TJSP: UNIÃO ESTÁVEL ENTRE PESSOAS DE 28 ANOS E 92 ANOS – DIFERENÇA DE IDADE OU IDADE LONGEVA DE UM DOS DECLARANTES QUE NÃO CONSTITUI MOTIVO LEGAL PARA A RECUSA DO ATO – RECURSO PROVIDO PARA JULGAR IMPROCEDENTE O PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR

TJ|SP: Recurso administrativo – Processo administrativo – Processo administrativo disciplinar instaurado por determinação do E. Corregedor Geral de Justiça, após arquivamento sumário pelo Corregedor Permanente – Absolvição inicial cassada pelo Corregedor Geral de Justiça, após avocação do feito – Reconhecimento de infração disciplinar prevista no art. 31, I e II, da Lei nº 8.935/1994 e imposição de multa ao Tabelião – Autorização de lavratura de escritura pública declaratória de união estável entre pessoas de 28 anos e 92 anos, no regime da comunhão universal de bens –  Apuração por órgão administrativo previdenciário da falsidade ideológica da declaração – Simulação subjetiva dos declarantes que não poderia ser apurada previamente pelo notário – Limitação do poder da apuração de fraude a seu aspecto objetivo, não podendo o notário se responsabilizar por eventual reserva mental ou declaração ideologicamente falsa dos declarantes – Diferença de idade ou idade longeva de um dos declarantes que não constitui motivo legal para a recusa do ato, por não impedir a existência de união estável – Critério etário que não pode significar impedimento ao ato, sob pena de ofensa do art. 5º, CF – Culpa não configurada – Ausência de quebra de dever de agir ou de não agir, considerando as particularidades do caso – Recusa pelo simples critério etário que poderia caracterizar fato típico pelo notário, conforme o Estatuto do Idoso – Limites da fé pública da declaração feita ao notário quanto à sua existência e não quanto à sua veracidade ideológica – Inexistente comportamento caracterizador de culpa pelo descumprimento de dever funcional, não cabe a imposição de sanção disciplinar administrativa – Recurso provido para julgar improcedente o processo administrativo disciplinar.

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Registro: 2017.0000579969

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos do Recurso Administrativo nº 0048142-07.2015.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que é recorrente PAULO AUGUSTO RODRIGUES CRUZ, é recorrido CORREGEDOR GERAL DA JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO.

ACORDAM, em Câmara Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “DERAM PROVIMENTO ao recurso para julgar improcedente o processo administrativo disciplinar. V.U. Com declaração de voto convergente do 3º Juiz.

Sustentou oralmente o advogado Dr. Antonio Jorge Marques.

Não se manifestou a procuradora Dra. Luciana Pinsdorf Barth.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores ADEMIR BENEDITO (VICE PRESIDENTE) (Presidente) e XAVIER DE AQUINO (DECANO).

São Paulo, 7 de agosto de 2017.

Salles Abreu (Pres. Seção de Direito Criminal) RELATOR

Assinatura Eletrônica

RECURSO ADMINISTRATIVO Nº 0048142-07.2015.8.26.0100- SÃO PAULO RECORRENTE: PAULO AUGUSTO RODRIGUES CRUZ

RECORRIDO: CORREGEDOR GERAL DA JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO VOTO N.º: 41.700

Recurso administrativo – Processo administrativo – Processo administrativo disciplinar instaurado por determinação do E. Corregedor Geral de Justiça, após arquivamento sumário pelo Corregedor Permanente – Absolvição inicial cassada pelo Corregedor Geral de Justiça, após avocação do feito – Reconhecimento de infração disciplinar prevista no art. 31, I e II, da Lei nº 8.935/1994 e imposição de multa ao Tabelião – Autorização de lavratura de escritura pública declaratória de união estável entre pessoas de 28 anos e 92 anos, no regime da comunhão universal de bens Apuração por órgão administrativo previdenciário da falsidade ideológica da declaração Simulação subjetiva dos declarantes que não poderia ser apurada previamente pelo notário Limitação  do poder da apuração de fraude a seu aspecto objetivo, não podendo o notário se responsabilizar por eventual reserva mental ou declaração ideologicamente falsa dos declarantes Diferença de idade ou idade longeva de um dos declarantes que não constitui motivo legal para a recusa do ato, por não impedir a existência de união estável Critério etário que não pode significar  impedimento ao ato, sob pena de ofensa do art. 5º, CF – Culpa não configurada – Ausência de quebra de dever de agir ou de não agir, considerando as particularidades do caso – Recusa pelo simples critério etário que poderia caracterizar fato típico pelo notário, conforme o Estatuto do Idoso – Limites da fé pública da declaração feita ao notário quanto à sua existência e não quanto à sua veracidade ideológica – Inexistente comportamento caracterizador de culpa pelo descumprimento de dever funcional, não cabe a imposição de sanção disciplinar administrativa – Recurso provido para julgar improcedente o processo administrativo disciplinar.

