de vontade (isto é, encerra em si não só uma forma e um conteúdo, como em qualquer manifestação mas também as circunstâncias negociais, que fazem com que aquele ato seja visto socialmente como destinado a produzir efeitos jurídicos), o testamento entra no plano da existência; ele existe. Isso, porém, não significa que ele seja válido. Para que o negócio tenha essa qualidade, a lei exige requisitos: por exemplo, que o testador esteja no pleno gozo de suas faculdades mentais, que as disposições feitas sejam lícitas, que a forma utilizada seja prescrita. Por fim, ainda que estejam preenchidos os requisitos e o testamento, portanto, seja válido, ele ainda não é eficaz. Será preciso, para a aquisição de sua eficácia (eficácia própria), que o testador mantenha sua declaração, sem revogação, até morrer; somente a morte dará eficácia ao testamento, projetando, então, o negócio jurídico, até aí limitado aos dois primeiros planos, no terceiro e último ciclo de sua realização. (AZEVEDO, Antônio Junqueira. Negócio Jurídico. Existência, Validade e Eficácia. Editora Saraiva. 4ª edição. 2010, p. 24-25).

Logo, trata-se de um negócio jurídico que somente produz efeito após a morte do testador, quando, de fato, ocorre a transferência do bem. Assim, a elaboração do testamento não acarreta nenhum ato de alienação da propriedade em vida, senão evidencia a declaração de vontade do testador, revogável a qualquer tempo.

Portanto, considerando que o gravame restritivo vigorou durante a vida do testador ANTÔNIO SIMÕES GONÇALVES, e que os efeitos do testamento somente tiveram início com sua morte, devem ser consideradas válidas as disposições de última vontade que beneficiaram Helena Rosa dos Santos.

Por fim, o testamento em discussão não avançou sobre a legítima dos herdeiros necessários do testador, tendo sido, no caso, observada a quota disponível para doação, de acordo com o art. 1.846 do CC/2002.

De fato, sendo o testador plenamente capaz, a forma prescrita em lei e o objeto lícito, é válido o testamento.

Diante do todo o exposto, DOU PROVIMENTO ao recurso especial para julgar improcedente a ação anulatória de testamento, com inversão dos ônus sucumbenciais fixados na sentença de fl. 185 (e-STJ).

É como voto. /

Dados do processo:

STJ – REsp nº 1.641.549 – Rio de Janeiro – 4ª Turma – Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira – DJ 20.08.2019

Fonte: INR Publicações

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STJ: Recurso Especial – Recuperação judicial – Negativa de prestação jurisdicional – Inocorrência – Compra e venda com reserva de domínio – Não sujeição aos efeitos da recuperação judicial da compradora – Desnecessidade de registro – 1. Ação ajuizada em 22/4/2015. Recurso especial interposto em 20/9/2017. Conclusão ao Gabinete em 27/2/2018 – 2. O propósito recursal, além de verificar a ocorrência de negativa de prestação jurisdicional, é definir se os créditos titularizados pela recorrente, concernentes a contrato de compra e venda com reserva de domínio celebrado com a recorrida, estão ou não sujeitos aos efeitos da recuperação judicial desta – 3. Devidamente analisadas e discutidas as questões de mérito, e suficientemente fundamentado o acórdão recorrido, não há como reconhecer a ocorrência de negativa de prestação jurisdicional – 4. Segundo o art. 49, § 3º, da Lei 11.101/05, o crédito titularizado por proprietário em contrato de venda com reserva de domínio não se submete aos efeitos da recuperação judicial do comprador, prevalecendo os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais – 5. A manutenção da propriedade do bem objeto do contrato com o vendedor até o implemento da condição pactuada (pagamento integral do preço) não á afetada pela ausência de registro perante a serventia extrajudicial – 6. O dispositivo legal precitado exige, para não sujeição dos créditos detidos pelo proprietário em contrato com reserva de domínio, apenas e tão somente que ele ostente tal condição (de proprietário), o que decorre da própria natureza do negócio jurídico – 7. O registro se impõe como requisito tão somente para fins de publicidade, ou seja, para que a reserva de domínio seja oponível a terceiros que possam ser prejudicados diretamente pela ausência de conhecimento da existência de tal cláusula. É o que pode ocorrer com aquele que venha a adquirir o bem cujo domínio ficou reservado a outrem (venda a non domino); ou, ainda, com aqueles que pretendam a aplicação, em juízo, de medidas constritivas sobre a coisa que serve de objeto ao contrato. Todavia, a relação estabelecida entre o comprador – em recuperação judicial – e seus credores versa sobre situação distinta, pois nada foi estipulado entre eles acerca dos bens objeto do contrato em questão – Recurso especial provido.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.725.609 – RS (2018/0039356-9)

RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI

RECORRENTE : SCHELLING ANLAGENBAU GMBH

ADVOGADOS : ALEXANDRE EPPINGHAUS VARELLA JACOB RJ100865

HANS CHRISTIAN VON BLUCHER RJ211224-NATÉRCIA ESCOREL CORDEIRO DE CASTRO E SILVA RJ211410

RECORRIDO : D’ITALIA MÓVEIS INDUSTRIAL LTDA

ADVOGADO : LUCIANO D AVILA COUTINHO RS060235

INTERES. : DITALIA MOVEIS EM REC JUD

EMENTA Decisão selecionada e originalmente divulgada pelo INR

RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INOCORRÊNCIA. COMPRA E VENDA COM RESERVA DE DOMÍNIO. NÃO SUJEIÇÃO AOS EFEITOS DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL DA COMPRADORA. DESNECESSIDADE DE REGISTRO.

1. Ação ajuizada em 22/4/2015. Recurso especial interposto em 20/9/2017. Conclusão ao Gabinete em 27/2/2018.

2. O propósito recursal, além de verificar a ocorrência de negativa de prestação jurisdicional, é definir se os créditos titularizados pela recorrente, concernentes a contrato de compra e venda com reserva de domínio celebrado com a recorrida, estão ou não sujeitos aos efeitos da recuperação judicial desta.

3. Devidamente analisadas e discutidas as questões de mérito, e suficientemente fundamentado o acórdão recorrido, não há como reconhecer a ocorrência de negativa de prestação jurisdicional.

4. Segundo o art. 49, § 3º, da Lei 11.101/05, o crédito titularizado por proprietário em contrato de venda com reserva de domínio não se submete aos efeitos da recuperação judicial do comprador, prevalecendo os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais.

5. A manutenção da propriedade do bem objeto do contrato com o vendedor até o implemento da condição pactuada (pagamento integral do preço) não á afetada pela ausência de registro perante a serventia extrajudicial.

6. O dispositivo legal precitado exige, para não sujeição dos créditos detidos pelo proprietário em contrato com reserva de domínio, apenas e tão somente que ele ostente tal condição (de proprietário), o que decorre da própria natureza do negócio jurídico.

7. O registro se impõe como requisito tão somente para fins de publicidade, ou seja, para que a reserva de domínio seja oponível a terceiros que possam ser prejudicados diretamente pela ausência de conhecimento da existência de tal cláusula. É o que pode ocorrer com aquele que venha a adquirir o bem cujo domínio ficou reservado a outrem (venda a non domino); ou, ainda, com aqueles que pretendam a aplicação, em juízo, de medidas constritivas sobre a coisa que serve de objeto ao contrato. Todavia, a relação estabelecida entre o comprador – em recuperação judicial – e seus credores versa sobre situação distinta, pois nada foi estipulado entre eles acerca dos bens objeto do contrato em questão.

RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora. Dr(a). HANS CHRISTIAN VON BLUCHER, pela parte RECORRENTE: SCHELLING ANLAGENBAU GMBH.

Brasília (DF), 20 de agosto de 2019(Data do Julgamento)

MINISTRA NANCY ANDRIGHI

Relatora

RELATÓRIO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):

Cuida-se de recurso especial interposto por SCHELLING ANLAGENBAU GMBH, com fundamento nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional.

Ação: recuperação judicial da sociedade DITÁLIA MÓVEIS INDUSTRIAL LTDA.

Decisão: acolheu parcialmente a impugnação apresentada pela recorrente, tão somente para esclarecer que a importância declarada se refere a créditos em euros.

Acórdão: negou provimento ao agravo de instrumento interposto pela recorrente.

Embargos de declaração: interpostos pela recorrente, foram rejeitados.

Recurso especial: alega violação dos artigos 521, 522, 524 e 1.275 do Código Civil; artigo 49, § 3º, da Lei 11.101/05; e artigo 1.022 do Código de Processo Civil; bem como dissídio jurisprudencial. Além de negativa de prestação jurisdicional, sustenta, em síntese, que, tratando-se de contrato de compra e venda com reserva de domínio, o crédito detido pelo alienante do bem não se sujeita aos efeitos da recuperação judicial da compradora, devendo prevalecer o direito de propriedade sobre a coisa, independentemente de seu registro ter ou não se perfectibilizado. Afirma que, na hipótese dos autos, o registro possui mera função declaratória, e não constitutiva do negócio jurídico.

É o relatório.

VOTO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):

O propósito recursal, além de verificar a ocorrência de negativa de prestação jurisdicional, é definir se os créditos titularizados pela recorrente, concernentes a contrato de compra e venda com reserva de domínio celebrado com a recorrida, estão ou não sujeitos aos efeitos da recuperação judicial desta.

