RECURSO ESPECIAL Nº 1.595.832 – SC (2016/0091108-4)
RELATOR : MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO
RECORRENTE : CLEONICE KUHNEN
ADVOGADOS : EDER DEODATO FLÔR – SC025800
DIOGO JOÃO DA LUZ – SC028319
RECORRIDO : CAIXA ECONÔMICA FEDERAL
ADVOGADO : WILSON DE SOUZA MALCHER E OUTRO(S) – RS076395B
EMENTA
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO E NULIDADE DA CONSOLIDAÇÃO DA PROPRIEDADE. IMÓVEL INDICADO COMO GARANTIA DE CONTRATO DE MÚTUO COM CLÁUSULA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. PROTEÇÃO DO BEM DE FAMÍLIA. DESCABIMENTO. NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL REQUERIDA POR PESSOA JURÍDICA DIVERSA DO CREDOR FIDUCIÁRIO. IRREGULARIDADE INSANÁVEL. NULIDADE RECONHECIDA. AUSÊNCIA DE CONSTITUIÇÃO EM MORA DO DEVEDOR.
1. A proteção legal conferida ao bem de família pela Lei n. 8.009/90 não pode ser afastada por renúncia do devedor ao privilégio, pois é princípio de ordem pública, prevalente sobre a vontade manifestada (AgRg nos EREsp 888.654/ES, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Segunda Seção, julgado em 14.03.2011, DJe 18.03.2011).
2. Nada obstante, à luz da jurisprudência dominante das Turmas de Direito Privado: (a) a proteção conferida ao bem de família pela Lei n. 8.009/90 não importa em sua inalienabilidade, revelando-se possível a disposição do imóvel pelo proprietário, inclusive no âmbito de alienação fiduciária; e (b) a utilização abusiva de tal direito, com evidente violação do princípio da boa-fé objetiva, não deve ser tolerada, afastando-se o benefício conferido ao titular que exerce o direito em desconformidade com o ordenamento jurídico.
3. No caso dos autos, não há como afastar a validade do acordo de vontades firmado entre as partes, inexistindo lastro para excluir os efeitos do pacta sunt servanda sobre o contrato acessório de alienação fiduciária em garantia, afigurando-se impositiva, portanto, a manutenção do acórdão recorrido no ponto, ainda que por fundamento diverso.
4. De outro lado, é certo que, para que ocorra a consolidação da propriedade fiduciária em nome do credor, o devedor fiduciante deverá ser regularmente notificado, ato que, na alienação fiduciária de imóvel, acarreta diversos possíveis efeitos jurídicos: (a) a purgação da mora, com a retomada do contrato (§ 5º do artigo 26); (b) caso não haja pagamento, o oficial do cartório de registro certificará o evento ao credor para que adote as medidas necessárias à consolidação da propriedade em seu favor; (c) a reintegração de posse e posterior leilão do imóvel; e (d) enquanto não for extinta a propriedade fiduciária resolúvel, persistirá a posse direta do devedor fiduciante.
5. A notificação em questão, para além das consequências naturais da constituição do devedor fiduciante em mora, permite, em não havendo a purgação e independentemente de processo judicial (opera-se formalmente pela via registrária cartorial), o surgimento do direito de averbar na matrícula do imóvel a consolidação da propriedade em nome do credor notificante, isto é, do fiduciário.
6. Sob tal ótica, destaca-se a exegese perfilhada em julgado da Quarta Turma no sentido de que “a repercussão da notificação é tamanha que qualquer vício em seu conteúdo é hábil a tornar nulos seus efeitos, principalmente quando se trata de erro crasso, como há na troca da pessoa notificante” (REsp 1.172.025/PR, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 07.10.2014, DJe 29.10.2014).
7. Na espécie, revela-se evidente a existência de defeito na indicação do credor fiduciário (notificante), pois, à época do encaminhamento da notificação extrajudicial (outubro de 2013), a Caixa Econômica Federal não titularizava qualquer crédito em face da devedora fiduciante (notificada), cenário que somente veio a ser alterado em janeiro de 2014, data em que ocorrida a cessão do crédito pertencente a Brazilian Mortgages Companhia Hipotecária (credora originária).
8. Sobre a data da cessão, importante assinalar que, nos termos das decisões proferidas nos autos (indeferitória de tutela antecipada e sentença), a Caixa Econômica Federal não logrou demonstrar que o negócio jurídico teria sido celebrado em momento anterior a janeiro de 2014.
9. Assim, acabou por ser ineficaz a notificação extrajudicial, que, ao cientificar a devedora fiduciante sobre débito pelo qual estaria em mora, apontou pessoa jurídica diversa como credor fiduciário, o que se deu sem respaldo em negócio jurídico contemporâneo, retratando, assim, relação jurídica que não correspondia com a realidade dos fatos, o que invalida a consolidação da propriedade do imóvel.
10. Recurso especial parcialmente provido.
ACÓRDÃO – Decisão selecionada e originalmente divulgada pelo INR –
Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça acordam, por unanimidade, dar parcial provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Raul Araújo, Maria Isabel Gallotti e Marco Buzzi (Presidente) votaram com o Sr. Ministro Relator.
Impedido o Sr. Ministro Antonio Carlos Ferreira.
Brasília (DF), 29 de outubro de 2019(Data do Julgamento)
MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO
Relator
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):
1. Cleonice Kuhnen ajuizou, em 03.10.2014, ação em face da Caixa Econômica Federal, postulando a declaração de nulidade da consolidação da propriedade de bem imóvel (apontado como bem de família), ao argumento de que o procedimento de constituição em mora, previsto no artigo 26 da Lei n. 9.514/97, teria sido deflagrado por terceiro não detentor do crédito. Requereu, ainda, a reabertura do prazo de 15 (quinze) dias para purgação da mora, a fim de viabilizar a continuidade e a manutenção do contrato de financiamento no qual constituída a alienação fiduciária.
Na inicial, a autora afirmou que, em agosto de 2005, adquiriu o imóvel localizado na Rua Adelina Zierke, Bairro Águas Claras, no Município de Brusque – SC, com área de 296,40 m², sem benfeitorias, matriculado no Registro de Imóveis da Comarca de Brusque sob o nº 47.079, pelo valor de R$ 7.000,00 (sete mil reais), pagos com recursos próprios.
Aduziu que, em julho de 2006, objetivando concretizar o sonho da casa própria, firmou contrato de financiamento habitacional com a Caixa Econômica Federal para viabilizar a construção no terreno adquirido. Narrou que tal construção custou R$ 84.727,80 (oitenta e quatro mil, setecentos e vinte e sete reais e oitenta centavos), sendo 44.727,80 (quarenta e quatro mil, setecentos e vinte e sete reais e oitenta centavos) pagos com recursos próprios e R$ 40.000,00 (quarenta mil reais) mediante o financiamento com a instituição financeira, tendo sido constituída alienação fiduciária em garantia.
