CSM/SP: Direito registral – Formal de partilha prevendo promessa de doação de imóveis – Recolhimento do ITCMD não demonstrado – Registro recusado – Dúvida procedente – Apelação desprovida


  
 

Apelação n° 1009444-43.2022.8.26.0269

Espécie: APELAÇÃO
Número: 1009444-43.2022.8.26.0269
Comarca: ITAPETININGA

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

Apelação n° 1009444-43.2022.8.26.0269 

Registro: 2025.0000548755

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1009444-43.2022.8.26.0269, da Comarca de Itapetininga, em que é apelante ALEX ALMEIDA MAIA, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE ITAPETININGA.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento à apelação, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 23 de maio de 2025.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça Relator

APELAÇÃO CÍVEL nº 1009444-43.2022.8.26.0269

APELANTE: Alex Almeida Maia

APELADO: Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Itapetininga

VOTO N.° 43.782

Direito registral – Formal de partilha prevendo promessa de doação de imóveis – Recolhimento do ITCMD não demonstrado – Registro recusado – Dúvida procedente – Apelação desprovida.

Caso em Exame.

1. O interessado pretende o registro de formal de partilha extraído de processo de divórcio no qual pactuada, pelos divorciandos, promessa de doação de imóveis a favor dos filhos. Não se conforma com a exigência de comprovação do recolhimento do ITCMD ou de sua isenção, sob a alegação de extinção do crédito tributário pela decadência. 2. A dúvida foi julgada procedente. 3. Irresignado, o interessado recorreu.

Questões em Discussão.

4. A admissibilidade da apuração da decadência tributária pelo Oficial, em juízo de qualificação registral, sua ocorrência in concreto e a pertinência da exigência remanescente alusiva ao ITCMD.

Razões de Decidir.

5. A promessa de doação pura, embora em regra vedada, por confrontar com o animus donandi (livre atribuição de uma vantagem patrimonial sem contraprestação) ínsita à doação, é de ser admitida nas relações de direito de família, em especial, em convenções de divórcio, separação ou dissolução de união estável. 6. A doação, nesses casos, é prometida no bojo de uma transação, em ambiente identificado por concessões recíprocas, em proveito da paz familiar e social, e para prevenir litígios futuros; apresenta uma causa expandida (fim concreto alargado) em cotejo com a de atomizada doação pura (sem corromper a liberalidade), daí sua aceitabilidade, e a de sua tutela específica. 7. Não há falar em desnaturalização da doação pura, pois, sob a perspectiva dos terceiros/donatários, não há correspectividade.

8. A sentença homologatória de separação, divórcio ou dissolução de união estável constitui documento público, logo, supre a escritura, dispensando qualquer ato notarial subsequente O entendimento jurisprudencial é no sentido que, em tais casos, a promessa de doação ma verdade já configura a liberalidade, independentemente de contrato de doação posterior. 9. Compete ao Oficial, é um dever seu, fiscalizar o recolhimento do imposto sobre heranças e doações, sempre que relacionado, tal como in casu, a ato registral a ser por ele praticado. 10. É estranho ao controle de legalidade confiado ao Oficial, desborda seus limites objetivos, e os do juízo de qualificação, apurar a decadência, a extinção do direito de constituição do crédito tributário pelo decurso do tempo, do prazo de cinco anos, que, contudo, sequer teve início, já que o fato gerador do ITCMD concernente à doação de imóveis é o registro do título translativo da propriedade. 11. A homologação judicial de transação na qual ajustada promessa de doação e o posterior aperfeiçoamento da doação, resultante do consentimento dos donatários, não são fatos geradores do ITCMD, pois não importam mutação subjetiva jurídico-real. 12. A decadência, ao menos em tese, não está configurada. 13. Sem a comprovação do pagamento do imposto sobre doação, ou da isenção (da exclusão do crédito tributário), o registro do formal de partilha é descabido.

Dispositivo. 14. Recurso desprovido.

