Civil e processual – Embargos de Divergência em Recurso Especial – Contrato de factoring – Duplicatas previamente aceitas – Endosso à faturizadora – Circulação e abstração do título de crédito após o aceite – Oposição de exceções pessoais – Não cabimento – 1. A duplicata mercantil, apesar de causal no momento da emissão, com o aceite e a circulação adquire abstração e autonomia, desvinculando-se do negócio jurídico subjacente, impedindo a oposição de exceções pessoais a terceiros endossatários de boa-fé, como a ausência ou a interrupção da prestação de serviços ou a entrega das mercadorias – 2. Hipótese em que a transmissão das duplicatas à empresa de factoring operou-se por endosso, sem questionamento a respeito da boa-fé da endossatária, portadora do título de crédito, ou a respeito do aceite aposto pelo devedor – 3. Aplicação das normas próprias do direito cambiário, relativas ao endosso, ao aceite e à circulação dos títulos, que são estranhas à disciplina da cessão civil de crédito – 4. Embargos de divergência acolhidos para conhecer e prover o recurso especial.

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RESP Nº 1.439.749 – RS (2011/0222365-6)

RELATORA : MINISTRA MARIA ISABEL GALLOTTI

EMBARGANTE : CREDFACTOR FOMENTO COMERCIAL LTDA

ADVOGADO : SABRINA FERREIRA NEVES – RS075444

EMBARGADO : IRENO HILÁRIO SCHNEIDER

ADVOGADO : LUCIANO MANICA E OUTRO(S) – RS041495

INTERES. : ANFAC – ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE FOMENTO COMERCIAL – “AMICUS CURIAE”

ADVOGADO : JOSE LUIS DIAS DA SILVA E OUTRO(S) – SP119848

EMENTA

CIVIL E PROCESSUAL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. CONTRATO DE FACTORING. DUPLICATAS PREVIAMENTE ACEITAS. ENDOSSO À FATURIZADORA. CIRCULAÇÃO E ABSTRAÇÃO DO TÍTULO DE CRÉDITO APÓS O ACEITE. OPOSIÇÃO DE EXCEÇÕES PESSOAIS. NÃO CABIMENTO.

1. A duplicata mercantil, apesar de causal no momento da emissão, com o aceite e a circulação adquire abstração e autonomia, desvinculando-se do negócio jurídico subjacente, impedindo a oposição de exceções pessoais a terceiros endossatários de boa-fé, como a ausência ou a interrupção da prestação de serviços ou a entrega das mercadorias.

2. Hipótese em que a transmissão das duplicatas à empresa de factoring operou-se por endosso, sem questionamento a respeito da boa-fé da endossatária, portadora do título de crédito, ou a respeito do aceite aposto pelo devedor.

3. Aplicação das normas próprias do direito cambiário, relativas ao endosso, ao aceite e à circulação dos títulos, que são estranhas à disciplina da cessão civil de crédito.

4. Embargos de divergência acolhidos para conhecer e prover o recurso especial.

ACÓRDÃO – Decisão selecionada e originalmente divulgada pelo INR –

A Segunda Seção, por unanimidade, acolheu os embargos de divergência para, conhecendo e provendo o recurso especial, restabelecer a sentença que julgou improcedente o pedido, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Antonio Carlos Ferreira, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze, Moura Ribeiro, Luis Felipe Salomão e Raul Araújo votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Nancy Andrighi e Marco Buzzi.

Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino.

Consignadas as presenças dos Drs. Alexandre Fuchs das Neves, representante da embargante Credfactor Fomento Comercial Ltda, e Nelson Juliano Schaefer Martins, representante do amicus curiae Anfac – Associação Nacional de Fomento Comercial.