Afirmou que, após a conclusão da obra, iniciaram-se os pagamentos do financiamento, sendo que, em 08.12.2011, a autora efetuou a liquidação antecipada do contrato com a Caixa, pelo valor de R$ 32.407,59 (trinta e dois mil, quatrocentos e sete reais e cinquenta e nove centavos), o que resultou no cancelamento da alienação fiduciária constante da matrícula do imóvel.
Narrou que, em 11.04.2012, mediante “instrumento particular de financiamento com constituição de alienação fiduciária em garantia, emissão de cédula de crédito imobiliário e outras avenças” com Brazilian Mortgages Companhia Hipotecária, foi liberado o valor de R$ 103.000,00 (cento e três mil reais), pactuado o respectivo pagamento em 240 parcelas mensais de 1.354,27 (mil, trezentos e cinquenta e quatro reais e vinte e sete centavos), iniciadas em 28.04.2012. Sustentou que, em decorrência de problemas de saúde (severa crise depressiva), não conseguiu adimplir a parcela vencida em março de 2013 nem a de julho e dos meses seguintes do referido ano.
Consignou que, em 23.10.2013, recebeu notificação do Ofício de Registro de Imóveis da Comarca de Brusque, comunicando que teria o prazo de 15 dias para purgar a mora com a Caixa Econômica Federal. Afirmou que, como nada devia à referida instituição financeira (pois o financiamento para construção de sua casa havia sido liquidado em 08.12.2011), procurou uma agência bancária, tendo-lhe sido informado que nada era devido. Aduziu que também fez contato com o SAC da Brazilian Mortgages e, posteriormente, com o respectivo setor jurídico, tendo recebido a mesma informação de inexistência de dívida.
Alegou que “os meses foram passando sem que nenhuma resposta ou solução fosse dada à requerente” (fl. 6), pois, apesar da referida notificação extrajudicial apontando a dívida do financiamento, tanto a Caixa quanto a Brazilian Mortgages insistiam que nada lhes era devido.
Informou que, em 29.09.2014, foi surpreendida, contudo, com “a pior notícia de sua vida” (fl. 6): seu único imóvel estava sendo anunciado para leilão público (extrajudicial) da Caixa nos dias 06.10.2014 (1ª praça) e 21.10.2014 (2ª praça).
Aduziu que, após ter obtido auxílio jurídico e providenciado “a ficha matrícula atualizada do imóvel em debate” (fl. 6), soube que, em 29.01.2014, a Brazilian Mortgages cedera seu direito de crédito à Caixa Econômica Federal. Afirmou não ter sido, em momento algum, cientificada da transação, o que afronta o artigo 290 do Código Civil.
Assinalou, outrossim, que, malgrado tenha sido notificada extrajudicialmente para purgar a mora em outubro de 2013, com a indicação da Caixa Econômica como credora fiduciária, a referida cessão do crédito somente ocorreu em 29.01.2014, “o que caracteriza no mínimo a irregularidade da aludida notificação, pois realizada por pessoa não detentora de qualquer direito de crédito” à época (fl. 7).
Consignou que outro aspecto causador de perplexidade “se refere à consolidação da propriedade do único imóvel da requerente, ou seja, do chamado e protegido bem de família, em decorrência de simples mútuo com alienação fiduciária em garantia”, esclarecendo que o financiamento celebrado com a Brazilian Mortgages (posteriormente cedido à Caixa Econômica) não o foi para a aquisição ou a construção do imóvel.
Requereu a antecipação de tutela para o fim de suspender os leilões extrajudiciais do imóvel, bem como autorizar a consignação das parcelas vincendas, a partir de 28.10.2014, no valor de R$ 1.354,27 (mil, trezentos e cinquenta e quatro reais e vinte e sete centavos), sendo instada a ré a apresentar o cálculo referente às parcelas vencidas até a data do ajuizamento da demanda, viabilizando-se, assim, o depósito judicial dos respectivos valores. A final, a autora pleiteou: (i) o reconhecimento da ausência de constituição em mora de que trata o artigo 26 da Lei n. 9.514/97, uma vez requerida por pessoa não detentora do crédito à época (no caso, a Caixa Econômica Federal), para, ato contínuo, ser anulada a consolidação de propriedade do imóvel, de modo a reabrir o prazo de 15 (quinze) dias para a purgação da mora representada pelas parcelas em atraso, viabilizando-se a continuidade e a manutenção do contrato de financiamento, permanecendo a requerente com seu imóvel e, ao mesmo tempo, garantindo-se que a cessionária venha a receber o seu crédito; (ii) a anulação da “AV.10-47079, onde foi consolidada a propriedade do bem de família da requerente em favor da CEF, retornando as partes ao status quo, levantando-se o ônus da alienação fiduciária incidente sobre o imóvel em debate” (fl. 16); e (iii) a declaração da quitação das parcelas a serem consignadas em juízo na forma legal, reconhecendo-se a purgação da mora.
Em 03.10.2014 (antes, portanto, dos leilões extrajudiciais aprazados), o magistrado de piso indeferiu a tutela antecipada requerida pela autora (fls. 85/88).
Em 30.07.2015, sobreveio sentença de improcedência, considerando a regularidade das providências adotadas pela Caixa Econômica Federal para a execução extrajudicial do bem objeto da alienação fiduciária em garantia, bem como a incidência da exceção legal à expropriação de bem de família inserta no inciso V do artigo 3º da Lei n. 8.009/90 (execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar). Os honorários advocatícios foram arbitrados em 10% do valor atribuído à causa (R$ 146.422,45 em 03.10.2014), atualizado pelo IPCA-E.
Interposta apelação pela autora, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região negou provimento ao reclamo, nos termos da seguinte ementa:
ADMINISTRATIVO. SISTEMA FINANCEIRO DE HABITAÇÃO. AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO E NULIDADE DA CONSOLIDAÇÃO DA PROPRIEDADE. CONTRATO DE FINANCIAMENTO IMOBILIÁRIO COM GARANTIA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. BEM DE FAMÍLIA. IMPENHORABILIDADE. PURGAÇÃO DA MORA. BEM ARREMATADO. IMPOSSIBILIDADE.
– É expressamente afastada a impenhorabilidade do imóvel bem de família nos casos em que foi dado em garantia real pela própria entidade familiar (art. 3° da Lei n° 8.009/90).
– Na alienação fiduciária de coisa imóvel, caracterizado o inadimplemento contratual resta consolidada a propriedade em nome do fiduciário, com a extinção da dívida, nos termos do artigo 27, parágrafo 5º, da Lei nº 9.514/97.
– Segundo orientação desta Turma, como há previsão expressa na Lei 9.514/97 (inciso II do art. 39) no sentido de que ‘são aplicáveis as disposições dos arts. 29 a 41 do Decreto-lei 70, de 21 de novembro de 1966′, é aplicável supletivamente à alienação fiduciária de imóvel o artigo 34 do referido Decreto-Lei.