Teses de julgamento:

1. Admite-se a promessa de doação pura nas relações de direito de família, em especial, em convenções de divórcio, separação ou dissolução de união estável. 2. A sentença judicial homologatória de separação, divórcio ou dissolução de união estável constitui documento público, supre a escritura. 3. A apuração da decadência do crédito tributário desborda os limites objetivos do juízo de qualificação registral. 4. O fato gerador do ITCMD concernente à doação de bem imóvel é o registro translativo da propriedade.

Legislação citada:

Constituição Federal, art. 155, I; Código Civil, arts. 108, 421, caput, 481, 538, 541, caput, 543, 1.227 e 1.245, caput; Código de Processo Civil, art. 648, II; Código Tributário Nacional, arts. 134, VI, e 173, caput e I; Lei n.º 6.015/1973, art. 289; NSCGJ, t. II, subitem 117.1. do Cap. XX.

Jurisprudência citada:

STF, RE n.º 71.742/SP, rel. Min. Raphael de Barros Monteiro, j. 1.º.6.1971; RE n.º 94.278-5/SP, rel. Min. Soares Muñoz, j. 1.º.6.1971; e RE n.º 105.862-5/PE, rel. Min. Oscar Corrêa, j. 30.8.1985; RE n.º 109.097- 9, rel. Min. Octavio Gallotti, j. 9.9.1986; STJ, Embargos de Divergência em REsp n.º 125.859/RJ, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 26.6.2002; REsp n.º 730.626/SP, rel. Min. Jorge Scartezzini, j. 17.10.2006; REsp n.º 853.133/SC, rel. p/acórdão Min. Ari Pargendler, j. 6.5.2008; REsp n.º 742.048/RS, rel. Min. Sidnei Beneti, j. 14.4.2009; AgRg no REsp n.º 883.232/MT, rel. Min. Raul Araújo, j. 19.2.2013; REsp n.º 1.634.954/SP, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 26.9.2017; AgInt no REsp n.º 1.394.870/MS, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 20.9.2018; AgInt nos EDcl no REsp n.º 1.580.631/SP, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 18.5.2020; REsp n.º 1.841.771/MG e REsp n.º 1.841.798/MG, rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 28.4.2021 (TEMA 1048); AgInt no Agravo em REsp n.º 2.577.362/SP, rel. Min. Raul Araújo, j. 25.2.2025; CSM/TJSP, Apelação Cível n.º 0005719-59.2012.8.26.0319, rel. Des. Elliot Akel, j. 3.6.2014; Apelação Cível n.º 0019186-49.2013.8.26.0100, rel. Des. Elliot Akel, j. 7.7.2014; Apelação Cível n.º 1000762-62.2014.8.26.0663, rel. Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças, j. 24.5.2016; Apelação Cível n.º 1000908-70.2019.8.26.0100, rel. Des. Pinheiro Franco, j. 9.8.2019; Apelação Cível n.º 1010572-69.2020.8.26.0269, rel. Des. Fernando Antonio Torres Garcia, j. 23.5.2022; Apelação Cível n.º 1000333-57.2021.8.26.0079, rel. Des. Fernando Antonio Torres Garcia, j. 14.7.2022, Apelação Cível n.º 1023875-19.2023.8.26.0602, rel. Des. Francisco Loureiro, j. 26.2.2024; Apelação Cível n.º 1007490-90.2024.8.26.0624, rel. Des. Francisco Loureiro, j. 13.11.2024.

O registro do formal de partilha extraído dos autos do divórcio n.º 1019245-95.2015.8.26.0602, processo que tramitou pela 1.ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Sorocaba, requerido para ser efetivado nas matrículas n.ºs 21.533, 27.183, 27.184 e 27.186 do RI de Itapetininga, foi pelo Oficial condicionado ao cumprimento de uma série de exigências (fls. 100-101), cumpridas, exceção feita à relacionada ao ITCMD.

O interessado, ora recorrente, Alex Almeida Maia, um dos quatro donatários dos imóveis acima listados, filho dos divorciandos, tal como os demais beneficiários, afirma a desnecessidade da comprovação pendente, diante da decadência do direito de constituição do crédito tributário, do decurso do prazo de cinco anos, iniciado, nos termos do art. 173, I, do CTN, no dia 1.º de janeiro de 2016, dado que a homologação da partilha ocorreu em julho de 2015 (fls. 3-17).

