O reconhecimento da multiparentalidade no Direito brasileiro

* Yves Zamataro

Em notícia recentemente divulgada pelos principais meios de comunicação, principalmente, no meio jurídico, vimos o STF, em votação no plenário virtual, reconhecer repercussão geral em tema que discute a prevalência da paternidade socioafetiva sobre a biológica. Essa questão chegou até o STF em decorrência de um processo no qual foi pedida a anulação de registro de nascimento feito pelos avós paternos, como se eles fossem pais, e o reconhecimento da paternidade do pai biológico.

Em 1ª instância, a ação foi julgada procedente, reconhecendo-se essa paternidade. Esse mesmo entendimento foi mantido em 2ª instância e pelo STJ. Entretanto, ao interpor recurso perante o STF, os demais herdeiros do pai biológico alegaram que a decisão do STJ, ao fazer prevalecer a paternidade biológica em detrimento à socioafetiva, afrontaria a disposição contida no art. 226, da CF, segundo o qual "a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado".

O relator do recurso, ministro Luiz Fux, levou a matéria ao exame do plenário virtual por entender que o tema – a prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica – é relevante sob os pontos de vista econômico, jurídico e social. Por maioria de votos, os ministros seguiram o relator.

A multiparentalidade deve ser entendida como a possibilidade de uma pessoa possuir mais de um pai e/ou mais de uma mãe, simultaneamente, produzindo efeitos jurídicos em relação a todos eles. Inclusive, no que tange a eventual pedido de alimentos e herança de ambos os pais.

Exemplificando, podemos citar a surpreendente decisão proferida pelo Poder Judiciário do Estado de RO decidir pelo registro, em certidão de nascimento, de dupla filiação paterna (biológica e socioafetiva) de uma criança que, comprovadamente, reconhecia os dois homens como pais e deles recebia, ao mesmo tempo, assistência emocional e alimentar.

De fato, o reconhecimento da multiparentalidade e, principalmente, a prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento à paternidade biológica representa um avanço significativo no Direito de Família. Consagram-se os princípios da dignidade humana e da afetividade, afastando-se a preocupação inicial com a proteção ao patrimônio, voltando-se à proteção das pessoas e, por consequência, passando a prevalecer, no âmbito jurídico, o trinômio amor, afeto e atenção.

Todavia, não se trata, ainda, de questão pacificada, dividindo-se a opinião de nossos principais juristas.

Para Regina Beatriz Tavares, professora de Direito de Família da FGV, "o vínculo de socioafetividade vai muito além do simples sustento, de morar sob o mesmo teto ou de dar assistência. Se a criança tem um pai biológico que a assiste, também, não cabe ter uma dupla paternidade."

De outro lado, por ocasião da decisão proferida pelo TJ/SP ao autorizar a inclusão o nome da advogada Vivian Medina Guardia na certidão de nascimento de seu enteado Augusto, o professor Flávio Tartuce, diretor do Instituto Brasileiro de Direito de Família, em SP, manifestou-se no sentido de que ela supera "A Escolha de Sophia", em alusão ao livro onde uma mãe, presa num campo de concentração, durante a Segunda Guerra, é forçada por um soldado nazista a escolher um de seus dois filhos para ser morto.

"A jurisprudência escolhia um ou outro. Agora, não. São os dois: o pai biológico e o afetivo."

Para o professor Flávio Tartuce, o reconhecimento da multiparentalidade produzirá efeitos em todas as esferas, mas principalmente, em questões de herança e pensão alimentícia.

De qualquer forma, em que pesem as manifestações e decisões proferidas a esse respeito, devemos nos conscientizar que se trata de um tema, ainda, delicado e que merece peculiar atenção. Principalmente, quanto ao seu real objetivo que, em hipótese alguma, deve ter caráter patrimonial.

Os laços de sangue e os socioafetivos devem seguir juntos sempre que essa união mostrar-se benéfica e de acordo com os interesses sociais e afetivos da criança ou adolescente envolvido.

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* Yves Zamataro é advogado do escritório Angélico Advogados.

Fonte: Migalhas I 02/09/2013.

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Paternidade socioafetiva x biológica

Por Eudes Quintino de Oliveira Júnior e Pedro Bellentani Quintino de Oliveira

Interessante e bem lançada a decisão proferida pelo juiz da comarca de Lajeado que julgou improcedente a pretensão do autor que visava a anular o registro de nascimento lavrado em seu nome, como pai. O processo tramitou em segredo de justiça e o autor da ação pleiteou a negativa de paternidade da filha, após realizar exame de DNA, que o excluiu biologicamente. O relato processual dá conta de que, durante doze anos, o requerente cultivou uma família na qual nasceu e cresceu a menina e sponte propria foi registrada por ele.