Trata-se de recurso administrativo interposto contra a r. decisão proferida pelo Excelentíssimo Desembargador Corregedor Geral da Justiça do Estado de São Paulo que, em processo  administrativo disciplinar instaurado pela Corregedoria Permanente, por ordem da Corregedoria Geral, avocou o feito, julgando-o procedente, cassando a absolvição decretada, aplicando multa a Paulo Augusto Rodrigues Cruz, 11º Tabelião de Notas da Capital, com fundamento no art. 32, II, da Lei nº 8.935/94, fixada no valor de R$ 120.000,00 (cento e vinte mil reais), pelo cometimento das infrações previstas no art. 31, I e II, da Lei nº 8.935/94.

Sustenta o apelante que a escritura de reconhecimento de união estável foi lavrada sem nenhuma irregularidade, tendo a Escrevente Elisangela Alves Batista, ao se deparar com a expressiva discrepância entre a idade dos requerentes Marcos Godoy Pereira e Cecília Serventi, após solicitar prévia orientação ao Tabelião, constatado que ambos tinham plena capacidade e total discernimento para praticarem o ato pretendido. Em seguida outra questão foi suscitada, porquanto os interessados queriam fazer constar da escritura, que entre eles iria vigorar o regime da comunhão universal de bens, tendo a escrevente, após nova consulta ao Tabelião, os advertido de que o regime de bens poderia ser contestado judicialmente e, diante da concordância dos mesmos, a lavratura do ato foi autorizada pelo Tabelião. Sustenta ainda o apelante que o MM. Juiz Assessor firmou seu parecer, servindo-se de provas supervenientes, colhidas após a construção de todo o procedimento investigatório, levado a efeito pela Procuradoria do Estado, face ao pedido de pensão formulado por Marcos, em decorrência do falecimento de Cecília. Finalmente, aduz que não restaram caracterizadas as infrações, nem conduta negligente ou dolosa, tendo sido constatada a plena capacidade civil das partes e a inexistência de vícios na manifestação de vontade. Postula a anulação da decisão de fls. 252 ou sua reforma. Subsidiariamente, em caso de manutenção da sanção administrativa, pretende a redução a redução do valor da penalidade aplicada (fls. 277/306).

Recebido o recurso, a decisão foi mantida pelo Senhor Corregedor Geral da Justiça (fls. 311).

É O RELATÓRIO

Conheço do recurso, eis que presentes seus requisitos objetivos e subjetivos de admissibilidade.

É dos autos que o processo administrativo disciplinar tem por objeto a conduta do 11º Tabelião de Notas da Capital que, em 28 de abril de 2014, autorizou a lavratura de escritura pública de declaração de união estável entre Marcos Godoy Pereira, à época com vinte e oito anos de idade, e Cecília Serventi, com noventa e dois anos de idade, sem que fossem tomados os devidos cuidados.

Objetivamente, consta da escritura declaração dos interessados de que as partes conviviam há mais de dez anos, e que pretendiam, para a união estável, o regime de comunhão universal de bens. (fls. 19/20).

Menos de um ano da lavratura da escritura pública, em 14 de março de 2015, Cecília Serventi faleceu (fls. 26), sendo que, em maio de 2015, Marcos se utilizou da escritura pública de união estável para arguir sua condição de ex-companheiro de Cecília, requerendo complementação da pensão por morte dela, que era funcionária aposentada do Banco Nossa Caixa S.A. (fls. 7).

Foram realizadas diligências no procedimento administrativo de solicitação de complementação da pensão por morte, apurando-se que eram parentes (Cecília era tia-avó de Marcos). Além disso, apurou-se por informações obtidas na rede social denominada “Facebook”, que Marcos mantém convivência pública e duradoura, desde 2012, com Verônica Moraes, com quem teve dois filhos.

Tais fatos comprovam que a declaração feita pelas partes, por ocasião da lavratura da escritura de união estável, era uma simulação, o que caracterizaria sua nulidade absoluta.

Estes os fatos, objetivamente, pelos quais a decisão do E. Corregedor Geral entendeu pela existência de conduta negligente, responsabilizando o notário disciplinarmente, com fundamento no art. 31, I e II, da Lei nº 8.935/1994, que assim dispõe:

“Art. 31. São infrações disciplinares que sujeitam os notários e os oficiais de registro às penalidades previstas nesta lei:

I – a inobservância das prescrições legais ou normativas;

II – a conduta atentatória às instituições notariais e de registro;

(…).”
Também fundamenta a condenação imposta no item 1.3, do Capítulo XIV, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça, com a seguinte redação:

“1.3. É seu dever recusar, motivadamente, por escrito, a prática de atos contrários ao ordenamento jurídico e sempre que presentes fundados indícios de fraude à lei, de prejuízos às partes ou dúvidas sobre a manifestação de vontade.”
Com a devida vênia à posição adotada pelo E. Corregedor Geral de Justiça, tenho que deva prevalecer a absolvição levada a cabo pelo MM Juiz Corregedor permanente, por não vislumbrar no ato do notário conduta culposa ou contrária à dignidade do instituto do notariado.