Suscitada a dúvida, requerida pelo interessado, o Oficial justificou não lhe competir a declaração da prescrição tributária, alegou que a doação foi aceita pelos donatários no dia 23 de setembro de 2021, marco inicial do prazo prescricional quinquenal, ainda portanto em curso, e, nessa linha, defendeu a exigência atacada, a pertinência da exibição da declaração do ITCMD, instruída com as guias de imposto recolhidas, ou, no seu lugar, da comprovação de eventual isenção, acompanhada de certidão de homologação pelo Fisco Estadual (fls. 1-2).

Após a impugnação do interessado e a manifestação do Ministério Público (fls. 124-146 e 157-159), a dúvida, pela r. sentença de fls. 160-161, foi julgada procedente. Irresignado, o interessado interpôs a apelação de fls. 169-194, sem nada inovar, reafirmando, em síntese, o descabimento da exigência então subsistente, em atenção à extinção do crédito tributário.

A d. Procuradoria Geral de Justiça, em seu parecer de fls. 212-214, opinou pelo desprovimento do recurso.

É o relatório.

1. O casal Jorge Maia e Maria José Almeida Maia, ao se divorciar, doou, comprometeu-se, na realidade, a transferir, aos filhos Luis Alberto Almeida Maia, Alex Almeida Maia, Gilberto Almeida Maia e Carina Almeida Maia, entre outros bens, os bens imóveis descritos nas matrículas n.ºs 21.533, 27.183, 27.184 e 27.186 do RI de Itapetininga, de propriedade deles (fls. 102-105), promitentes doadores, reservando-lhes o usufruto, usufruto deducto (fls. 18-22 e 46-48).

O pactum de donando compõe a transação aperfeiçoada nos autos do processo n.º 1019245-95.2015.8.26.0602, convenção de divórcio homologada no dia 27 de julho de 2015, por sentença do Juízo da 1.ª Vara de Família e Sucessões de Sorocaba (fls. 37), transitada em julgado (fls. 38), e sucedida por ajuste retificando erro material relativo à partilha, à quota ideal pertencente a cada um dos donatários, equivalente a 25% (1/4), e não a 20% (1/5), de cada um dos imóveis (fls. 46-49).

O formal de partilha foi aditado, em atenção ao resolvido no processo de dúvida n.º 1010572-69.2020.8.26.0269 (cf. fls. 90-92 e v. acórdão proferido na Apelação Cível correspondente, rel. Des. Fernando Antonio Torres Garcia, j. 23.5.2022), para dele constar a qualificação dos donatários e a aceitação da doação, consentimento que manifestaram no dia 23 de setembro de 2021 (fls. 81-88 e 93).

Em reportado processo, afastou-se a anterior exigência de formalização da doação por escritura pública, contudo o registro ainda foi condicionado à demonstração do pagamento do imposto de transmissão por doação ou da pertinente isenção tributária.

A comprovação segue pendente. O interessado/donatário Alex Almeida Maia, ora recorrente, sustenta sua prescindibilidade, sob a alegação de extinção do crédito tributário pela decadência, e, irresignado com ratificação da exigência, mantida após o cumprimento das demais, requereu nova suscitação de dúvida (fls. 3-17), com vistas ao registro do formal de partilha de fls. 18-99, prenotado sob o nº 283794 (fls. 100-101).

2. A promessa de doação pura não é de ser, em regra, admitida, e isso porque, conforme inclusive precedentes do E. Supremo Tribunal Federal[1], conflitante com a ideia de liberalidade (compreendida como livre atribuição de uma vantagem patrimonial sem contraprestação) inerente à doação, que é inconciliável com a execução compulsória de obrigação de fazer: o doador não pode ser forçado a celebrar o contrato definitivo.

Não se trata de posicionamento incontroverso[2], contudo, na precisa lição de Agostinho Alvim, “é dogma fundamental, em matéria de doação, a persistência do animus donandi”; “a natureza do negócio da doação é incompatível com o seu aperfeiçoamento, sem o animus donandi atual”[3], se (complemento à luz da concepção objetiva de causa) evanescido seu fim concreto, a liberalidade no sentido acima referido, a finalidade de conferir a outrem uma vantagem patrimonial sem prestação correspectiva, causa que deve ser contemporânea à doação.