– Segundo precedentes do Superior Tribunal de Justiça, é possível ao devedor purgar a mora em 15 (quinze) dias após a intimação prevista no art. 26, § 1º, da Lei nº 9.514/1997, ou a qualquer momento, até a assinatura do auto de arrematação, mediante aplicação subsidiária do Decreto-Lei nº 70/1966 às operações de financiamento imobiliário.
– No entanto, noticiada nos autos a arrematação do bem, inclusive com a existência de ação de imissão de posse movida pela arrematante na Justiça Estadual, torna-se inviável a purgação da mora com a finalidade de assegurar a manutenção da apelante na posse de seu imóvel.
Opostos embargos de declaração pela demandante, a Corte local deu parcial provimento ao recurso integrativo, apenas para fins de prequestionamento dos dispositivos legais invocados pela embargante.
Nas razões do especial, fundado nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, a ora recorrente aponta, além de divergência jurisprudencial, violação dos artigos 535 e 648 do CPC de 1973; 3º, inciso V, da Lei n. 8.009/90; 34 do Decreto-Lei 70/66; 26, § 1º, 33 e 39, inciso II, da Lei n. 9.514/97.
Em resumo, sustenta: (i) negativa de prestação jurisdicional, por não ter sido sanada a omissão suscitada nos aclaratórios; (ii) a obrigatória observância da proteção legal do bem de família indicado como garantia de contrato de mútuo não utilizado para aquisição, reforma ou construção do imóvel; (iii) que a purgação da mora, requerida judicialmente antes do leilão do imóvel, pode ser deferida mesmo após a assinatura do auto de arrematação, pois a autora não pode ser penalizada pela morosidade do Judiciário; e (iv) a inocorrência de sua regular constituição em mora, tendo em vista a nulidade da notificação extrajudicial pleiteada por pessoa jurídica diversa do credor fiduciário.
Apresentadas contrarrazões ao apelo extremo (fls. 388/391), que recebeu crivo positivo de admissibilidade na origem.
Às fls. 407/408, a recorrente pleiteou tutela de urgência, objetivando fosse determinada a imediata averbação da existência da presente demanda junto à matrícula 47.079 do Registro de Imóveis da Comarca de Brusque – SC.
Às fls. 410/412, concedi a liminar pleiteada, determinando a averbação apontada pela autora.
É o relatório.
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):
2. A preliminar de negativa de prestação jurisdicional não comporta acolhida.
Isso porque, embora rejeitados os embargos de declaração, verifica-se que a controvérsia sobre a regularidade da execução extrajudicial deflagrada pela Caixa Econômica Federal, no tocante a mútuo com garantia de alienação fiduciária de imóvel, foi devidamente enfrentada pelo Tribunal de origem, que emitiu pronunciamento de forma fundamentada, ainda que em sentido contrário ao defendido pela recorrente.
Desse modo, não há falar em ofensa ao artigo 535 do CPC de 1973.
3. No mérito, sobressaem três controvérsias: (i) se a proteção legal do bem de família alcança ou não o imóvel indicado como garantia de contrato de mútuo com cláusula de alienação fiduciária, ainda que o empréstimo não tenha sido utilizado para aquisição, reforma ou construção do bem; (ii) se é válida a notificação extrajudicial (prevista no § 1º do artigo 26 da Lei n. 9.514/97) requerida por pessoa jurídica diversa do credor fiduciário e, consequentemente, configurar-se-á ou não a constituição em mora do devedor, apta a ensejar a consolidação da propriedade do imóvel em nome do credor; e (iii) se a purgação da mora (artigo 34 do Decreto-Lei n. 70/66), requerida judicialmente antes do leilão do imóvel, pode ser deferida mesmo após a assinatura do auto de arrematação, quando a demora na apreciação definitiva do pedido for imputável ao Judiciário.
3.1. Sobre a alegada impossibilidade de consolidação da propriedade de bem de família dado, voluntariamente, em garantia de alienação fiduciária inserta em contrato de mútuo firmado com instituição financeira, o Tribunal de origem assim se manifestou:
DA IMPENHORABILIDADE
Sustenta a parte autora que o imóvel sobre o qual recaiu a execução da dívida constitui bem de família, pelo que, mesmo gravado por alienação fiduciária, reveste-se de impenhorabilidade, nos termos da Lei nº 8.009/90.
Sobre o ponto, tenho que o magistrado singular empregou o entendimento adequado ao caso, pelo que transcrevo pertinente trecho da sentença:
‘(…)
Ademais, afasto a alegação de impenhorabilidade aduzida pela autora como óbice à consolidação da propriedade em favor da CEF.
Isto porque, no que se refere especificamente à caracterização do imóvel como bem de família, a Lei nº 8.009/90 estabeleceu a impenhorabilidade do bem de família, incluído o imóvel destinado à moradia do casal ou da entidade familiar, a teor do disposto no art. 1º, in verbis:
Art. 1º. O imóvel residencial próprio do casal ou da entidade familiar é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.
Como visto, o dispositivo se refere à penhora judicial – o que não é o caso dos autos, em que houve a execução extrajudicial com base em garantia dada em contrato de mútuo em dinheiro.
De qualquer sorte, o art. 3º, do referido diploma legal, por sua vez, prescreve que a impenhorabilidade do bem de família resta afastada nas seguintes hipóteses:
Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
I – em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias;
II – pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;
III – pelo credor de pensão alimentícia;
IV – para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;
V – para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;
VI – por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.
VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. (Incluído pela Lei nº 8.245, de 1991)
Na hipótese dos autos, diante de toda a fundamentação ora expressa, entendo aplicável ao caso a exceção do inciso V do dispositivo descrito.
Ocorre que a hipoteca caracteriza-se como garantia real incidente sobre bens imóveis de propriedade do devedor, estando o mesmo alienado fiduciariamente em garantia ao empréstimo realizado. De outro lado, como referido, a própria entidade familiar residente no imóvel foi a responsável pelo oferecimento do bem em garantia, afastando a impenhorabilidade do imóvel em tela, na medida em que, como mencionado, foi dado em garantia real pela própria entidade familiar. Em assim sendo, se mostra manifestamente inaplicável o disposto no art. 1º da Lei nº 8.009/90 ao caso dos autos.
(…)’
Com efeito, a decisão se mostra consentânea com a jurisprudência pacífica desta Corte, no sentido de rechaçar a alegação de impenhorabilidade de bem dado como garantia em contrato com cláusula de alienação fiduciária.
(…)
Como de sabença, a Lei n. 8.009/1990, norma de ordem pública, instituiu a impenhorabilidade do bem de família como instrumento de tutela do direito fundamental à moradia do núcleo familiar (abrangidas as pessoas solteiras, separadas e viúvas, nos termos da Súmula 364/STJ) e, portanto, indispensável à composição de um mínimo existencial para uma vida digna de seus integrantes.
O artigo 1º da referida lei assim dispõe:
Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.
Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados. (grifei)
O princípio da dignidade da pessoa humana, um dos pilares da República Federativa do Brasil (artigo 1º da Constituição de 1988), constitui o fundamento de validade da norma de impenhorabilidade, limitadora do direito fundamental do credor à tutela executiva.
Destacada a dicção legal de que o bem de família não responde por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza (salvo nas hipóteses previstas em lei), questiona-se a validade da pactuação da alienação fiduciária em garantia de imóvel de moradia em contrato de mútuo (cédula de crédito imobiliário), na hipótese em que inexistente qualquer alegação de vício de consentimento do beneficiário da proteção.
Nesse passo, importante assinalar, de início, que o bem de família legal (proteção estatal disciplinada pela Lei 8.009/90) apresenta características diferentes do bem de família voluntário ou convencional (artigos 1.711 a 1.722 do Código Civil).
Como bem assinala Milton Paulo de Carvalho Filho, o bem de família voluntário é “aquele cuja destinação decorre da vontade de seu instituidor, integrante da própria família, visando à proteção do patrimônio contra dívidas” (Código civil comentado: doutrina e jurisprudência. Coordenador Cezar Peluso. 9ª ed. Barueri, SP: Manole, 2015, p. 1.900).
O bem de família voluntário (Código Civil) apresenta como características o fato de que: “i) depende de ato voluntário do titular, por escritura pública, testamento ou doação; ii) gera inalienabilidade e impenhorabilidade; iii) refere-se ao bem imóvel onde a família está residindo; e iv) tem duração limitada à vida dos instituidores ou até a maioridade civil dos filhos” (FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. Volume 1. 11ª ed. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 546) (grifei).
Sobre a impenhorabilidade e inalienabilidade que gravam o bem de família voluntário, doutrina abalizada assim pontua:
É lícito afirmar, a partir da intelecção de bem de família voluntário, instituído por meio de registro no Cartório de Imóveis (CC, art. 1.714), que os seus efeitos são a impenhorabilidade e a inalienabilidade. Ou seja, instituído o bem de família, através do procedimento público no Cartório Imobiliário, torna-se impenhorável e inalienável, restringindo sua comerciabilidade. (FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. Volume 1. 11ª ed. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 547)
Nesse aspecto, sobressai a diferença marcante entre o bem de família voluntário e o legal: é que “o bem de família legal, regulado pela Lei 8.009/90, gera, apenas, a impenhorabilidade, não respondendo pelas dívidas civis, trabalhistas, comerciais, fiscais, previdenciárias e de qualquer natureza”, não se revelando “crível pudesse a norma legal impedir a livre disposição (alienação) do bem por parte de seu titular” (FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. Volume 1. 11ª ed. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 558) (grifei).
É certo que há precedentes nesta Corte no sentido de que a proteção legal conferida ao bem de família pela Lei 8.009/90 não pode ser afastada por renúncia do devedor ao privilégio, pois é princípio de ordem pública, prevalente sobre a vontade manifestada (AgRg nos EREsp 888.654/ES, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Segunda Seção, julgado em 14.03.2011, DJe 18.03.2011).
Nada obstante, na linha de outros julgados, ficou assentado que, como o bem de família legal não gera inalienabilidade, sua disposição pelo proprietário é possível, inclusive no âmbito de alienação fiduciária, em que a propriedade resolúvel do imóvel é transferida ao credor do empréstimo como garantia do adimplemento da obrigação principal assumida pelo devedor:
DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL RECONHECIDO COMO BEM DE FAMÍLIA. POSSIBILIDADE. CONDUTA QUE FERE A ÉTICA E A BOA-FÉ.
1. Ação declaratória de nulidade de alienação fiduciária de imóvel reconhecido como bem de família.
(…)
3. O propósito recursal é dizer se é válida a alienação fiduciária de imóvel reconhecido como bem de família.
4. A questão da proteção indiscriminada do bem de família ganha novas luzes quando confrontada com condutas que vão de encontro à própria ética e à boa-fé, que devem permear todas as relações negociais.
5. Não pode o devedor ofertar bem em garantia que é sabidamente residência familiar para, posteriormente, vir a informar que tal garantia não encontra respaldo legal, pugnando pela sua exclusão (vedação ao comportamento contraditório).
6. Tem-se, assim, a ponderação da proteção irrestrita ao bem de família, tendo em vista a necessidade de se vedar, também, as atitudes que atentem contra a boa-fé e a eticidade, ínsitas às relações negociais.
7. Ademais, tem-se que a própria Lei 8.009/90, com o escopo de proteger o bem destinado à residência familiar, aduz que o imóvel assim categorizado não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, mas em nenhuma passagem dispõe que tal bem não possa ser alienado pelo seu proprietário.
8. Não se pode concluir que o bem de família legal seja inalienável e, por conseguinte, que não possa ser alienado fiduciariamente por seu proprietário, se assim for de sua vontade, nos termos do art. 22 da Lei 9.514/97.
9. Recurso especial conhecido e não provido. (REsp 1.560.562/SC, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 02.04.2019, DJe 04.04.2019) (grifei)
DIREITO PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE CLÁUSULA CONTRATUAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. NÃO INDICAÇÃO. SÚMULA 284/STF. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULA 211/STJ. CONTRATO DE FACTORING. NULIDADE. QUESTÃO PRECLUSA. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL RECONHECIDO COMO BEM DE FAMÍLIA. POSSIBILIDADE. CONDUTA QUE FERE A ÉTICA E A BOA-FÉ.
1. Ação declaratória de nulidade de cláusula contratual, em razão de contrato de fomento mercantil firmado entre as partes.
2. O propósito recursal é, a par da análise da ocorrência de negativa de prestação jurisdicional, definir se é nulo o contrato de fomento mercantil firmado entre as partes, bem ainda se é válida a alienação fiduciária de imóvel reconhecido como bem de família.
(…)
6. A questão da proteção indiscriminada do bem de família ganha novas luzes quando confrontada com condutas que vão de encontro à própria ética e à boa-fé, que devem permear todas as relações negociais.
7. Não pode o devedor ofertar bem em garantia que é sabidamente residência familiar para, posteriormente, vir a informar que tal garantia não encontra respaldo legal, pugnando pela sua exclusão (vedação ao comportamento contraditório).
8. Tem-se, assim, a ponderação da proteção irrestrita ao bem de família, tendo em vista a necessidade de se vedar, também, as atitudes que atentem contra a boa-fé e a eticidade, ínsitas às relações negociais.
9. Na hipótese dos autos, não há qualquer alegação por parte dos recorridos de que houve vício de vontade no oferecimento do imóvel em garantia, motivo pelo qual não se pode extrair a sua invalidade.
10. Ademais, tem-se que a própria Lei 8.009/90, com o escopo de proteger o bem destinado à residência familiar, aduz que o imóvel assim categorizado não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, mas em nenhuma passagem dispõe que tal bem não possa ser alienado pelo seu proprietário.