Pelo princípio da rogação ou demanda, uma vez manifestado pelas partes a intenção de efetivarem o ato notarial sob a responsabilidade legal do notário, passa este a ter o dever legal de atuação, somente podendo recusar-se em casos de impedimento legal, físico ou ético, dúvida quanto à identidade ou capacidade das partes, dentre outros. Não se mostra, ao notário, uma opção entre realizar ou não o ato notarial estando ausentes impedimentos legais, cabendo a ele a penas o exercício da qualificação do ato pretendido e a orientação das partes quanto a eventual eficácia ou ineficácia do ato. Mas recusar-se a fazê-lo, sem que haja impedimento legal absoluto, não lhe será lícito.

É doutrina clássica a de que a função notarial, por ser pública, não comporta discricionariedade quanto à sua prestação.

Isto corresponde ao direito de escolha do notário pelo cliente, assim como se molda pelo fato de o liame da confiança e o notário ser assimétrico, ou seja, basta que o cliente confie no notário.

Assim, a prestação notarial é de caráter obrigatório, e não a pode recusar o notário escolhido, ressalvadas as hipóteses legais de impedimento subjetivo, nulidade (incluindo o quadro dos delitos) e impossibilidade física. Neste sentido, por brevidade de causa: GOMÁ SALCEDO. Derecho notarial. 2ª ed., Barcelona: Bosch, 2011, p. 54.

A recusa à lavratura do ato tão somente em função da idade ou da diferença de idade entre os postulantes ao ato, poderia caracterizar indevida distinção de tratamento com base exclusivamente no critério de idade de um dos atuantes, violando-se o  art. 5º, CF. Afinal, não há previsão legal de idade máxima para constituição de união estável, ou fixação de diferença mínima ou máxima de idade entre os conviventes, não se justificando o não acolhimento das declarações de vontade exclusivamente com base no critério etário.

Qual seriam os limites objetivos a serem observados pelo notário para que a lavratura de escritura de união estável entre pessoas de grande diferença de idade, para que se afastasse sua responsabilidade disciplinar? Cinco anos de diferença? Dez, vinte, trinta? Qual seria a idade mínima para se “desconfiar” da declaração de pessoas maiores e capazes? 70 anos? 80 anos? 90 anos?

Qualquer escolha, não fundada em critérios previstas na lei em sentido estrito, significariam, aos olhos do declarante, diferenciação injustificada e inconstitucional.

A recusa, se realizada apenas e tão somente sobre tal base fática, caracterizaria o tipo penal do art. 96, do Estatuto do Idoso, pois haveria indevida limitação ao exercício de um direito de cidadania da pessoa idosa, “considerando a cidadania como resultante de todos os direitos, liberdades e prerrogativas conferidas por lei ou pela Constituição a qualquer pessoa.”1

E a ausência de critério legal para a recusa é que retira a culpa do ato do notário ou mesmo a existência de ato contrário à normatização correicional, constante do já citado item 1.3. Afinal, se o pedido não fosse de lavratura de escritura declaratória de união estável, mas sim de pedido de habilitação para celebração de casamento, não haveria qualquer espaço legal ou hermenêutico para a recusa ou o condicionamento do exercício do direito potestativo.

Ausente impedimento legal para o ato que se realizava, ou seja, ausente a ilicitude absoluta do objeto em si união estável entre pessoas com grande diferença de idade -, eventual responsabilidade administrativa do notário pela lavratura do ato caracterizaria o reconhecimento da culpa pela falta de consideração de elementos que, em linhas finais, se ligam à eficácia legal do ato, seja por nulidade absoluta (simulação), seja por nulidade relativa (erro, dolo). Exigir-se-ia do notário a prévia apuração da veracidade das declarações dos comparecentes, a fim de se verificar a existência ou não de ato simulado ou anulável por erro ou dolo, o que, no sistema brasileiro, não se admite.

Ou seja, não poderia o notário afirmar fraude à lei ou vício na manifestação de vontade tão somente com base na diferença de idade entre os declarantes, ou mesmo com base na idade de uma das partes, sem que ultrapassasse os limites legais de sua atuação como notário. Deve ele limitar-se, no aspecto da legalidade, verificar se o ato é possível.

Eventual pesquisa, apuração ou questionamento da ineficácia do ato por simulação, realizada por interessado que venha de qualquer forma a sofrer os efeitos jurídicos da declaração fixada no ato notarial, e que indique a ocorrência de tal nulidade, não significa o reconhecimento de culpa do notário. Não se exige deste a investigação da veracidade das declarações, nem de eventual ineficácia por conta de nulidade a ser arguida e demonstrada por terceiro interessado.

Desta forma, o fato de se indicar a simulação do ato declarado a partir de apuração de órgão administrativo ao qual se impunha a eficácia do ato declarado na escritura não caracteriza a quebra de um dever do notário, eis que limitada sua atuação preventiva à verificação da capacidade e legitimidade para o ato, bem como sua licitude objetiva.

A possível existência de fraude, quando vinculada ao aspecto subjetivo da manifestação de vontade, como no caso de reserva mental, não permite a interferência do notário, por significar um julgamento da vontade final e dissimulada pela vontade declarada. A fraude apta à recusa de lavratura do ato é objetiva, verificável entre o objeto da declaração e o ordenamento jurídico, e não em relação à causa ou intenção das partes, isentos da investigação pessoal do notário.