Assim também decidiu o C. Superior Tribunal de Justiça, no REsp n.º 730.626/SP, rel. Min. Jorge Scartezzini, j. 17.10.2006: “admitir a promessa de doação equivale a concluir pela possibilidade de uma doação coativa, incompatível, por definição, com um ato de liberalidade.” E, mais recentemente, no AgInt no REsp n.º 1.394.870/MS, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 20.9.2018.

Se o negócio jurídico é gratuito, se a declaração negocial a distingui-lo é um empobrecer-se, argumenta João Baptista Villela, “é natural que a lei retenha a sua consumação até o último momento.”[4] Os negócios dispositivos gratuitos, ressalta, observam uma lógica própria, estranha aos onerosos; a equação empobrecimento/enriquecimento, a marcar os primeiros, impõe uma distância radical entre uns e outros; lá, o impulso de proteção da ordem jurídica é mais enérgico; logo, “não pode haver promessa de doação pela mesma razão que não pode haver promessa de comodato, … de mútuo gratuito ou … de depósito gratuito. E a razão está precisamente na gratuidade, que é insuscetível, pela sua mesma natureza, de ser imposta contra a vontade do beneficiente.”[5]

Em passagem construída à luz de dois símbolos da justiça (a balança e a espada), João Baptista Villela, então realçando a ausência de igualdade na doação, sentencia: “balança não combina com doação. Nem se realiza pela espada. A doação é tudo, menos equilíbrio e não se sente confortável diante da força. Desdenha o sinalagma e tem horror à violência. É tudo, menos constrangimento ou imposição. Equilíbrio e poder são de uma ordem, doação pertence a outra.”[6] (grifei)

A ausência de sinalagmaticidade (a transferência de bens ou de vantagens sem prestação correspectiva), a atribuição patrimonial sem correspectivo, causa típica da doação, implica a inadmissibilidade da promessa de doação. Sob essa ótica, a causa contratual está a limitar a autonomia privada; cumpre um de seus papéis[7], radicado no art. 421, caput, do CC, conforme o qual “a liberdade de contratar será exercida nos limites da função social do contrato.”

O deslocamento patrimonial próprio da doação é, de fato, incombinável com a causa solvendi; não pode ser consumado solvendi causa, a título de pagamento, com vistas a solver um crédito. A causa solvendi é característica dos contratos sinalagmáticos. A doação não admite realização mediante negócio jurídico devido, em cumprimento de uma obrigação.

A doação pura não pode ser objeto de contrato preliminar, cujo regime jurídico veda o suprimento judicial da declaração negocial, se ofensivo, como no caso da doação[8], à natureza da obrigação.[9] Em suma, a promessa de doação pura é, no mais das vezes, nula, inválida: seu objeto é juridicamente impossível; é desprovido de viabilidade legal.

É sintomático, nesse sentido, o art. 481 do CC referir-se, ao cuidar da compra e venda, à obrigação de transferência do domínio assumida pelo alienante, enquanto o art. 538 do CC considera doação “o contrato em que uma pessoa … transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra”, no qual, logo, a contratação e a execução são operações concomitantes, que, ao menos, devem ser feitas de modo aproximado, a reforçar a impropriedade da promessa de doação.

3. A promessa de doação, no entanto, é de ser admitida, pondera Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, nas “situações comuns nos processos de separação em que os cônjuges separandos celebram acordo perante o juízo da vara de família, assumindo o compromisso de doar a totalidade ou parte dos bens do casal para os filhos … pois esse compromisso … não constitui apenas uma liberalidade, mas uma forma de superar o impasse na sua partilha em proveito da paz familiar e social. Por isso, deve ser garantida a sua exigibilidade concreta.”[10]

A doação aí, e nos casos de divórcio e de dissolução de união estável, é prometida no interior de uma transação, em ambiente marcado por concessões recíprocas, logo, apresenta causa expandida (um fim concreto alargado) em cotejo com a de atomizada doação pura (sem entretanto corromper a liberalidade), daí sua aceitabilidade, e a da tutela específica, positiva.