Brasília (DF), 28 de novembro de 2018(Data do Julgamento)

MINISTRA MARIA ISABEL GALLOTTI

Relatora

RELATÓRIO

MINISTRA MARIA ISABEL GALLOTTI: Trata-se de embargos de divergência opostos em face de acórdão proferido pela Terceira Turma, sob a relatoria do Ministro João Otávio de Noronha, que negou provimento ao recurso especial interposto por CREDFACTOR Fomento Comercial Ltda, admitindo a oposição de exceções pessoais pelo devedor de crédito representado por duas duplicatas aceitas, cedidos à recorrente, em decorrência do apenas parcial cumprimento do negócio jurídico subjacente, diante do encerramento das atividades da emitente dos títulos. A ementa possui a seguinte redação (fl. 278):

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ANULATÓRIA DE DUPLICATAS ACEITAS. DESCUMPRIMENTO DO NEGÓCIO JURÍDICO SUBJACENTE COMPROVADO. POSSIBILIDADE DE DISCUSSÃO COM A EMPRESA DE FACTORING.

1. No contrato de factoring, em que há profundo envolvimento entre faturizada e faturizadora e amplo conhecimento sobre a situação jurídica dos créditos objeto de negociação, a transferência desses créditos não se opera por simples endosso, mas por cessão de crédito, hipótese que se subordina à disciplina do art. 294 do Código Civil.

2. A faturizadora, a quem as duplicatas aceitas foram endossadas por força do contrato de cessão de crédito, não ocupa a posição de terceiro de boa-fé imune às exceções pessoais dos devedores das cártulas.

3. Recurso especial conhecido e desprovido.

Alega a embargante que precedente analisado pela Quarta Turma no REsp 668.682/MG (Rel. Ministro Hélio Quaglia Barbosa, unânime, DJU de 19.3.2007 – fls. 308/319) considerou que o aceite lançado nos títulos lhes confere abstração e autonomia, afastada a causalidade, de modo que não possui relevância a conclusão dos serviços ou a entrega do objeto da compra e venda, pois ao devedor não seria mais possível, a partir daí, opor exceções pessoais à faturizadora, portadora do título. A ementa desse precedente está assim redigida:

RECURSO ESPECIAL. COMERCIAL. TÍTULOS DE CRÉDITO. DUPLICATA. ACEITE. TEORIA DA APARÊNCIA. AUSÊNCIA DE ENTREGA DAS MERCADORIAS. EXCEÇÃO OPOSTA A TERCEIROS. PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DAS CAMBIAIS. IMPOSSIBILIDADE.

1. Ainda que a duplicata mercantil tenha por característica o vínculo à compra e venda mercantil ou prestação de serviços realizada, ocorrendo o aceite – como verificado nos autos -, desaparece a causalidade, passando o título a ostentar autonomia bastante para obrigar a recorrida ao pagamento da quantia devida, independentemente do negócio jurídico que lhe tenha dado causa;

2. Em nenhum momento restou comprovado qualquer comportamento inadequado da recorrente, indicador de seu conhecimento quanto ao descumprimento do acordo realizado entre as partes originárias;

3. Recurso especial provido.

Adiciona ainda a embargante que, ao contrário do suposto pelo relator do acórdão embargado, não existe envolvimento entre a empresa e o cedente/endossante dos títulos, e que o devedor foi notificado da transação, contra a qual não se opôs, havendo mesmo pago algumas prestações depois desse episódio.

Sustenta que a interpretação do julgado recorrido representa perigoso precedente que tem o efeito de conferir insegurança jurídica à atividade comercial do ramo ao qual pertence.

Invoca, ademais, outro julgamento, no REsp 261.170/SP (Quarta Turma, Rel. Ministro Luís Felipe Salomão, unânime, DJe de 17.8.2009), em que foi definido que as exceções pessoais não podem ser erigidas em face do terceiro de boa-fé.

Argumenta, para finalizar, que o art. 294 do Código Civil não se aplica à espécie, que não constitui mera cessão civil de crédito, e que o julgado embargado ofende os arts. 43 do Decreto 2.044/1908; 17, 28 e 29 do Decreto 57.663/1966; e 25 da Lei 5.474/1968.

Às fls. 341/344, consta Petição atravessada pela ANFAC – Associação Nacional de Fomento Comercial, requerendo sua intervenção no feito na condição de amicus curiae, nos termos do art. 139 do Código de Processo Civil atual.

Admitidos os embargos e a intervenção da ANFAC, a quem se oportunizou a apresentação de razões (fls. 350/352).