Nem se diga, em complemento, que a escolha do regime de bens para a união estável que seja vedado ao cônjuge idoso, aceita pelo notário no ato declaratório, caracterizaria sua culpa administrativa a justificar a punição impugnada.

A uma porque a declaração de como desde o passado teriam os companheiros estabelecido o regime de bens não estaria impedido pela existência de um regime legal. É que, diversamente do casamento, o regime de bens declarado na escritura declaratória de união estável tem efeito ex tunc, refletindo algo que já é quanto à relação patrimonial escolhida pelos companheiros, desde quando iniciada a convivência, enquanto no casamento o regime de bens tem efeitos ex nunc. Não caberia ao notário, assim, questionar algo que já é, conforme a declaração dos interessados, embora orientando-os quanto à possível ineficácia da escolha dos companheiros.

A duas porque de duvidosa constitucionalidade o dispositivo que impõe regime legal de bens aos cônjuges maiores de 70 anos (art. 1.641, II, CC) autorizando a pretensão ao afastamento pelos companheiros, os quais poderiam buscar a manutenção da eficácia externa em caso de questionamentos por terceiros.

Por tais ângulos, não se vê, por parte do apelante, cometimento de ilícito administrativo culposo, seja pela inevitabilidade do ato pretendido pelos declarantes, seja pela ausência de quebra de um dever legal a caracterizar conduta culposa.

E sem tal conduta culposa, não há que se falar em responsabilidade disciplinar.

A responsabilidade disciplinar administrativa do notário ou do registrador não pode prescindir da verificação de conduta dolosa ou culposa do imputado. No dizer da doutrina,

“Em ambos os quadros [dolo e culpa em sentido estrito], a culpa é um mal, porque sempre implica uma desordenação voluntária relativa aos fins exigíveis da conduta humana. É exatamente porque se poderia e deveria agir de outro modo, para assim cumprir os fins a que se tinham por devidos, que alguém pode dizer-se culpado em dada situação concreta. Se, pois, a culpa pressupõe a possibilidade de ter agido de outra maneira, são seus pressupostos indispensáveis (i) a contingência da ação e (ii) a liberdade de agir ou não agir, bem como a liberdade de agir de um modo ou de outro. Assim sendo, não há culpabilidade possível quanto não haja contingência na conduta e liberdade no exercício (a de agir ou não agir) e de especificação (a de eleger os meios de agir).”2
Há de se observar a concorrência de elementos objetivo e subjetivo para a caracterização da infração disciplinar do notário. Ou seja, a conduta havida por infração disciplinar ou funcional, deve-se observar uma conduta dolosa ou culposa do notário ou seu preposto, observando-se, neste último caso, uma falha no dever de cuidado na verificação da legalidade e legitimidade do ato.

Mais que isto, a responsabilidade administrativa somente surge com a existência de uma conduta ilícita no aspecto dos deveres administrativos, sendo certo que tal qualificação da ilicitude não pode ser irrazoável ou mesmo fugir ao princípio da legalidade. Não se pode considerar ilícito administrativo a conduta que, em seu aspecto material e legal, não comporta nenhuma ilicitude conhecível de ofício, mas que tem seu regime de confronto vinculado à questão da eficácia ou ineficácia privada do ato, ou mesmo da aferição da divergência entre a vontade declarada e a vontade real do declarante.

Embora a configuração do ilícito administrativo não se sujeite objetivamente ao princípio da tipicidade, não se pode esvaziar o conceito formal de culpa para se configurar a conduta culposa punível no âmbito administrativo.

O elemento subjetivo, aqui, não pode ser relegado a um segundo plano, certo que “o agente deve ter praticado o ato tido por ilícito com a intenção de realizar a conduta ou, ao menos, faltando com o dever de cuidado na vigilância dos atos praticados por seus funcionários ou mesmo por ter dado orientações errada ou incompatíveis com a boa e leal prestação da função pública.”3

E, no caso, não há como se imputar ao notário a responsabilidade pela verificação de eventual fraude ou simulação na declaração de vontade feita pelos interessados, concernente à existência de união estável entre ambos.

A fé pública do instrumento notarial não diz respeito ao conteúdo da vontade declarada pelas partes, mas sim quanto à existência da declaração em si e, naturalmente, seus efeitos.

A qualificação, como ato de ciência do notário e do registrador, ao analisar os aspectos subjetivos e objetivos do ato a ser realizado, não pode significar um juízo de valor do fato em si retratado pelas partes, mas apenas a análise da situação jurídica das partes e a melhor forma jurídica de concretizar tal vontade, desde que presentes a legalidade objetiva do ato, a capacidade das partes e sua legitimidade. Não lhe cabe alterar a vontade declarada, ou a situação fática descrita, mas apenas adequá-la à melhor fattispecie prevista no ordenamento jurídico.

De dois modos seria possível cogitar do instrumento notarial quanto à união estável: (i) sob o modo de escritura declarativa; (ii) sob o de ata de notoriedade.