Essa inteligência se coaduna com a jurisprudência do E. Supremo Tribunal Federal[11] e do C. Superior Tribunal de Justiça[12], que reconhecem, nessas hipóteses, que não podem ser equiparadas a uma singela promessa de doação pura, a existência de uma transação; há aí correspectividade, contrapartidas; a promessa de doação é feita como condição de negócio jurídico, não sendo passível de retratação ou de arrependimento, e comportando execução específica, até por iniciativa dos filhos/donatários, terceiros em relação ao acordo.

Há aí, para Ana Luiza Maia Nevares, uma estipulação em favor de terceiro. [13] Sob essa lógica, no caso discutido, os divorciandos, doadores, proprietários dos imóveis doados, seriam, a um só tempo, estipulantes/promissários e promitentes, porquanto, concomitantemente, contratariam a favor de terceiros, atribuindo-lhes vantagem patrimonial sem correspectivo, e se obrigariam entre eles e perante os terceiros, enquanto os filhos seriam os beneficiários, donatários in casu, estranhos à convenção, mas por ela alcançados.

Dentro desse contexto, o pacto em apreço é válido, além de eficaz. Inserida em transação, no âmbito do direito de família, no bojo de convenção de divórcio, por ocasião assim da dissolução do vínculo matrimonial, a promessa de doação pura, cláusula convencional a favor dos filhos, terceiros, é respaldada pela jurisprudência, a referida acima, prestigiada por recente precedente do C. Superior Tribunal de Justiça, expresso no AgInt no Agravo em REsp n.º 2.577.362/SP, rel. Min. Raul Araújo, j. 25.2.2025.

Não há falar, aqui, em desnaturalização da doação, pois, sob a perspectiva dos donatários, terceiros, não há correspectividade, nexo de sinalagmaticidade, contrapartidas. Não se menoscaba, assim, a causa da doação. Por outro lado, o temperamento feito, direcionado às relações de direito de família, leva em conta a relevância da tutela da paz familiar e social e um dos escopos da partilha, prevenir litígios futuros (cf. 648, II, do CPC).

É oportuno, nesse passo, o precioso escólio de Luciano de Camargo Penteado, atento à multifuncionalidade da figura jurídica da doação, cujo regramento e utilização admitem, pontua, as mais diversas alternativas; a doação, realça, “acaba por ser um moldura que se presta a diferentes papéis e que sofre diferentes funções”; assim, “a atribuição liberal é feita em circunstâncias diversas às quais procura se amoldar”; “… ora surge regulando relações de direito de família, ora relações de direito obrigacional, ora sendo liberalidade a quem prestou serviços, ora uma vantagem pura e simples …”, enfim, “é uma figura que só pode ser analisada in concreto.”[14]

Trata-se de compreensão que bem se ajusta à abertura da jurisprudência à promessa de doação pura nas relações de família, inserida em transações de partilha de bens do casal em processo de separação, divórcio ou dissolução de união estável, a favor dos filhos. As particularidades das situações jurídicas de família e dessas convenções a justificam.

A formalização da doação por escritura pública é, na hipótese vertente, prescindível, nos termos do resolvido anteriormente por este C. Conselho Superior da Magistratura, na Apelação Cível n.º 1010572-69.2020.8.26.0269, rel. Des. Fernando Antonio Torres Garcia, j. 23.5.2022, em precedente suscitação de dúvida referente ao formal de partilha ora novamente sob análise, também requerida pelo recorrente. De fato, seria uma redundância, uma superfluidade.

A doação, ressalvada a de bens móveis de pequeno valor (seguida de pronta tradição; doação manual, contrato real), é um negócio jurídico formal. É o que se infere do art. 541, caput, do CC. A forma escrita é da substância, da essência da doação, que pressupõe escritura pública, se a doação for de direitos reais sobre bens imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País (cf. art. 108 do CC), ou, se de valor inferior, instrumento particular, igualmente exigido se tiver por objeto bens móveis de valor.