O conteúdo jurídico da sentença proferida pelo juiz Luiz Antônio de Abreu Johnson residiu no fato de que “dez anos se passaram desde o nascimento da filha até o ajuizamento da demanda. Houve convivência, houve troca, houve afeto. A menina foi apresentada à sociedade como filha, e ele como pai dela, e assim foi criada a ideia de pertencimento”.1

A cultura brasileira ainda carrega o inconveniente ranço dos “laços de sangue”, procurando deixar sempre evidenciada a importância da herança genética, como fator de segurança na afirmação da família e também na prevenção de doenças futuras, no caso daquelas hereditárias. A própria legislação civil revogada vedava o reconhecimento de filhos adulterinos e incestuosos, além de restringir os direitos do adotado. O critério é que mais legítimo seria o filho quanto maior fosse o grau de consanguinidade.

Lobo, com muita acuidade, acentua:

O CC, por seu turno, consagrou em sede infraconstitucional as linhas fundamentais da CF em prol da paternidade de qualquer origem e não apenas da biológica. Encerrou-se definitivamente o paradigma do CC anterior, que estabelecia a relação entre filiação legítima e filiação biológica; todos os filhos legítimos eram biológicos, ainda que nem todos os filhos biológicos fossem legítimos. Com o desaparecimento da legitimidade e a expansão do conceito de estado de filiação para abrigar os filhos de qualquer origem, em igualdade de direitos (adoção, inseminação artificial heteróloga, posse de estado de filiação), o novo paradigma é incompatível com o predomínio da realidade biológica. Insista-se, o paradigma atual distingue paternidade e genética”.2

Após a CF. várias inovações foram inseridas no direito à procriação. Todos os filhos, havidos ou não fora do casamento, assim como aqueles provenientes de adoção, gozam dos mesmos direitos, sem quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Nasce, então, não só pelo permissivo legal, mas também como um novo conceito social, a paternidade socioafetiva, na qual alguém, sem qualquer vínculo sanguíneo e sem imposição legal, recebe uma criança como filho, tendo como sustentáculo o sentimento de afeto e amor.

No caso em comento, a filha sente-se filha dos pais com quem conviveu e realizou sua história de vida até então e os pais, da mesma forma, sempre agiram com a devoção peculiar daqueles que geraram. Pai e mãe, desta forma, pelo novo perfil da família, não são aqueles que cederam o material procriativo e sim aqueles que criaram, educaram e dispensaram afeto e carinho, procurando conferir um ambiente perfeito e responsável para que a criança possa desenvolver suas qualidades, viver em harmonia e atingir a plena realização. É o demonstrativo mais sincero de que o afeto fala mais alto do que qualquer prova sanguínea.

Todo tipo de relacionamento, em qualquer idade, na realidade, se traduz no apego. A convivência de vários anos com canais comunicantes faz com que as pessoas vivam muito próximas, criando vários espaços de sintonia afetiva. A criança, em razão da tenra idade, vive em função de seus cuidadores e junto deles procura criar uma base estrutural com a solidez necessária. A vulnerabilidade do ser humano inicia com seu próprio nascimento e se desenvolve pelas várias fases da vida. É justamente nos primeiros anos que surge a convivência de dominação, não no sentido egoístico, mas sim no de exploração de todas as qualidades e virtudes recomendadas, mesmo sem o determinismo genético. Cyrulnik, neuropsiquiatra e chefe de ensino da “clínica do apego”, da Universidade de Toulon, em definição exemplar, alertou que “a gente não se apega ao mais gentil ou ao mais diplomado, a gente se apega a quem nos dá segurança”.3

As duas paternidades podem ser questionadas na justiça com a apresentação de todos os meios de provas considerados idôneos em direito. Não seria nenhum contrassenso dizer que a melhor paternidade seja a decorrente da junção da biológica com a afetiva, pois reúne os dois ingredientes necessários para facilitar a perfeita e harmônica convivência. Se o filho adotado pleitear, como agora é permitido pelo ECA, o reconhecimento de sua origem genética, não contraria em nada a paternidade já firmada como afetiva, pois se trata do exercício do direito de conhecer sua cadeia genética. O código menorista deixa evidenciado: “O Adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos”.4

Em decisão recente, porém, a 4ª turma do STJ, em processo que teve como relator o ministro Luis Felipe Salomão, entendeu que “deve prevalecer a paternidade socioafetiva sobre a biológica para garantir direitos aos filhos, na esteira do princípio do melhor interesse da prole, sem que, necessariamente, essa afirmação seja verdadeira quando é o filho que busca a paternidade biológica em detrimento da socioafetiva”.5

No caso do julgado, trata-se de “adoção à brasileira”, pois a menina foi entregue a um casal que a registrou como se fosse o pai e a mãe biológicos. Posteriormente, com a morte dos pais registrais, quando a autora contava com 47 anos de idade, pleiteou ação de investigação de maternidade e paternidade com anulação de registro contra seus pais biológicos. O juízo de primeiro grau deferiu o pedido, mas manteve o registro de nascimento inalterável. O TJ/RS reformou a sentença, julgou a ação improcedente porque flagrantemente descabida a investigação de paternidade quando resta consolidada a relação jurídica de paternidade socioafetiva com o pai e a mãe registrais.