11. Não se pode concluir que o bem de família legal seja inalienável e, por conseguinte, que não possa ser alienado fiduciariamente por seu proprietário, se assim for de sua vontade, nos termos do art. 22 da Lei 9.514/97.
12. Reconhecida, na espécie, a validade da cláusula que prevê a alienação fiduciária do bem de família, há que se admitir que o imóvel, após a consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário, seja vendido, nos termos do art. 27 da já referida lei.
13. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, provido.
(REsp 1.677.015/SP, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. p/ Acórdão Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 28.08.2018, DJe 06.09.2018)
No mesmo sentido, mutatis mutandis, essa Quarta Turma, recentemente, adotou o entendimento de que, “sendo a alienante pessoa dotada de capacidade civil, que livremente optou por dar seu único imóvel, residencial, em garantia a um contrato de mútuo” (…), “não se admite a proteção irrestrita do bem de família se esse amparo significar o alijamento da garantia após o inadimplemento do débito, contrariando a ética e a boa-fé, indispensáveis em todas as relações negociais” (REsp 1.559.348/DF, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 18.06.2019, DJe 05.08.2019).
Eis a ementa do referido julgado:
RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC/1973. NÃO OCORRÊNCIA. INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. TRANSMISSÃO CONDICIONAL DA PROPRIEDADE. BEM DE FAMÍLIA DADO EM GARANTIA. VALIDADE DA GARANTIA. VEDAÇÃO AO COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO.
(…)
3. A jurisprudência desta Corte reconhece que a proteção legal conferida ao bem de família pela Lei n. 8.009/90 não pode ser afastada por renúncia do devedor ao privilégio, pois é princípio de ordem pública, prevalente sobre a vontade manifestada.
4. A regra de impenhorabilidade aplica-se às situações de uso regular do direito. O abuso do direito de propriedade, a fraude e a má-fé do proprietário devem ser reprimidos, tornando ineficaz a norma protetiva, que não pode tolerar e premiar a atuação do agente em desconformidade com o ordenamento jurídico.
5. A propriedade fiduciária consiste na transmissão condicional daquele direito, convencionada entre o alienante (fiduciante), que transmite a propriedade, e o adquirente (fiduciário), que dará ao bem a destinação específica, quando implementada na condição ou para o fim de determinado termo.
6. Vencida e não paga, no todo em parte, a dívida e constituído em mora o fiduciante, consolidar-se-á a propriedade do imóvel em nome do fiduciário, consequência ulterior, prevista, inclusive, na legislação de regência.
7. Sendo a alienante pessoa dotada de capacidade civil, que livremente optou por dar seu único imóvel, residencial, em garantia a um contrato de mútuo favorecedor de pessoa diversa, empresa jurídica da qual é única sócia, não se admite a proteção irrestrita do bem de família se esse amparo significar o alijamento da garantia após o inadimplemento do débito, contrariando a ética e a boa-fé, indispensáveis em todas as relações negociais.
8. Recurso especial não provido. (REsp 1.559.348/DF, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 18.06.2019, DJe 05.08.2019)
Desse modo, à luz da jurisprudência dominante das Turmas de Direito Privado: (i) a proteção conferida ao bem de família pela Lei 8.009/90 não importa em sua inalienabilidade, revelando-se possível a disposição do imóvel pelo proprietário, inclusive no âmbito de alienação fiduciária; e (ii) a utilização abusiva de tal direito, com evidente violação ao princípio da boa-fé objetiva, não deve ser tolerada, afastando-se o benefício conferido ao titular que exerce o direito em desconformidade com o ordenamento jurídico.
No caso dos autos, não há como afastar a validade do acordo de vontades firmado entre as partes, inexistindo lastro para excluir os efeitos do pacta sunt servanda sobre o contrato acessório de alienação fiduciária em garantia, afigurando-se impositiva, portanto, a manutenção do acórdão recorrido no ponto, ainda que por fundamento diverso.
3.2. No que diz respeito à regularidade da notificação extrajudicial (e, consequentemente, da consolidação da propriedade fiduciária), cumpre transcrever os seguintes excertos das decisões proferidas pelas instâncias ordinárias:
– DECISÃO INDEFERITÓRIA DO PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DA TUTELA JURISDICIONAL (fls. 85/87):
(…)
No caso concreto, os documentos constantes dos autos evidenciam que a parte autora firmou, em 28.03.2012, com Brazilian Mortgages Companhia Hipotecária, ‘Instrumento Particular de Financiamento com Constituição de Alienação Fiduciária em Garantia, Emissão de Cédula de Crédito Imobiliário e Outras Avenças’ por meio do qual contraiu empréstimo de R$ 103.000,00 (cento e três mil reais), a ser restituído em 240 (duzentos e quarenta) prestações mensais e sucessivas, vencendo a primeira em 28.04.2012, no valor inicial de R$ 1.354,27 (um mil trezentos e cinquenta e quatro reais e vinte e sete centavos). Em garantia do pagamento do mútuo, a parte autora deu à credora, em alienação fiduciária, o imóvel objeto da matrícula n. 47.079 do ORI/Brusque, avaliado em R$ 264.000,00 (duzentos e sessenta e quatro mil reais), na forma dos arts. 22 e seguintes da Lei n. 9.514/97 (E1, OUT6, p. 1-33). No mesmo instrumento, a parte autora anuiu com a cessão dos créditos dele decorrentes a terceiros, ‘independente de aviso ou concordância do(s) DEVEDOR(ES), subsistindo todas as cláusulas deste instrumento em favor do cessionário’ (Cláusula 10).
Segundo consta dos autos, ainda, a parte autora foi notificada extrajudicialmente pelo ORI/Brusque, em 23.10.2013, para purgar a mora, mediante o pagamento de R$ 7.839,07 (sete mil oitocentos e trinta e nove reais e sete centavos), apurado até 15.10.2013, no prazo improrrogável de 15 (quinze) dias, restando cientificada de que a falta de cumprimento da obrigação, no prazo estipulado, asseguraria à CEF o direito de consolidação da propriedade imóvel, nos termos do art. 26, § 7º, da Lei n. 9.514/97 (E1, OUT9, p. 1-5).
Quanto à suposta nulidade da notificação extrajudicial, entendo que não há elementos nos autos capazes de comprovar a alegação da parte autora. A uma, porque a notificação da cessão do crédito, nos termos do contrato, não era obrigatória; a duas, porque as datas consignadas na Av.9-47.079 (E1, MATRIMÓVEL5, p. 4) correspondem ao ‘Requerimento firmado pela Cessionária’ (29.01.2014) e ao protocolo junto ao ORI/Brusque da averbação da cessão (25.08.2014), e não ao momento em que operacionalizada a transferência do direito de crédito, o que poderá ser apurado durante a fase instrutória do processo.