1. DA NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL

Da análise do acórdão impugnado, verifica-se que a prestação jurisdicional dada corresponde àquela efetivamente objetivada pelas partes, sem vício a ser sanado. O Tribunal a quo se pronunciou de maneira a abordar todos os aspectos fundamentais da controvérsia, dentro dos limites que lhe são impostos por lei.

2. DA COMPRA E VENDA COM RESERVA DE DOMÍNIO

O contrato de compra e venda com cláusula de reserva de domínio é aquele em que o vendedor preserva a propriedade da coisa alienada consigo até que ocorra o pagamento integral do preço estipulado.

Tal mecanismo funciona para o alienante como garantia do adimplemento total, pois a propriedade do bem somente é transferida para o comprador quando da ocorrência da quitação.

Exsurge desse tipo negocial, portanto, uma maior eficiência econômica do que num contrato de compra e venda tradicional: a garantia conferida ao alienante tende a implicar juros e encargos financeiros menores a serem suportados pelo comprador.

O desdobramento da posse e da propriedade, inerente a essa espécie de avença, faz com que, estrutural e funcionalmente, o negócio jurídico em análise se aproxime bastante do instituto da propriedade fiduciária, embora mantenha, com esse, diferenças evidentes, sobretudo porque a reserva de domínio é relação que se circunscreve tão somente às pessoas do vendedor e do comprador, inexistindo a figura do financiador. Sobre o tema, oportuna a lição de FARIAS e ROSENVALD:

A reserva de domínio se aproxima bastante do modelo estabelecido pela propriedade fiduciária (CC, arts. 1.361 a 1.368), como uma espécie de negócio fiduciário. O desdobramento da posse e da propriedade, condicionado ao pagamento do preço, é comum em ambas as figuras (propriedade fiduciária e cláusula de reserva de domínio), propiciando uma circulação massiva de propriedade mobiliária. Todavia, algumas distinções são evidentes. Em primeiro lugar, a propriedade fiduciária gera a imediata transferência da titularidade do fiduciante (alienante) para o credor fiduciário (adquirente), como premissa para que o vendedor possa imediatamente receber o preço e se satisfazer. Ou seja, o vendedor não integra a relação jurídica de direito real, restringindo-se o negócio fiduciário ao comprador e ao financiador, que recebe a propriedade resolúvel da coisa móvel como garantia do pagamento realizado ao vendedor. Já na reserva de domínio, a relação jurídica se circunscreve ao vendedor e ao comprador, pois o próprio alienante realiza o financiamento da aquisição em prestações, subordinando-se a passagem da propriedade a uma condição suspensiva.

(FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil, vol. 4. 8ª ed. Salvador: JusPodivm, 2018, pp. 736/737)

3. DOS EFEITOS DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL SOBRE CRÉDITOS REFERENTES A CONTRATOS COM RESERVA DE DOMÍNIO

A Lei 11.101/05 (Lei de Falência e Recuperação de Empresas LFRE), em seu art. 49, caput, dispõe que todos os créditos existentes na data do pedido de recuperação judicial estão sujeitos aos efeitos do processo de soerguimento.

O parágrafo 3º do mesmo dispositivo, contudo, excetua alguns credores da incidência da regra geral, preservando os direitos de propriedade sobre os bens relacionados aos respectivos créditos.

Dentre os beneficiados pela norma em questão figuram os credores titulares da posição de proprietário fiduciário, de arrendador mercantil e de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio (hipótese dos autos).

Eis a letra da lei, no que interessa à espécie:

Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.

[…]

§ 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.

É patente, nesse contexto, a intenção positivada pelo legislador no sentido de que o credor de empresa em recuperação judicial que tenha com ela firmado contrato com reserva de domínio não se sujeita aos efeitos do processo de soerguimento.

Quanto ao ponto, é também pacífica a jurisprudência deste Tribunal:

AGRAVO INTERNO NO CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. BUSCA E APREENSÃO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. BENS ESSENCIAIS À ATIVIDADE EMPRESARIAL. EXCEPCIONAL SUBMISSÃO AOS EFEITOS DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL.

1. O credor titular da posição de proprietário fiduciário ou detentor de reserva de domínio de bens móveis ou imóveis não se sujeita aos efeitos da recuperação judicial (Lei 11.101/2005, art. 49, § 3º), ressalvados os casos em que os bens gravados por garantia de alienação fiduciária cumprem função essencial à atividade produtiva da sociedade recuperanda. Precedentes.

