Apelação Cível – Ação Declaratória de Inexigibilidade de Débito c.c. Tutela de Evidência – ITBI – Instrumento Particular de Cessão de Direitos Possessórios – Inexigibilidade da cobrança – Não configurada a ocorrência do fato gerador do ITBI – Posse não é um direito real – Sentença mantida – Sucumbência recursal – Recurso da Municipalidade não provido.


  
 

ACÓRDÃO 

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1002262-27.2019.8.26.0587, da Comarca de São Sebastião, em que é apelante PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO SEBASTIÃO, é apelado ROGERIO MEDEIROS UENO.

ACORDAM, em sessão permanente e virtual da 14ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: Negaram provimento ao recurso. V. U., de conformidade com o voto do relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Desembargadores OCTAVIO MACHADO DE BARROS (Presidente) e MÔNICA SERRANO.

São Paulo, 26 de junho de 2020.

SILVANA MALANDRINO MOLLO

Relatora

Assinatura Eletrônica

Apelação Cível nº 1002262-27.2019.8.26.0587.

Apelante: Município de São Sebastião.

Apelado: Rogério Medeiros Ueno.

Comarca: São Sebastião.

Juiz de Origem: Guilherme Kirschner.

VOTO Nº 8294

APELAÇÃO CÍVEL – Ação Declaratória de Inexigibilidade de Débito c.c. Tutela de Evidência – ITBI – Instrumento Particular de Cessão de Direitos Possessórios – Inexigibilidade da cobrança – Não configurada a ocorrência do fato gerador do ITBI – Posse não é um direito real – Sentença mantida – Sucumbência recursal – Recurso da Municipalidade não provido.

Trata-se de Recurso de Apelação interposto pela Municipalidade de São Sebastião, em face da r. sentença de fls. 68/70, que, na Ação Declaratória de Inexistência de Débito Tributário c.c. Indenização por danos morais contra ela proposta por Rogério Medeiros Ueno., julgou a demanda parcialmente procedente, para anular o débito fiscal, bem como o auto de infração e imposição de multa, e em razão da sucumbência recíproca, condenou cada umas das partes ao pagamento de 50% das custas e despesas processuais, bem como dos honorários advocatícios proporcionais, fixados em 10% do valor da causa.

Alega, a Municipalidade apelante, em síntese, que incide o ITBI sobre a cessão de direitos, nos termos do art. 59, inciso II, do Código Tributário Municipal, respaldado pelos artigos 156, inciso II, e 30, inciso I, ambos da Constituição Federal, sustentando que imóveis da região são usualmente vendidos sob a máscara de uma mera cessão de direitos possessórios, com o intuito de se praticar uma fraude. Argumenta, ainda, que a posse com ânimo de dono gera a aquisição do domínio, fazendo incidir o imposto. Requer, ao final, o provimento do recurso, para a reforma da sentença, mantendo-se o lançamento tributário.

O recurso tempestivo foi regularmente recebido e processado, com apresentação de contrarrazões, a fls. 85/96.

É O RELATÓRIO.

Depreende-se dos autos que Rogério Medeiros Ueno propôs Ação Declaratória de Inexistência de Débito Tributário c.c. Indenização por danos morais, tendo em vista a lavratura, pela Municipalidade de São Sebastião, de Auto de Infração (AIIM nº 115, 116 e 117/2019 fls. 19/21 nos respectivos valores de R$ 17.377,57, R$ 3.140,67 e R$ 35.185,55), pelo suposto não recolhimento de ITBI gerado em decorrência da transmissão de imóvel.

Ocorre que, como se depreende de fls. 15/18, entre o autor e Marcelo Medeiros Ueno e Ricardo Ueno e Lúcia Maria Costa Medeiros Ueno foi lavrada escritura de cessão de direito possessório de bem, razão pela qual, a fls. 30/31dos autos, a tutela antecipada foi deferida pelo D. Juízo a quo, suspendendo-se a exigibilidade da cobrança do imposto.

Após a apresentação de contestação e réplica, sobreveio a r. sentença de fls. 68/70, decisum contra o qual se insurge a Municipalidade.

Pois bem.

A questão sub judice cinge-se à possibilidade da incidência do ITBI sobre cessão de direitos possessórios relativos a imóvel.

O ITBI é previsto pelo artigo 156, inciso II, da Constituição Federal:

“Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

(…)

II – transmissão ‘inter vivos’, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;”

Determinada a competência municipal para a instituição do tributo, o CTN, lei complementar que traz normas gerais em matéria de legislação tributária, estabelece, em seu art. 35, a definição dos fatos geradores do ITBI, in verbis:

“Art. 35. O imposto, de competência dos Estados, sobre a transmissão de bens imóveis e de direitos a eles relativos tem como fato gerador:

I – a transmissão, a qualquer título, da propriedade ou do domínio útil de bens imóveis por natureza ou por acessão física, como definidos na lei civil;

II – a transmissão, a qualquer título, de direitos reais sobre imóveis, exceto os direitos reais de garantia;

III – a cessão de direitos relativos às transmissões referidas nos incisos I e II.”

Da conjunção desses dois dispositivos, tem-se que o ITBI é instituído por lei municipal e incide sobre a transmissão da propriedade ou do domínio útil de bens imóveis, ou ainda de direitos reais sobre eles, bem como a cessão de direitos relativos a essas transmissões.

A Constituição Federal tem supremacia hierárquica com todo o restante das leis, sejam estas complementares ou ordinárias, tanto em seu aspecto formal quanto material, de modo que todas elas devem se conformar às disposições daquela, sob pena de serem inconstitucionais e expurgadas do ordenamento.