No que tange à alegação de que a autora teria sido vítima de informações contraditórias quanto à titularidade do crédito objeto da notificação extrajudicial, melhor sorte não lhe assiste. Com efeito, a purga da mora deveria ter sido realizada diretamente no ORI/Brusque, e não junto à CEF ou à credora originária, Brazilian Mortgages Companhia Hipotecária. De qualquer forma, a legislação processual civil contempla solução específica para as situações como a descrita pela parte autora, consoante determina o art. 895 do CPC: ‘Se ocorrer dúvida sobre quem deva legitimamente receber o pagamento, o autor requererá o depósito e a citação dos que o disputam para provarem o seu direito.’ (grifei)
– SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA (fls. 229/232):
(…)
Por meio de “instrumento particular de financiamento com constituição de alienação fiduciária em garantia” firmado, em 28.03.2012, com a Brazilian Mortgages Companhia Hipotecária, a parte autora obteve empréstimo de R$ 107.063,43 (cento e sete mil sessenta e três reais e quarenta e três centavos).
Alega a autora que, devido a problemas financeiros, deixou de efetuar regularmente o pagamento das prestações. Em outubro de 2013, sustentou a parte autora que recebeu notificação extrajudicial levada a efeito pela Caixa Econômica Federal, concedendo-lhe prazo para a purgação da mora.
O mútuo em questão foi contratado sob o regime de alienação fiduciária de imóveis, instituída pela Lei n. 9.514/97, a qual, no que interessa à resolução da lide, assim determina:
(…)
No caso concreto, a autora alega que a CEF não detinha a titularidade do crédito, e, por conseguinte, seria nula a consolidação da propriedade levada a efeito pelo Registro de Imóveis.
A CEF, embora intimada em duas oportunidades, não anexou aos autos cópia do contrato de cessão de crédito entabulado com a Brazilian Mortgages Companhia Hipotecária. Não obstante isso, entendo que restou comprovada a cessão de crédito suscitada nos autos pela averbação constante da matrícula do imóvel – AV.9-47.079 (evento 1, MATRIMÓVEL5, p.4), a qual possui presunção de veracidade, ante a presença de fé pública dos atos notariais e de registro. No tocante às datas consignadas na referida averbação, comungo do entendimento esposado pelo colega que me antecedeu no feito, por ocasião da apreciação da tutela antecipada, que assim se manifestou a respeito:
[…] porque as datas consignadas na Av.9-47.079 (E1, MATRIMÓVEL5, p. 4) correspondem ao ‘Requerimento firmado pela Cessionária’ (29.01.2014) e ao protocolo junto ao ORI/Brusque da averbação da cessão (25.08.2014), e não ao momento em que operacionalizada a transferência do direito de crédito, o que poderá ser apurado durante a fase instrutória do processo.
[…]
No mais, as providências para a execução extrajudicial foram fielmente observadas pela CEF, consoante demonstra a comunicação que foi entregue à parte autora, instando-a à purgação da mora, a qual não foi atendida (evento 14, OUT3, p. 1-2). (grifei)
– ACÓRDÃO REGIONAL QUE MANTEVE A SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA (fls. 315/317):
(…)
O contrato de financiamento imobiliário realizado entre a parte autora e a credora foi firmado na modalidade de alienação fiduciária.
Primeiramente, tenho que foi devidamente comprovada nos autos a cessão dos créditos perpetrada entre a credora original, Brazilian Mortgages Companhia Hipotecária, e a Caixa Econômica Federal, o que se extrai da própria matrícula do imóvel (E1, MAT5), sendo certo que o contrato de financiamento controvertido estipula expressamente a possibilidade de cessão dos créditos, com todas as suas prerrogativas, bem como a desnecessidade da intimação da devedora a respeito da cessão (E1, OUT6, Cláusula 10), sobretudo porque em nada afetada sua posição contratual.
Reconhecida, assim, na qualidade de credora fiduciária, a legitimidade da CEF para dar início e andamento ao procedimento de consolidação da propriedade.
Ademais, em tal modalidade de garantia, enquanto não quitado o contrato, o mutuário/fiduciante detém única e exclusivamente a posse direta do imóvel, não sendo dele proprietário. A posse indireta e a propriedade resolúvel são do agente fiduciário, sendo a condição resolutiva relacionada ao cumprimento de todas as previsões contratuais.
Segundo estabelece o artigo 22 da Lei nº 9.514/97, ‘a alienação fiduciária é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel. Com a constituição da propriedade fiduciária, mediante o registro do contrato no registro de imóveis, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel’.
Assim, nos termos do art. 25 da Lei 9.514/97, ‘Com o pagamento da dívida e seus encargos, resolve-se, nos termos deste artigo, a propriedade fiduciária do imóvel’. Em contrapartida, em caso de inadimplência, resolve-se o contrato com a consolidação da propriedade do fiduciário, consoante previsão expressa do artigo 26 da Lei supracitada:
(…)
No caso dos autos, não tendo ocorrido o adequado adimplemento das obrigações, restou consolidada a propriedade em nome do fiduciário, ocorrendo a extinção da dívida, nos termos do artigo 27, parágrafo 5º, da Lei nº 9.514/97. A partir de então, considerando que o imóvel passou a integrar o patrimônio da instituição financeira, ela poderá promover leilão para a alienação do imóvel, nos termos da lei. (grifei)
Como sabido, a notificação é ato jurídico em sentido estrito por meio do qual se dá ciência a alguém a fim de que realize ou se abstenha de determinada conduta, sob cominação de pena; sendo, portanto, instrumento de realização do direito que pode constituir, extinguir ou modificar relação jurídica, com diversas consequências, tais como: constituição em mora do devedor, conservação de direitos, prevenção de responsabilidades, extinção de contrato, interrupção da prescrição, dentre outras.
Segundo a doutrina especializada, a notificação tem os mesmos requisitos de existência, validade e eficácia do negócio jurídico, senão vejamos:
Pressupostos de existência da notificação são:
a) os sujeitos, de um lado aquele que emite a declaração de vontade; de outro aquele a quem é dirigida.
b) o objeto, a utilidade em razão da qual giram os interesses das partes;
c) a declaração de vontade, que na notificação só pode ser expressa;
d) a forma, o meio pelo qual se exterioriza a declaração de vontade, sem o que seria impossível dá-la a conhecer;
e) a causa, o motivo determinante.
São pressupostos de validade da notificação:
a) a capacidade das partes, tanto de quem emite a declaração de vontade, como daquele a quem é dirigida. A incapacidade absoluta ou relativa deve ser suprida por meio de representação ou se assistência, pena de invalidade, nulidade ou anulabilidade, respectivamente;
b) objeto lícito, possível e determinado ou determinável, que consiste na prestação exigida da outra parte, bem da vida que se almeja;
c) a declaração de vontade deve ser emitida livre e de boa-fé, sem vícios que a maculem;
d) a forma da notificação deve ser escrita, mas não se exige a forma solene. Tanto pode ser judicial ou extrajudicial, pelo cartório de títulos e documentos, através do correio, por carta registrada com aviso de recebimento, por telex, fac-símile ou internet, como permite o art. 58, IV, da Lei do Inquilinato, que nesse particular excede o seu âmbito;
e) a causa, o fim último, motivo que leva alguém a praticar um ato jurídico, deve ser lícita, sob pena de nulidade (Ccm art. 166, II).