Às fls. 356/375, a entidade classista alude que é errônea a asserção de que existe profundo envolvimento entre faturizada e faturizadora ou conhecimento acerca do negócio subjacente, que originou o título, pressupostos fáticos ausentes do acórdão estadual, diante de que a embargante não atuava na administração da empresa sacadora da duplicata, além de que a possibilidade de levantamento de exceções pessoais – depois de aceito, cedido sem oposição após ciência, e protestado o título – institui precedente que ameaça o setor, retirando a segurança jurídica e afligindo a economia e as oportunidades de financiamento ao setor produtivo.

Defende a existência de endosso cambiário na situação, diverso da cessão civil de crédito, cujas características especifica, de modo que se conservam os princípios próprios dos títulos de crédito – a autonomia, a cartularidade, a abstração e a literalidade, quando a aquisição operar-se de boa-fé por empresa de factoring, na esteira do que se decidiu também no REsp 612.423/DF (Terceira Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJU de 26.6.2006) e nos REsps 1.237.001/MG e 1.337.224/RS (Quarta Turma, Rel. Ministro Luís Felipe Salomão, DJe de 11.5.2015 e de 31.5.2016, respectivamente).

Apesar de intimado, Ireno Hilário Schneider não apresentou impugnação (cf. certidão de fl. 381).

Com vista dos autos, o Ministério Público Federal opinou no sentido do conhecimento e não provimento dos embargos de divergência (fls. 383/387).

É o relatório.

VOTO

MINISTRA MARIA ISABEL GALLOTTI (Relatora): De acordo com o que foi descrito no relatório, foram admitidos para discussão os presentes embargos de divergência por se considerar suficientemente demonstrado o dissídio em relação à natureza da transmissão da titularidade de títulos de crédito aceitos (duas duplicatas, no valor de R$ 3.150,00 (três mil, cento e cinquenta reais), adquiridos por empresa atuante no mercado de factoring, se de endosso ou de mera cessão civil de crédito, de onde emanaria ou não a possibilidade de oposição de exceções pessoais pelo sacado em face do substituto do credor.

Anoto que o acórdão embargado foi publicado em 15.6.2015 (fl. 290), antes da vigência da Lei 13.105 de 2015, estando o recurso sujeito aos requisitos de admissibilidade do Código de Processo Civil de 1973, conforme Enunciado Administrativo 2/2016 desta Corte.

Conforme exposto no parecer do Ministério Público Federal, há precedentes da Quarta Turma, posteriores ao acórdão paradigma, adotando a tese sufragada pelo acórdão embargado, inclusive de minha relatoria. Como será exposto a seguir, contudo, há também precedentes, também posteriores, corroborando a pretensão do embargante, o que demonstra a atualidade da divergência e a necessidade do aprofundamento do debate e consolidação da jurisprudência sobre o tema.

Após reflexão mais profunda, como já havia sinalizado anteriormente, por ocasião do julgamento do REsp 1.315.592/RS (Quarta Turma, Rel. Ministro Luís Felipe Salomão, por maioria, DJe de 31.10.2017), estou convencida de que, em se tratando de duplicata com aceite, a questão deve ser resolvida à luz da disciplina específica do mencionado título de crédito.

É certo que, em sua origem, a duplicata constitui título de crédito causal, vinculado à entrega das mercadorias ou à prestação de serviços, porém tal característica é conservada apenas até a emissão do aceite, expresso ou ficto, quando adquire feição e qualidades próprias dos títulos de crédito, tanto que se admite a sua circulação, por cessão ou endosso.

Isso porque o aceite empresta ao adquirente do crédito a segurança jurídica de que o negócio que justificou a emissão do título foi cumprido. A certeza é transmitida pelo próprio devedor (sacado), que, podendo recusar (Lei 5.474/68, art. 7º e 8º), aceitou o título. A partir do aceite, o título ganha abstração, passando a ser desnecessária a investigação da relação comercial subjacente.

Se não tem espaço a investigação da causa após o aceite, contraditório seria permitir a oposição de exceções pessoais pelo devedor à faturizadora, após a circulação da duplicada, portanto, com base em eventual descumprimento do contrato praticado pelo fornecedor ou prestador de serviços.