Naquela, na escritura de declaração, o notário recolhe apenas o que declaram os clientes, sem que haja fé pública sobre o ato-conteúdo. É o que se tem feito ordinariamente no Brasil.

A ata de notoriedade exigiria diligências que, sem previsão legal na normativa brasileira, não parece possam admitir-se. De toda a sorte, a ata de notoriedade não empola a fé pública quanto a seu conteúdo, porque essa ata não tem o fim de provar a existência de um fato notório, mas apenas o objeto de recolher o que alguns tenham por certo em determinado círculo social.

Tendo a escritura declaratória de união estável natureza algo similar à da ata notarial, tem-se na declaração das partes o limite da presunção decorrente da fé pública. É que “a ata não acredita a veracidade de tais declarações, mas sim do fato de que determinada pessoa faz tais declarações em determinado momento. O que se acredita, portanto, não é o conteúdo da declaração, mas sim a declaração como tal (…), devendo o declarante assumir os efeitos de sua declaração, o que o notário advertira de modo conveniente”.4

Assim, em conclusão, tem-se que o ato notarial realizado, apesar da diferença de idade entre os declarantes, a idade longeva da declarada companheira, e a descoberta posterior de que um dos declarantes vivia em união estável com outra mulher, e que seria parente (sobrinho-neto) da companheira, não pode ser qualificado como culposo. Nem se observa, pelo caráter subjetivo da fraude, falha no cumprimento de dever legal previsto em lei ou em norma administrativa, pois tal verificação demandaria investigação prévia da vida pessoal e da divergência entre a vontade declarada e a vontade querida dos declarantes, eis que, em linhas finais, proibição da existência de união estável entre pessoas de grande diferença de idade ou de idade longeva.

Por estes fundamentos, DOU PROVIMENTO ao recurso para julgar improcedente o processo administrativo disciplinar movido em face de Paulo Augusto Rodrigues Cruz, 11º Tabelião de Notas da Capital.

SALLES ABREU

Presidente da Seção de Direito Criminal Relator

__________________

1 BONINI, Paulo Rogério; LAVORENTI, Wilson; BALDAN, Edson Luís. Leis penais especiais anotadas. 13ª ed., Campinas: Millenium, 2016, p. 341.

2 DIP, Ricardo. Conceito e natureza da responsabilidade disciplinar dos registradores públicos. São Paulo: Quartier Latin, 2017.

3 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Manual de direito notarial. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 246.

4 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Manual de direito notarial. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 530.

Fonte: CNB/SP – TJSP | 29/08/2017.

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Provimento CG nº 40/2017 dispõe sobre gratuidade em averbação referente à reconhecimento de paternidade

DICOGE 5.1

PROCESSO Nº 2017/113083 – SÃO PAULO – CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. 308/2017-E

Registro Civil – Reconhecimento de Paternidade – Vigência da Lei 13.257/2016, com alteração de dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente – Gratuidade de toda averbação referente ao reconhecimento de paternidade no assento de nascimento, bem como da correspondente certidão – Revogação do Provimento CNJ 19/2012 – Necessidade de adequação do texto do item 124 do Capítulo XVII das Normas de Serviço.

Vistos.

Trata-se de pedido de providências instaurado em razão de consulta formalizada pelo Conselho Nacional de Justiça tendo em vista a entrada em vigor da Lei 13.257/2016.

A Corregedoria Geral de Justiça prestou informações (fls. 13/15).

Após a consulta realizada, o Conselho Nacional de Justiça revogou o Provimento 19/2012 (fls. 114/115).

É o relatório.

Opino.

Preceitua o item 124 do Capítulo XVII das NSCGJ:

124. Nos casos de averbação de reconhecimento de filho serão observadas as diretrizes previstas nos Provimentos nº 16 e nº 19 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ.

124.1. Submete-se à égide do Provimento nº 16 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, o reconhecimento espontâneo de filho realizado junto às Defensorias Públicas e os Ministérios Públicos dos Estados e aquele em que a assinatura tenha sido abonada pelo diretor do presídio ou autoridade policial, quando se tratar de pai preso.

124.2. Se não for requerida a gratuidade e o reconhecimento se realizar em Registro Civil das Pessoas Naturais diverso daquele em que lavrado o assento de nascimento, o Oficial preparará a documentação e a entregará à parte para o encaminhamento necessário.

124.3. No caso do subitem anterior, é vedada a intermediação da arrecadação e repasse dos emolumentos devidos.

124.4. Depois de averbado o reconhecimento de filho no registro de nascimento, a averbação correspondente no registro de casamento da pessoa reconhecida ou no registro de nascimento de seus filhos será feita por este mesmo procedimento, independentemente de manifestação do Ministério Público, ou de decisão judicial.

Com a entrada em vigor da lei 13.257/2016, houve a alteração do texto dos parágrafos 5º e 6º do artigo 122 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que passaram a ter a seguinte redação:

“§5º Os registros e certidões necessários à inclusão, a qualquer tempo, do nome do pai no assento de nascimento são isentos de multas, custas e emolumentos, gozando de absoluta prioridade.
§6º São gratuitas, a qualquer tempo, a averbação requerida do reconhecimento de paternidade no assento de nascimento e a certidão correspondente.”