A eficácia da notificação subordina-se ao termo final do prazo concedido para o ato reclamado do destinatário. Não é compatível a eficácia da notificação com condição de qualquer espécie ou com modo ou encargo. (RAZUK, Paulo Eduardo. Da notificação. São Paulo: Ed. Verbatim, 2012, p. 33-34)
Então, resta saber se é válida/eficaz a notificação – prevista no artigo 26 da Lei n. 9.514/1997 – realizada em nome de terceiro que não era titular do crédito fiduciário à época do protocolo, mas que veio a comprovar a ocorrência de cessão de crédito em data posterior à instauração do procedimento extrajudicial.
É importante sublinhar que a alienação fiduciária de coisa imóvel encontra-se definida pelo artigo 22 da norma de regência, sendo “o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel”.
Há, assim, a transmissão da propriedade do devedor fiduciante ao credor fiduciário como direito real de garantia de caráter resolúvel, mediante registro, ocorrendo, a partir de então, o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel (artigo 23).
Verifica-se, pois, o intuito do legislador de conferir procedimento específico muito mais célere e simplificado em comparação à execução da hipoteca e demais garantias, autorizada a agilidade na expropriação do bem para satisfação de eventual débito vencido e não pago.
Isso porque, de forma extrajudicial – em procedimento corrente apenas no cartório imobiliário –, o agente notarial notifica o devedor fiduciante, constituindo-o em mora e, em persistindo a inadimplência (período de 15 dias), consolida-se a propriedade do imóvel em nome do fiduciário, com a consequente e posterior venda do bem em leilão (Lei n. 9.514/1997).
De fato, implementada a condição resolutiva, confirma-se para o devedor fiduciante o direito expectativo de readquirir a propriedade plena sobre o bem.
Por outro lado, havendo o inadimplemento obrigacional por parte dele, surge para o credor fiduciário o direito de satisfazer o crédito mediante a alienação do bem objeto da propriedade fiduciária (em razão da vedação do pacto comissório – CC, artigo 1.428).
Para que ocorra a consolidação da propriedade fiduciária em nome do credor, o devedor fiduciante deverá ser regularmente notificado, ato que, na alienação fiduciária de imóvel, acarreta diversos possíveis efeitos jurídicos: (i) a purgação da mora, com a retomada do contrato (§ 5º do artigo 26); (ii) caso não haja pagamento, o oficial do cartório de registro certificará o evento ao credor para que adote as medidas necessárias à consolidação da propriedade em seu favor; (iii) a reintegração de posse e posterior leilão do imóvel; e (iv) enquanto não extinta a propriedade fiduciária resolúvel, persistirá a posse direta do devedor fiduciante.
Com efeito, a notificação em questão, para além das consequências naturais da constituição do devedor fiduciante em mora, permite, em não havendo a purgação e independentemente de processo judicial (opera-se formalmente pela via registrária cartorial), o surgimento do direito de averbar na matrícula do imóvel a consolidação da propriedade em nome do credor notificante, isto é, do fiduciário.
Especialmente por isso, consoante assinala abalizada doutrina, a referida notificação/intimação do devedor fiduciante possui requisitos especiais que, se não observados, acarretam sua nulidade, quais sejam:
Esta intimação, consoante a regra do § 3°, do art. 26, da Lei 9.514/97, é pessoal. Isto que dizer que a ciência da mesma deve ser ao próprio devedor fiduciante. É ato a ser praticado pelo Oficial do Registro de Imóveis, a requerimento expresso do credor fiduciário, não podendo ser praticado de ofício.
(…)
Existem duas situações em que o Oficial do Registro de Imóveis pode delegar a outro serviço a tarefa de intimar o devedor fiduciante, sempre a seu prudente arbítrio e sob sua responsabilidade […] A primeira hipótese ocorre quando opta para que a intimação seja efetivada por Oficial de Títulos e Documentos e a segunda quando é remetida pelos Correios.
(…)
A intimação deve ser dirigida ao devedor fiduciante e, se ele for casado, também ao seu cônjuge. Porquanto o processo desencadeado a partir da intimação pode levar à disposição do bem imóvel, incidindo, na hipótese, o art. 1.647, do Código Civil, bem como o § 1°, do art. 10, do Código de Processo Civil, excetuado o regime de separação absoluta de bens no casamento.
(…)
Pelo texto legal, a intimação deve ser dirigida ao domicílio do devedor fiduciante ou ao imóvel objeto da propriedade fiduciária.
(…)
Na hipótese da intimação pessoal se frustrar, o § 4º, do art. 26, da Lei 9.514/97, realiza a previsão da intimação por edital, para os casos em que o devedor fiduciante, ou quem o represente, se encontre em local incerto e não sabido. Esta circunstância é certificada pelo Oficial do Registro de Imóveis, mesmo nos casos em que a intimação tenha sido levada a efeito pelo Serviço de Títulos e Documentos ou pelos Correios.
(…)
O conteúdo da intimação é definido no § 1º, do art. 26, da Lei 9.514/97. A intimação deve conter, sem prejuízo de outras disposições acidentais pactuadas entre as partes, sob pena de não valer:
a) o valor das prestações vencidas e as que se vencerem nos quinze dias subsequentes à data da intimação, dentro dos quais é possível a purgação da mora pelo devedor fiduciante;
b) juros convencionais, penalidades contratualmente estabelecidas, encargos legais, tais como a atualização monetária do débito, tributos que incidam sobre o bem, além de despesas condominiais, para imóveis em condomínio, seja o denominado condomínio comum, seja um condomínio especial;
c) despesas de cobrança e para a intimação do devedor fiduciante.
A atuação do oficial registrador imobiliário na intimação é formal, não podendo este interferir nos cálculos apresentados pelo credor fiduciário, que os realiza por sua conta e risco.
(…)
Sendo a intimação tarefa inerente ao Registro Imobiliário, não é possível a substituição desta atividade por empresa realizadora de cobrança. (LIMA, Frederico Henrique Viegas de. Da alienação fiduciária em garantia de coisa imóvel. 4ª ed. Curitiba: Juruá, 2009, p. 174-177)
Diante de tal contexto normativo e doutrinário, esta Quarta Turma, em caso semelhante, adotou o entendimento de que “a repercussão da notificação é tamanha que qualquer vício em seu conteúdo é hábil a tornar nulos seus efeitos, principalmente quando se trata de erro crasso, como há na troca da pessoa notificante” (REsp 1.172.025/PR, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 07.10.2014, DJe 29.10.2014).