A propósito, Luciano de Camargo Penteado enxerga no regramento da doação “uma tentativa de construir um esquema formal e causal. Formal pela exigência de escritura pública ou de instrumento particular (prescindindo do dom manual, em que a entrega do bem não é propriamente elemento formal, mas real), atos com uma solenidade maior ou menor, mas atos formais, que suprem a ausência de causa sinalagmática, a regra para a existência de um contrato em sentido jurídico.”[15]

Adiante, desenvolve:

… o cumprimento da prescrição legal de forma para a constituição do ato jurídico doação é seu elemento integrante que condiciona de modo absoluto e determinante a irradiação dos seus efeitos próprios. Ela exerce a função da causa nos contratos sinalagmáticos, não sendo a causa o mero animus donandi desprovido de outras qualificações.

… A causa não é a pura liberalidade, mas a atribuição sem contraprestação ou causa pretérita suficiente a compor um tipo de troca unida a uma forma apta, que pode ser no direito brasileiro um instrumento público, particular, ou a entrega do bem.”[16]

Seja como for, a homologação judicial da separação, do divórcio ou da dissolução da união estável constitui documento público e, consequentemente, supre a escritura (e, logicamente, se for o caso, o instrumento particular), dispensando qualquer ato notarial subsequente. Cumpre a função protetora da forma; a solenidade da qual revestida chama a atenção à seriedade da doação. A sentença homologatória, por conseguinte, é dotada de eficácia equivalente à escritura pública.

Assim aliás se posicionou há muito o C. Superior Tribunal de Justiça, nos Embargos de Divergência em REsp n.º 125.859/RJ, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 26.6.2002, in verbis:

Quanto à forma do ato, penso, que a disposição de patrimônio imóvel, tomada perante o juiz, é um ato praticado com a formalidade e com a solenidade que se quer para os que envolvem a transferência de domínio, pois tem a mesma solenidade e importância do ponto de vista civil, que tem a lavratura da escritura. Assim como as partes podem chegar perante o tabelião e decidirem a respeito da disposição dos seus bens, por que não admitir que elas tomem essas decisões perante o juiz, no momento da separação ou do inventário de bens?

Nessa linha seguiram outros precedentes do C. Superior Tribunal de Justiça (cf., por exemplo, REsp n.º 1.634.954/SP, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 26.9.2017, e AgInt nos EDcl no REsp n.º 1.580.631/SP, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 18.5.2020), ao qual se alinham deliberações outras deste C. Conselho Superior da Magistratura, tomadas, v.g., na Apelação Cível n.º 1000762-62.2014.8.26.0663, rel. Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças, j. 24.5.2016, na Apelação Cível n.º 0005719-59.2012.8.26.0319, rel. Des. Elliot Akel, j. 3.6.2014, e, ainda, na Apelação Cível n.º 1023875-19.2023.8.26.0602, de minha relatoria, j. 26.2.2024.

Em suma, para fins de registro translativo da propriedade imobiliária, basta apresentar, ao Oficial, o formal de partilha extraído (ou, se o caso, a carta de sentença tirada) dos autos nos quais formalizada e homologada judicialmente a transação, a convenção sobre a partilha de bens resultante de separação, divórcio ou dissolução da união estável, estabelecendo a cláusula a favor da prole, o compromisso de doação aos filhos, acompanhado eventualmente do termo de consentimento dos donatários, aqui exigível, porque, capazes, inaplicável a regra do art. 543 do CC, que dispensa a aceitação apenas dos absolutamente incapazes.

Assim sendo, o título judicial levado a registro é inscritível, quer dizer, potencialmente inscritível, porque o assento pretendido ainda depende da comprovação do recolhimento do imposto de transmissão por doação ou da demonstração da isenção tributária.

Aos Estados e ao Distrito Federal compete instituir o imposto sobre transmissão causa mortis e doação, de qualquer bens ou direitos (cf. art. 155, I, da CF), sujeito a lançamento por declaração. Por sua vez, cabe ao Oficial, é um dever seu, fiscalizar o recolhimento desse tributo, incidente sobre heranças e doações, sempre que relacionado, tal como in casu, a ato registral a ser por ele praticado (cf. art. 289 da Lei n.º 6.015/1973, 134, VI, do CTN, e subitem 117.1 do Cap. XX das NSCGJ, t. II).