A nova legislação estabeleceu a gratuidade de toda e qualquer averbação referente ao reconhecimento de paternidade no assento de nascimento, bem como da correspondente certidão, sem qualquer ressalva ou restrição.

Com a modificação da legislação federal, as normas de hierarquia inferior devem ser modificadas, como é o caso do Provimento CNJ 19/2012 e do item 124 das NSCGJ.

Por essas razões e tendo sido revogado o Provimento CNJ 19/2012, as NSCGJ devem ser alteradas, conforme minuta que segue.

Sub censura.

São Paulo, 17 de agosto de 2017.

(a) Paula Lopes Gomes
Juíza Assessora da Corregedoria

DECISÃO: Aprovo, pelas razões expostas, a edição do Provimento sugerido, conforme minuta apresentada, a ser publicado, juntamente com o parecer, no DJE. Publique-se. São Paulo, 18 de agosto de 2017. (a) MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS, Corregedor Geral da Justiça.

PROVIMENTO CG N.º 40/2017

Altera a redação do item 124 do Capítulo XVII das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça.

O DESEMBARGADOR MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS, CORREGEDOR GERAL DA JUSTIÇA, NO USO DE SUAS ATRIBUIÇÕES LEGAIS,

CONSIDERANDO a necessidade de adequação do texto das Normas de Serviço à legislação em vigor;

CONSIDERANDO a entrada em vigor da Lei 13.257/2016 e a alteração de dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente;

CONSIDERANDO a revogação do Provimento CNJ 19/2012;

RESOLVE:

Artigo 1º – O item 124 do Capítulo XVII das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça passa a ter a seguinte redação:

124. Nos casos de averbação de reconhecimento de filho serão observadas as diretrizes previstas no Provimento nº 16 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ.

124.1. Submete-se à égide do Provimento nº 16 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, o reconhecimento espontâneo de filho realizado junto às Defensorias Públicas e os Ministérios Públicos dos Estados e aquele em que a assinatura tenha sido abonada pelo diretor do presídio ou autoridade policial, quando se tratar de pai preso.

124.2. Se o reconhecimento se realizar em Registro Civil das Pessoas Naturais diverso daquele em que lavrado o assento de nascimento, o Oficial preparará a documentação e a entregará à parte para o encaminhamento necessário.

124.3. Os registros e certidões necessários à inclusão, a qualquer tempo, do nome do pai no assento de nascimento são isentos de custas e emolumentos, gozando de absoluta prioridade.

124.4. São gratuitas, a qualquer tempo, a averbação requerida do reconhecimento de paternidade no assento de nascimento e a certidão correspondente.

124.5. Depois de averbado o reconhecimento de filho no registro de nascimento, a averbação correspondente no registro de casamento da pessoa reconhecida ou no registro de nascimento de seus filhos será feita por este mesmo procedimento, independentemente de manifestação do Ministério Público, ou de decisão judicial.

Artigo 2º – Este provimento entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições contrárias.

São Paulo, 18 de agosto de 2017
(a) MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS
Corregedor Geral da Justiça

Fonte: Anoreg/SP – DJE/SP | 29/08/2017.

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CSM/SP: Registro de Imóveis – Escritura de compra e venda – Outorga pela titular de domínio diretamente ao último cessionário – Existência de cessões intermediárias – Desnecessidade de anuência dos cedentes – Inexistência de afronta ao princípio da continuidade – Dúvida improcedente – Recurso provido.

Apelação nº 1035060-44.2015.8.26.0114

Espécie: APELAÇÃO
Número: 1035060-44.2015.8.26.0114
Comarca: CAMPINAS

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

Apelação nº 1035060-44.2015.8.26.0114

Registro: 2017.0000530805

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos do(a) Apelação nº 1035060-44.2015.8.26.0114, da Comarca de Campinas, em que são partes é apelante EVERALDO LINGUITE DE MOURA, é apelado 3º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA DE CAMPINAS.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento ao recurso. V. U.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este Acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores PAULO DIMAS MASCARETTI (Presidente), ADEMIR BENEDITO, XAVIER DE AQUINO, JOÃO CARLOS SALETTI, RICARDO DIP (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO) E PÉRICLES PIZA.

São Paulo, 20 de julho de 2017.

MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Apelação nº 1035060-44.2015.8.26.0114

Apelante: Everaldo Linguite de Moura

Apelado: 3º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de Campinas

VOTO Nº 29.777

Registro de Imóveis –  Escritura de compra e venda – Outorga pela titular de domínio diretamente ao último cessionário –  Existência de cessões intermediárias – Desnecessidade de anuência dos cedentes – Inexistência de afronta ao princípio da continuidade – Dúvida improcedente – Recurso provido.

Trata-se de recurso de apelação interposto contra a sentença de fls. 51/52, que manteve a recusa do registro de escritura pública de compra e venda lavrada pelo 1º Tabelião de Notas de Campinas, envolvendo imóvel objeto da transcrição n. 15.677, do 3º Registro de Imóveis de Campinas, sob o argumento de desrespeito ao princípio da continuidade.