A decisão do STJ desconstitui o vínculo socioafetivo desenvolvido durante muitos anos entre a autora e seus pais registrais, que são excluídos da certidão e dão lugar aos pais biológicos, sem qualquer convivência. Mas, como bem ressaltado pelo digno Relator, trata-se de “adoção à brasileira” e a filha tem o direito de conhecer sua origem genética, principalmente por não ter contribuído com a existência de erro ou falsidade no documento registral.

Mas, mesmo com a existência da falsidade na declaração de nascimento, criou-se um vínculo muito maior que ultrapassa todas as letras da lei e vai ao encontro do anseio de aceitabilidade legal e até mesmo popular. O que se leva em consideração é justamente o afeto, o pertencimento, o envolvimento emocional que impulsionou as pessoas que participaram do relacionamento familiar afetivo. O tempo de convivência estabeleceu um regramento todo especial. Tamanha é sua força, que se encarregou de decretar a extinção de punibilidade por eventual delito e fez com que prevalecesse o documento registral como prova inconteste de filiação. Seria até mesmo certa contradição o pai biológico, após muitos anos sem se interessar pela prole, num repente, ocupar o espaço daquele que durante toda uma vida dedicou esforço e comprometimento na educação da criança.

O STF já lançou olhares a respeito da prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica e, em votação eletrônica regulamentada pela EC 45, reconheceu a repercussão geral do tema pela sua relevância sob os pontos de vista econômico, jurídico e social.6

É certo que o patrimônio genético, apresenta-se como dado importante. É aquele que assegura a própria sobrevivência da espécie, por isso rotulado de patrimônio genético da humanidade. O Conselho da Europa, preocupado com os procedimentos inescrupulosos, recomendou a intangibilidade da herança genética levando em consideração as intervenções artificiais. “O patrimônio genético, como o próprio nome diz, afirma Oliveira Júnior, é a somatória das conquistas do homem, no plano físico, psíquico e cultural, que o acompanha através de seus registros biológicos, faz parte de sua história e evolução e, como tal, merece a proteção legal. É o relato e o retrato da raça humana, desde o homem de Neandertal. Passa a ser objeto de tutela pessoal e estatal e qualquer ofensa a ele é desrespeito à própria humanidade. A proteção desloca-se da individualidade do ser humano já formado, com personalidade própria, para aquele que ainda vem a ser, com personalidade jurídica”.7

O próprio CC, que entrou em vigência em 2002, trouxe considerável colaboração com nova postura em razão dos avanços da engenharia genética. Desprezou a regra de que a maternidade é sempre certa (maternitas certa est). Resolve-se, desta forma o impasse para saber se a mãe vem a ser a que doou os óvulos ou a que os recebeu e gerou o filho. Mas, em contrapartida, é de se indagar também a respeito da prole de ambas. Como não há qualquer registro ou banco de dados a respeito da ovodoação, pode até ser que os filhos, sem a catalogação genética necessária, venham a se casar entre si e trazer outros complicadores biológicos e legais.

Nesta linha de pensamento, apesar do DNA ter apontado outro pai biológico, tem-se a impressão que a mais coerente interpretação seja a de manter a paternidade registral, sem prejuízo do reconhecimento da paternidade biológica, como um dado genético, próprio da natureza. Será o demonstrativo a inteligência, o espírito humano, a convivência entre as pessoas, a troca de afetos, o pertencimento, a solidariedade sempre presente, sentimentos esses comunicantes, estabelecem e fortalecem a relação familiar. A relação biológica carrega somente a origem genética, que passa para o segundo plano num mundo em que se busca muito mais do que a informação da natureza.

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1 Processo 110.005.897, que tramita em segredo de justiça, pela comarca de Lajeado (RS).

2 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Paternidade socioafetiva e o retrocesso da súmula 301 do STJ. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1036, 3 maio 2006 .

3 Cyrulnik, Boris. Dizer e morrer. Tradução Claúdia Berliner – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. 102.

4 Artigo 48 do ECA.

5 O número e o processo não foram divulgados em razão de sigilo judicial.

6 ARExt 692.186.

7 Oliveira Júnior, Eudes Quintino de. As condutas e responsabilidades médicas em face do princípio da autonomia do paciente. Tese de Doutorado. Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto – Famerp – São José do Rio Preto, 2010, p. 120.

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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado e advogado; Pedro Bellentani Quintino de Oliveira é advogado.

Fonte: Migalhas | 05/07/2013.

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