Não é outro o sentido do que dispõe o artigo 110 do CTN, ao rezar que a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance dos institutos, conceitos e formas de direito privado de alguma maneira utilizados pela Constituição Federal. Ora, se a lei fundamental utiliza um conceito em determinado sentido, qualquer lei hierarquicamente inferior que o utilize de forma diversa, contrariando o que está nela disposto, será inconstitucional.

Por isso, quando o artigo 156, inciso II, da CF, fala de transmissão de bens imóveis e de direitos reais sobre imóveis, sem fazer maiores esclarecimentos acerca da definição desses conceitos, ele os está tomando do direito privado (Código Civil), tal qual definidos no ordenamento jurídico brasileiro.

Ali, os direitos reais estão definidos no artigo 1.225:

“Art. 1.225. São direitos reais:

I – a propriedade;

II – a superfície;

III – as servidões;

IV – o usufruto;

V – o uso;

VI – a habitação;

VII – o direito do promitente comprador do imóvel;

VIII – o penhor;

IX – a hipoteca;

X – a anticrese.

XI – a concessão de uso especial para fins de moradia;

XII – a concessão de direito real de uso; e

XIII – a laje.”

Além disso, o artigo 1.227 do mesmo Diploma Civilista dispõe que “os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código.”

Depreende-se, pois, que a incidência do ITBI, segundo a disciplina do CTN, só terá lugar (I) quando houver a transmissão da propriedade, devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis; (II) quando ocorrer a transmissão de um dos direitos reais elencados pelo art. 1.225 do CC, também devidamente registrada; ou (III) quando forem cedidos direitos relativos à transmissão da propriedade ou de outros direitos reais.

Trata-se, o caso sub judice, de cessão de direitos possessórios, que o Município considera como fato gerador do tributo e o contribuinte, não. Ora, diante do quanto aqui exposto, evidencia-se que as cessões de direitos que se amoldam à hipótese de incidência do ITBI são aquelas de direitos reais, e a posse não é um direito real, uma vez que não consta do rol deles contido no artigo 1.225 do CC.

Essa distinção fundamental entre os direitos reais e os que não os são, como aqueles relacionados à posse, torna impossível sua equiparação, não havendo dúvida, na jurisprudência, de que só a transmissão de direitos reais enseja a incidência do ITBI.

Nesse sentido o E. STJ:

“TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. IMPOSTO SOBRE TRANSMISSÃO DE BENS IMÓVEIS – ITBI. BEM ADQUIRIDO POR MEIO DE ADJUDICAÇÃO. AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA ONEROSA. INCIDÊNCIA DO ITBI. RECURSO ESPECIAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

1. São fatos geradores do ITBI: (i) a transmissão ‘inter vivos’, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física; e de direitos reais sobre bens imóveis, exceto de garantias e servidões; e (ii) a cessão, por ato oneroso, de direitos relativos à aquisição de bens imóveis.

2. A jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de que a adjudicação, em hasta pública, é forma de aquisição originária da propriedade. Assim, o bem adquirido passa ao arrematante livre e desembaraçado de qualquer responsabilidade anterior. Precedente: REsp 1.659.668/RJ, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 5/5/2017.

3. No caso concreto, contudo, não há que se falar em afastamento da incidência do ITBI, pois, como visto, o aspecto relevante para a incidência do imposto é a onerosidade da aquisição da propriedade. Sendo assim, a adjudicação deve ser considerada no campo de incidência do ITBI, visto que se revela operação nitidamente onerosa. Em idêntica direção: REsp 1.188.655/RS, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 8/6/2010.

4. Recurso especial a que se nega provimento.”

(REsp 1446249/SP, Rel. Min. Og Fernandes, Segunda Turna, j. 21/09/2017, DJe 28/09/2017) (g.n.)

“PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE TRANSMISSÃO DE BENS IMÓVEIS (ITBI). BASE DE CÁLCULO. VALOR DA ARREMATAÇÃO. FATO GERADOR. REGISTRO DA TRANSMISSÃO DO BEM IMÓVEL. SUMULA 83/STJ.

1. O valor da arrematação é que deve servir de base de cálculo do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis. Precedentes do STJ.

2. O fato gerador do imposto de transmissão (art. 35, I, do CTN) é a transferência da propriedade imobiliária, que somente se opera mediante o registro do negócio jurídico no ofício competente.

3. Dessume-se que o acórdão recorrido está em sintonia com o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça, razão pela qual não merece prosperar a irresignação. Incide, ‘in casu’, o princípio estabelecido na Súmula 83/STJ: ‘Não se conhece do Recurso Especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida.’

4. Cumpre ressaltar que a referida orientação é aplicável também aos recursos interpostos pela alínea ‘a’do art. 105, III, da Constituição Federal de 1988. Nesse sentido: REsp 1.186.889/DF, Segunda Turma, Relator Ministro Castro Meira, DJe de 2.6.2010.

3.Recurso Especial de que não se conhece.”

(REsp 1670521/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, j. 27/06/2017, DJe 30/06/2017) (g. n.)

Logo, não tendo havido a transmissão de direitos reais sobre o bem imóvel, não ocorre o fato gerador do ITBI, sendo descabida sua cobrança pela Municipalidade. Nesse sentido, não merece nenhum reparo a sentença de Primeira Instância que julgou parcialmente procedente a ação.

Por fim, majoro a sucumbência em grau recursal em mais 2%, em favor do apelado, nos termos do art. 85, §11, do CPC.

Posto isso, nego provimento ao recurso.

Silvana M. Mollo

Relatora – – /

Dados do processo:

TJSP – Apelação Cível nº 1002262-27.2019.8.26.0587 – São Sebastião – 14ª Câmara de Direito Público – Rel. Des. Silvana Malandrino Mollo – DJ 30.06.2020

Fonte: INR Publicações

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