Por sua vez, é alheio ao controle de legalidade confiado ao Oficial, desborda seus limites objetivos, e os do juízo de qualificação registral que lhe é próprio, apurar a decadência do crédito tributário, a extinção do direito de constituição do crédito tributário pelo decurso do tempo, do prazo de cinco anos (cf. art. 173, caput, do CTN), extinção da relação obrigacional jurídico-tributária ocorrente, nesta hipótese, antes do lançamento.

A esse respeito, é pacífica a jurisprudência administrativa deste C. Conselho Superior da Magistratura (cf., v.g., Apelação Cível n.º 0019186-49.2013.8.26.0100, rel. Des. Elliot Akel, j. 7.7.2014, Apelação Cível n.º 1000908-70.2019.8.26.0100, rel. Des. Pinheiro Franco, j. 9.8.2019, Apelação Cível n.º 1000333-57.2021.8.26.0079, rel. Des. Fernando Antonio Torres Garcia, j. 14.7.2022, e Apelação Cível n.º 1007490-90.2024.8.26.0624, de minha relatoria, j. 13.11.2024).

De todo modo, vale assinalar (ao menos a título de obiter dictum), a decadência não está, em tese, configurada.

O C. Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar o Tema n.º 1048, por ocasião do exame do REsp n.º 1.841.771/MG e do REsp n.º 1.841.798/MG, rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 28.4.2021, e definir que a contagem do prazo decadencial, para efeito de lançamento do ITCMD referente a doação não oportunamente declarada pelo contribuinte ao fisco estadual, terá início no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que poderia ter sido efetuado, então observado o fato gerador, deliberou, no que aqui interessa:

… o fato gerador do ITCMD especificamente no que diz respeito à doação será (i) no tocante aos bens imóveis, a efetiva transcrição realizada no Registro de Imóveis …

… o aspecto temporal da hipótese de incidência do imposto sobre transmissão de bens, mediante doação, se consumará pelo registro da propriedade imóvel …

Nesse ponto, valorou as regras dos arts. 1.227 e 1.245, caput, do CC, ou seja, a eficácia constitutiva do registro predial, inscrição constitutiva da propriedade e dos demais direitos reais sobre bem imóvel, adquiridos a título derivado e por ato inter vivos.

Isto posto, a homologação judicial da transação prevendo o pactum de donando e o posterior aperfeiçoamento da doação, então a conversão da promessa em doação, decorrente do imprescindível aceite manifestado pelos filhos/donatários, não são fatos geradores do ITCMD; não importam mutação subjetiva jurídico-real.

É o registro então que converte o título, simples gerador de crédito, em direito real. Apenas quando somado ao modo (ao registro) o título provoca a transmissão e a aquisição de direitos reais sobre bens imóveis e, consequentemente, o nascimento do fato gerador do imposto sobre doações, que pressupõe, no que ora releva, a efetiva transferência da propriedade imobiliária.

Neste momento, portanto, ainda não surgiu para o Fisco a possibilidade de proceder ao lançamento de ofício, ao lançamento direto aludido no art. 149, II, do CTN, no lugar do contribuinte, para suprir uma omissão dele, que necessariamente passaria por uma do Oficial (que teria feito o registro translativo sem exigir comprovação do recolhimento do imposto). Vale dizer, o prazo decadencial de cinco anos sequer teve início.

Inarredável, à vista do aduzido, a exigência remanescente impugnada. Enfim, sem a comprovação do pagamento do imposto, de seu recolhimento, ou de sua isenção (da exclusão do crédito tributário, situação impeditiva de sua constituição), não há como permitir o acesso do título judicial ao registro predial, a inscrição do formal de partilha de fls. 18-99 nas matrículas n.ºs 21.533, 27.183, 27.184 e 27.186 do RI de Itapetininga.