2. Agravo interno não provido.

(AgInt no AgInt no AgInt no CC 149.561/MT, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/08/2018, DJe 24/08/2018)

A questão que se coloca, todavia, diz respeito à necessidade ou não de registro da avença, junto ao Cartório competente, para fins de se viabilizar o reconhecimento da extraconcursalidade do crédito titularizado pelo alienante da coisa cujo domínio lhe foi contratualmente reservado até o adimplemento da contraprestação pelo comprador.

Isso porque, segundo disposição expressa do art. 522 do CC/02, a cláusula de reserva de domínio “depende de registro no domicílio do comprador para valer contra terceiros”.

Muito embora não haja precedentes do STJ tratando especificamente da matéria objeto deste recurso, verifica-se que esta 3ª Turma, em situações análogas – versando sobre direitos de crédito cedidos fiduciariamente –, já firmou posição no sentido da desnecessidade do registro para sua exclusão dos efeitos da recuperação judicial do devedor (REsp 1.412.529/SP, DJe 2/3/2016 e REsp 1.592.647/SP, DJe 28/11/2017).

E, como as razões que conduziram à conclusão alcançada pelos julgadores naquelas hipóteses se aplicam, em sua essência, à espécie em exame – dadas as semelhanças estrutural e funcional dos negócios jurídicos de que tratam ambas as situações litigiosas, bem como em razão da unicidade do regramento legal acerca dos efeitos do processo de soerguimento sobre tais relações jurídicas –, impõe-se conferir-lhes tratamento isonômico.

De se ressaltar que, tanto no que concerne à cessão fiduciária de créditos como quanto à venda com reserva de domínio, o registro do contrato não é requisito constitutivo do negócio jurídico respectivo. Vale dizer, o registro tem mera função declaratória, conferindo ao pacto eficácia contra terceiros, conforme dispõem os arts. 129 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73) e o art. 522, parte final, do Código Civil.

Para os fins da norma do § 3º do art. 49 da LFRE, portanto, não se pode exigir que o contrato que contenha a cláusula de reserva de domínio seja registrado no cartório competente para, só então, ter seu objeto preservado dos efeitos da recuperação judicial da devedora.

O dispositivo precitado exige, para não sujeição dos créditos detidos pelo proprietário em contrato com reserva de domínio, apenas e tão somente que ele ostente tal condição (de proprietário), o que decorre da própria natureza do contrato entabulado, consoante se extrai da interpretação das normas dos arts. 521 e 524 do CC/02.

Nessa espécie de negócio jurídico, impende ressaltar, a mera ausência de registro perante o Cartório competente não implica transferência ou perda da propriedade pelo alienante enquanto não cumprida a condição a que se obrigou o comprador (adimplemento do preço).

O registro, na verdade, se impõe como requisito tão somente para fins de publicidade, ou seja, para que a reserva de domínio seja oponível a terceiros que, por alguma circunstância, possam ser prejudicados diretamente pela ausência de conhecimento da existência de tal cláusula.

É o que se pode verificar, a título ilustrativo, com aquele que venha a adquirir, do comprador, o bem cujo domínio encontra-se reservado a outrem (o que viria a caracterizar venda a non domino). Ou, ainda, com aqueles que pretendam a aplicação, em juízo, de medidas constritivas sobre a coisa que serve de objeto ao contrato.

Ocorre, todavia, que, no âmbito da recuperação judicial do comprador, os credores deste não se enquadram em quaisquer das situações elencadas, pois entre eles nada foi estipulado acerca dos bens objeto do contrato em questão.

Ademais, considerando que, como explicitado linhas atrás, a manutenção da titularidade do bem na pessoa do alienante é decorrência natural da natureza jurídica do contrato de venda com reserva de domínio, este continua a figurar, perante todos, como proprietário da coisa. Apenas essa titularidade não se perfaz de maneira absoluta, dada a condição suspensiva inerente ao objetivo do negócio entabulado.

Desse modo, entender que o patrimônio da recorrente, apenas por estar na posse direta de empresa em recuperação judicial, deva ficar indisponível e submetido aos efeitos do processo de soerguimento equivaleria a subverter o direito de propriedade constitucionalmente assegurado a qualquer pessoa (art. 5º, XXII).

Nesse contexto, está a exigir reforma o acórdão recorrido.

4. CONCLUSÃO

Forte nessas razões, DOU PROVIMENTO ao recurso especial, para determinar que os créditos referentes aos contratos de venda com reserva de domínio firmados pela recorrente não se submetam aos efeitos da recuperação judicial da recorrida. /

Dados do processo:

STJ – REsp nº 1.725.609 – Rio Grande do Sul – 3ª Turma – Rel. Min. Nancy Andrighi – DJ 22.08.2019

Fonte: INR Publicações

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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