Sustenta o apelante que: a) não houve ofensa ao princípio da continuidade, uma vez que compareceram como outorgante vendedora a titular dominial e, como cedentes ou anuentes, IMÓVEIS ICARAÍ LTDA., JOAQUIM CALDEIRAS DIAS e ALDIZ TEIXEIRA DIAS, b) recolhidos os ITBI’s correspondentes, não havendo sequer prejuízo ao erário municipal (fls. 59/65), c) reside no imóvel em questão há 27 anos sem qualquer interpelação por parte dos cedentes, tendo o MM. Juiz sentenciante incorrido em erro na análise da cadeia registral.

A Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo provimento do recurso (fls. 77/80).

É o relatório.

De acordo com as informações que constam da certidão de fls. 31, o imóvel em questão é de propriedade de COMPANHIA DE MELHORAMENTOS DE CAMPINAS. Consta, ainda, que a titular de domínio firmou compromisso de compra e venda em favor da COMPANHIA NACIONAL DE MELHORAMENTOS S/A. Esta, por sua vez, firmou contrato particular por meio do qual prometeu ceder e transferir seus direitos a IMÓVEIS ICARAÍ LTDA.. Por instrumento particular não registrado (fls. 14/17), IMÓVEIS ICARAÍ LTDA. obrigou-se a transmitir seus direitos a JOAQUIM CALDEIRAS DIAS. Finalmente, por escritura de venda e compra (fls. 07/10), COMPANHIA MELHORAMENTOS DE CAMPINAS vendeu a EVERALDO LINGUITE DE MOURA, ora recorrente, os direitos sobre o imóvel em questão, figurando como cedentes IMÓVEIS ICARAÍ LTDA., JOAQUIM CALDEIRAS DIAS e sua esposa ALDIZ TEIXEIRA DIAS.

Pretende a recorrente o registro da escritura pública de compra e venda acima mencionada, sustentando que não viola o princípio da continuidade, estando respeitada toda cadeia dominial.

Todavia, consoante nota devolutiva de fls. 13, seria necessário que fosse apresentado para exame e registro o instrumento de efetivação da promessa de cessão da COMPANHIA NACIONAL DE MELHORAMENTOS S/A em favor de IMÓVEIS ICARAÍ LTDA.. Reapresentado o título, sobreveio nova nota de devolução em que a exigência foi reiterada.

De fato, na escritura pública que os recorrentes pretendem registrar, não constou a anuência da COMPANHIA NACIONAL DE MELHORAMENTOS S/A, a quem a COMPANHIA MELHORAMENTOS DE CAMPINAS, titular dominial, havia prometido ceder seus direitos sobre o imóvel.

Entretanto, a questão é saber se a ausência de anuência dos cedentes anteriores – no caso, COMPANHIA NACIONAL DE MELHORAMENTOS S/A na escritura de venda e compra lavrada compromete a continuidade do registro.

E a resposta é negativa.

Ao tratar da ação de adjudicação compulsória, cuja sentença substitui a declaração de vontade que não pôde ser obtida, diz Ricardo Arcoverde Credie:

“…pleiteia-se a adjudicação compulsória diretamente do titular do domínio, o promitente vendedor. Estando irregistrado o instrumento de cessão, cabe o ajuizamento da ação quando o promissário vendedor exigir a presença do cedente do compromisso quando anuente na escritura definitiva: ao juiz caberá valorar os limites entre a prudência do vendedor e sua resistência àquele ato, sem descurar da verificação da idoneidade da cessão. Diferentemente será quando a cessão estiver registrada; aí, por causa do princípio da continuidade dos atos do Registro de Imóveis, é necessária a anuência do cedente na escritura definitiva, devendo ele, consequentemente, ser demandado com o titular do domínio, ambos no polo passivo da relação processual, para que também sua eventual omissão seja suprida sentencialmente.” (Adjudicação Compulsória, 9ª edição, Malheiros, 2004, p. 59/60).

A posição tradicional, portanto, exigia que titulares de domínio, juntamente com eventuais cedentes, estivessem no polo passivo da demanda que visa à obtenção de suprimento judicial da outorga de escritura definitiva.

Essa posição, no entanto, vem mudando.

O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp. 648.468, decidiu:

Adjudicação compulsória. Litisconsórcio. Cedentes. 1. Na ação de adjudicação compulsória é desnecessária a presença dos cedentes como litisconsortes, sendo corretamente ajuizada a ação contra o promitente vendedor. 2. Recurso especial conhecido e provido

Do corpo do voto do Relator, Ministro Menezes Direito, destaca-se a seguinte passagem:

Não vejo mesmo razão para que sejam chamados os cedentes como litisconsortes. A obrigação decorrente da adjudicação compulsória é do promitente vendedor, pouco relevando o papel dos cedentes, considerando que o direito que se pretende somente pode ser cumprido pelo titular do domínio.