Ante o exposto, pelo meu voto, nego provimento à apelação.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça Relator

NOTAS:

[1]. RE n.º 71.742/SP, rel. Min. Raphael de Barros Monteiro, j. 1.º.6.1971; RE n.º 94.278-5/SP, rel. Min. Soares Muñoz, j. 1.º.6.1971; e RE n.º 105.862-5/PE, rel. Min. Oscar Corrêa, j. 30.8.1985.

[2] Cf., a propósito, Washington de Barros Monteiro (Curso de direito civil: direito das obrigações. 2.ª parte. 28.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 118-119. v. 5), Paulo Lôbo (Contratos. 6.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 295-296), Paulo Nader (Curso de direito civil: contratos. 8.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 269-270. v. 3), Marcos Catalan (Reflexões acerca da eficácia da promessa de doação no direito brasileiro. In: Repertório de Jurisprudência IOB. São Paulo, n.º 21, p. 782-787, 1.ª quinzena de novembro, 2015) e Maria Celina Bodin de Moraes (Notas sobre a promessa de doação. In: Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro, v. 24, p. 3-22, out.-dez./2005), que admitem a promessa de doação, sem restringi-la ao direito de família, às situações envolvendo interesses de menores, aos pactos associados à dissolução da sociedade (ou do vínculo) matrimonial e da união estável.

[3] Da doação. 3.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 42-43. Nesse sentido, v.g., Caio Mário da Silva Pereira, para quem a doação pura não pode ser objeto de contrato preliminar, de pactum de donando, a ser admitido, no entanto, na doação com encargo (Instituições de direito civil: contratos. 13.ª ed. Revista e atualizada por Régis Fichtner. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 217-218. v. 3).

[4] Contrato de doação: pouca luz e muita sombra. In: Direitos dos contratos. Pereira Júnior, Antônio Jorge; Jabur, Gilberto Haddad (coords.). São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 267-268.

[5] Op. cit., p. 267 e 270.

[6] Op. cit., p. 252

[7] A respeito dos papéis desempenhados pela causa, cf. Bodin de Moraes, Maria Celina. A causa do contrato. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a.2, n.4, p. 1-24, out.-dez./2013. Disponível em: <http://civilistica.com/a-causa-do-contrato/>.15.1.2018.

[8] Ao comentar o art. 464 do CC, assim se posicionou Renan Lotufo (Código Civil comentado: contratos em geral até doação (arts. 421 a 564). São Paulo: Saraiva, 2016, p. 116-117. v.3, t. I.).

[9] Art. 464. Esgotado o prazo, poderá o juiz, a pedido do interessado, suprir a vontade da parte inadimplente, conferindo caráter definitivo ao contrato preliminar, salvo se a isto se opuser a natureza da obrigação.

[10] Contratos nominados II: contrato estimatório, doação, locação de coisas, empréstimo (comodato – mútuo). In: Biblioteca de direito civil. Estudos em homenagem ao professor Miguel Reale. Reale, Miguel; Martins-Costa, Judith (coords.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 78-79. v. 4.

[11] RE n.º 109.097-9, rel. Min. Octavio Gallotti, j. 9.9.1986.

[12] Embargos de Divergência em REsp n.º 125.859/RJ, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 26.6.2002; REsp n.º 853.133/SC, rel. p/acórdão Min. Ari Pargendler, j. 6.5.2008; REsp n.º 742.048/RS, rel. Min. Sidnei Beneti, j. 14.4.2009; AgRg no REsp n.º 883.232/MT, rel. Min. Raul Araújo, j. 19.2.2013; REsp n.º 1.634.954/SP, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 26.9.2017.

[13] Doação de bens imóveis. In: Direito imobiliário: escritos em homenagem ao professor Ricardo Pereira Lira. Azevedo, Fábio de Oliveira; Melo, Marco Aurélio Bezerra de (coords.). São Paulo: Atlas, 2015, p. 179-185.

[14] Doação com encargo e causa contratual: uma nova teoria do contrato. 2.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 317-318.

[15] Op. cit., p. 226.

[16] Op. cit., p. 247 e 249.

Fonte: DJE/SP 03.06.2025.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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