Eis a ementa do referido julgado:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE IMÓVEL. COTA DE CONSÓRCIO. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL QUE CONSTITUI O DEVEDOR EM MORA NA QUAL CONSTOU QUALIFICAÇÃO DE PESSOA DIVERSA DAQUELA RELACIONADA AO REAL CREDOR FIDUCIANTE. NULIDADE RECONHECIDA. ART. 26 DA LEI N. 9.514/1997.
(…)
2. A alienação fiduciária de coisa imóvel veio definida pelo art. 22 da norma de regência, sendo “o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel”. Há, assim, a transmissão da propriedade do devedor fiduciante ao credor fiduciário como direito real de garantia de caráter resolúvel, mediante o registro, ocorrendo o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel (art. 23). De forma extrajudicial – em procedimento corrente apenas no cartório imobiliário -, o agente notarial notifica o devedor fiduciante, constituindo-o em mora e, em persistindo a inadimplência (período de 15 dias), consolida-se a propriedade do imóvel em nome do fiduciante, com a consequente e posterior venda do bem em leilão (Lei n. 9.514/1997).
3. A notificação em questão, para além das consequências naturais da constituição do devedor fiduciário em mora, permite, em não havendo a purgação e independente de processo judicial (opera-se formalmente pela via registrária cartorial), o surgimento do direito de averbar na matrícula do imóvel a consolidação da propriedade em nome do credor notificante, isto é, do fiduciário. Portanto, a repercussão da notificação é tamanha que qualquer vício em seu conteúdo é hábil a tornar nulos seus efeitos, principalmente quando se trata de erro crasso, como na troca da pessoa notificante.
4. É de assinalar que a lei de regência da alienação fiduciária (Lei n. 9.514/1997) exige que a formalidade de notificação (e diversos atos decorrentes) ocorra por oficial do Registro de Imóveis. Isso porque os agentes públicos de serventias extrajudiciais são dotados de fé pública – velam justamente pela autenticidade e segurança dos atos e negócios jurídicos, dando publicidade e eficácia a eles -, tendo atribuição de alta relevância efetuar notificações quando não exigida intervenção judicial.
5. Na hipótese, a notificação exarada, com respaldo da segurança e certeza do serviço registral, ao cientificar os recorridos, na qualidade de destinatários, que determinado lançamento da Caixa Econômica Federal teria sido efetuado na serventia daquele cartório imobiliário, estando cobrando determinado débito pelo qual estariam em mora (sob pena de consolidação da propriedade em nome da instituição financeira), acabou por ser ineficaz, retratando relação jurídica que não correspondia com a realidade.
6. Recurso especial não provido. (REsp 1.172.025/PR)
Na espécie, revela-se evidente, a meu juízo, a existência de defeito na indicação do credor fiduciário (notificante), pois, à época do encaminhamento da notificação extrajudicial (outubro de 2013), a Caixa Econômica Federal não titularizava qualquer crédito em face da devedora fiduciante (notificada), cenário que somente veio a ser alterado em janeiro de 2014, data em que ocorrida a cessão do crédito pertencente a Brazilian Mortgages Companhia Hipotecária (credora originária).
Sobre a data da cessão, importante assinalar que, nos termos das decisões proferidas nos autos (indeferitória de tutela antecipada e sentença), a Caixa Econômica Federal não logrou demonstrar que o negócio jurídico teria sido celebrado em momento anterior a janeiro de 2014.
Assim, a meu ver, o defeito na notificação caracteriza a inexistência de notificação válida, o que afasta a constituição em mora do devedor e, consequentemente, invalida a consolidação da propriedade do imóvel em nome do credor fiduciário.
De fato, não há como admitir que o ato do cartório, expedido antes da cessão do crédito para a Caixa Econômica Federal, tenha conseguido atingir seu objetivo (CPC, artigo 244), isto é, conferir ciência à devedora fiduciante (Cleonice Kuhnen) da intenção do fiduciário (Brazilian Mortgages) em receber o que lhe era devido, no prazo legal, sob pena de perda da propriedade em favor do credor.
Não se pode olvidar que a dívida vencida, por si só, não é bastante para caracterizar a mora do devedor fiduciante, isto porque, apesar de a mora existir quando ele não efetua o pagamento no tempo, lugar e forma convencionados (CC, artigo 394), muitas vezes, como na alienação fiduciária de imóvel, deverá ela ser exteriorizada, reconhecendo-se o inadimplemento do devedor ope legis, na via cartorária, rompendo-se por definitivo a relação jurídica contratual.
Com efeito:
(…) a regra geral de constituição em mora, contida no art. 397, do Código Civil, consagrando o princípio dies interpellat pro homine, não é suficiente para fazer surgir o exercício do direito do credor fiduciário em seu favor. O art. 26, da Lei 9.514/97 impõe a obrigatoriedade do devedor fiduciante ser constituído em mora, atraindo a incidência do parágrafo único, do art. 397, do Código Civil. (LIMA, Frederico Henrique Viegas de, op. cit., p. 174).
Ademais, e não menos importante, é de assinalar que a lei de regência da alienação fiduciária (Lei n. 9.514/1997) exige que a formalidade de notificação (e diversos atos decorrentes) ocorra por oficial do Registro de Imóveis.
Isso porque os agentes públicos de serventias extrajudiciais são dotados de fé pública – velam justamente pela autenticidade e segurança dos atos e negócios jurídicos, conferindo-lhes publicidade e eficácia –, revelando-se inequívoca a alta relevância da atribuição de se efetuar notificações em procedimentos nos quais dispensada a intervenção judicial.
É por esse motivo que advém sua responsabilidade pelos danos causados, na prática de ato próprio da serventia, aos usuários e a terceiros (REsp 45.489/RJ, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, julgado em 14.04.1997, DJ 12.05.1997).
Nessa perspectiva, penso que acabou por ser ineficaz a notificação extrajudicial, que, ao cientificar a devedora fiduciante sobre débito pelo qual estaria em mora, apontou pessoa jurídica diversa como credor fiduciário, o que se deu sem respaldo em negócio jurídico contemporâneo, retratando, assim, relação jurídica que não correspondia com a realidade dos fatos.
5. Ante o exposto, voto por dar parcial provimento ao recurso especial para julgar procedente a pretensão deduzida na inicial, a fim de reconhecer a ausência de regular constituição em mora da devedora e, consequentemente, declarar nula a consolidação da propriedade fiduciária empreendida pela Caixa Econômica Federal, bem como os demais atos praticados posteriormente, ensejando a devolução, à autora, do prazo para purgação da mora e a consectária possibilidade de restauração do contrato de financiamento (fls. 26/63), com inversão do ônus sucumbencial arbitrado na sentença de improcedência.
É como voto. – – /
Fonte: INR Publicações
Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!
Para acompanhar as notícias do Portal do RI, siga-nos no twitter, curta a nossa página no facebook e/ou assine nosso boletim eletrônico (newsletter), diário e gratuito”.