Do voto-vista do Ministro Castro Filho, merece ênfase a passagem que segue:

Definida a ação de adjudicação compulsória como pessoal, que pertine ao compromissário comprador, deve ser ajuizada em face de quem seja o titular do domínio do imóvel. Assim, mesmo que caracterizada a cadeia de cessão de direito aquisitivos, exigível pela parte que integra o último elo da cadeia de cessões o registro da concretização da aquisição imobiliária contra aquele que possui o real domínio do bem, assim que ele reconhecer que o preço foi pago.

Esse novo entendimento, aliás, já foi adotado por este Conselho Superior:

REGISTRO DE IMÓVEIS – Ação judicial de adjudicação compulsória promovida em face dos que constam como proprietários do imóvel – Desnecessidade do registro dos documentos que instrumentalizam os sucessivos compromissos de venda e compra – Irrelevância do registro de um deles – Desqualificação registral afastada – Carta de sentença passível de registro – Dúvida improcedente – Recurso não provido” (Apelação nº 0020761-10.2011.8.26.0344, Rel. Des. José Renato Nalini, j. em 25/10/2012).

E se os cedentes não precisam constar no polo passivo da ação de adjudicação compulsória, não há razão para que seja diferente na hipótese de lavratura de escritura de compra e venda.

Com efeito, se a adjudicação compulsória objetiva um provimento judicial com a mesma eficácia da escritura não outorgada e se os proprietários tabulares – pelas decisões acima citadas – são os únicos que devem figurar no polo passivo dessa demanda, é forçoso concluir que os cedentes não precisam anuir na escritura de compra e venda lavrada entre a cessionária e os titulares de domínio.

Ou seja, para a transferência da propriedade para o último cessionário, basta que os titulares de domínio figurem como vendedores na escritura de compra e venda, não havendo necessidade de que os cedentes anteriores constem no instrumento na condição de anuentes.

E o raciocínio está respaldado pelo artigo 1.418 do Código Civil:

O promitente comprador, titular de direito real, pode exigir do promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste forem cedidos, a outorga da escritura definitiva de compra e venda, conforme o disposto no instrumento preliminar; e, se houver recusa, requerer ao juiz a adjudicação do imóvel.

Ao preceituar que o promitente comprador pode exigir a outorga da escritura definitiva de compra e venda do promitente vendedor, ou deterceiros, a quem os direitos deste forem cedidos, referido dispositivo legal deixa muito claro que o titular dominial, ainda que tenha celebrado compromisso de compra e venda anterior, pode dispor do imóvel.

Considerando que, pela lei, o proprietário pode transferir o imóvel a terceiro, com mais razão pode, sem a anuência dos cedentes anteriores, transferir a propriedade àquele que, na qualidade de cessionário de compromisso de compra e venda, provavelmente já desfruta de praticamente todos os poderes inerentes ao domínio (jus utendi e fruendi).

Parece bastante razoável a facilitação da consolidação da propriedade, extrajudicialmente, nas mãos daquele que é cessionário de sucessivos compromissos de compra e venda registrados. Entender de outra forma, considerando a inviabilidade de se obter a anuência de todos os cedentes da cadeia, seria obrigar a cessionária a mover ação de adjudicação compulsória contra proprietários tabulares e todos os cedentes ou, pior, ajuizar ação de usucapião.

Em situações análogas, essa foi a posição recentemente adotada por este Conselho:

Registro de Imóveis Dúvida julgada procedente Negativa de ingresso de escritura de venda e compra de imóvel Desrespeito ao registro anterior de instrumento particular – Desnecessidade da anuência dos compromissários compradores Inexistência de afronta ao Princípio da Continuidade Recurso provido” (Apelação nº 0025566-92.2011.8.26.0477, Rel. Des. José Renato Nalini, j. em 10/12/2013).

Registro de Imóveis Dúvida julgada procedente Compromisso de compra e venda registrado com sucessivas cessões – Negativa de ingresso de escritura de venda e compra de imóvel da qual participaram os proprietários tabulares e a última cessionária Desnecessidade da anuência dos cedentes Inexistência de afronta ao Princípio da Continuidade Recurso provido. (Apelação nº 1040210-48.2015.8.26.0100, Rel. Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças, j. em 08/04/2016).

Frise-se, por fim, que a escritura pública de compra e venda foi lavrada em 09 de fevereiro de 1989 (fls. 07/10), contando com a anuência de quase todos os cedentes, à exceção da COMPANHIA NACIONAL DE MELHORAMENTOS S/A. Esta, entretanto, firmou compromisso de venda e compra do imóvel em 04 de março de 1975, sendo sucedida por IMÓVEIS ICARAÍ e por JOAQUIM CALDEIRAS DIAS e sua esposa ALDIZ TEIXEIRA DIAS, os quais figuraram como anuentes na escritura pública. Portanto, é bastante improvável que haja qualquer pendência em relação ao cumprimento das cessões anteriores.

Pelo exposto, pelo meu voto, dou provimento ao recurso interposto.

MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS

Corregedor Geral da Justiça e Relator (DJe de 24.08.2017 – SP)

Fonte: INR Publicações.

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