A presente reflexão tem alicerce no substrato fático da presente demanda, que é descrito pela sentença, sucintamente, nos seguintes moldes (fl. 154):

Comprovou a ré que o autor foi devidamente cientificado da cessão dos títulos (AR de fl. 54). As duplicatas foram regularmente aceitas pelo autor, tomando-se créditos líquidos e exigíveis. Descabe alegar contra a endossatária dos títulos questões relativas à constituição dos débitos. A falta de pagamento autoriza a credora a encaminhar os títulos a protesto.

O acórdão de segundo grau não se referiu a nenhum pormenor que permitisse alterar essa compreensão, verbis (fls. 184/188):

“Os documentos acostados evidenciam o endosso por faturização (cessão de crédito). O contrato de fls. 55/58 e as duplicatas de fls. 52/53 comprovam a negociação dos títulos questionados pelo autor, com pagamento de deságio, caracterizando operação de factoring entre o credor original Villa Florenza Móveis e Decorações Ltda. e a empresa recorrida.

Portanto, no caso concreto, assume relevância, frente ao endossatário, o descumprimento ou resolução do contrato subjacente.

Ademais, a duplicata é título eminentemente causal, devendo corresponder a negócio jurídico, relação comercial de compra e venda ou de prestação de serviço entre emitente e sacado, sob pena de não gerar qualquer obrigação comercial.

Extrai-se da prova produzida que o negócio subjacente não foi devidamente adimplido, de sorte que descabe a contraprestação do preço por parte do autor.

O dormitório foi instalado de modo incompleto e a cozinha não foi entregue ao autor. Nesse sentido as fotografias acostadas pelo demandante, fls. 24/26 e 31, além das declarações da testemunha Antonio José da Silva (fl. 95). Portanto, demonstrou o autor que não se perfectibilizaram os contratos de prestação de serviços havidos com a empresa fornecedora dos móveis.

E, embora os títulos contenham o aceite do sacado, cabe ressaltar que a duplicata pode ser resgatada pelo comprador antes do aceite ou mesmo antes do vencimento (art. 9º e 10º da Lei nº 5.474/1968). Admite ainda a duplicata reforma ou prorrogação do vencimento do prazo, mediante declaração em separado ou nela escrita, assinada pelo vendedor ou endossatário, ou por representante com poderes especiais (art. 11 da referida Lei).

Portanto, o aceite não torna irretorquível, irrefutável o crédito do cessionário.

Na situação concreta, é críveI a afirmação do autor no sentido de que somente apusera seu aceite porque os móveis estavam sendo produzidos, antes de verificar o descumprimento pela empresa e o encerramento posterior das atividades. O autor efetuou o pagamento de quase todos os valores contratados (mais de R$ 8.350,00), restando inadimplidas apenas as duas duplicatas ora questionadas (no valor total de R$ 3.150,00).

Assim, a situação sob exame torna cabível a oposição das exceções pessoais que caberiam contra o credor original, tornando inexigível frente ao autor o crédito representado nas discutidas duplicatas.

(…)

Ressalto, por fim, que remanesce a responsabilidade da cedente pelo pagamento dos valores inadimplidos, nos termos do contrato de faturização. (sem negrito no original)

O acórdão ora embargado corroborou o entendimento da origem, de que o endosso da duplicata, já aceita, para empresa de factoring, representa mera cessão de crédito, permanecendo possível ao comprador/devedor opor as exceções que seriam cabíveis em face do vendedor/endossante, mediante as seguintes considerações:

“O acórdão estadual admitiu a oposição de exceções pessoais pelo sacado à empresa de factoring ao fundamento de que o endosso por faturização representa verdadeira cessão de crédito, sujeitando-se à disciplina do art. 294 do Código Civil. Reconheceu, com base no contrato firmado entre a empresa Villa Florenza Móveis e Decorações Ltda. e a recorrente, que os títulos impugnados pelo autor foram negociados com pagamento de deságio, configurando a operação de factoring, diante do que o descumprimento do contrato subjacente, comprovado nos autos, assume relevância perante o endossatário. Aduziu que o aceite não torna irretorquível, irrefutável o crédito do cessionário e que, no caso, foi dado antes do descumprimento do contrato e do encerramento das atividades pela empresa Villa Florenza.

Este Tribunal tem mitigado os princípios da abstração e autonomia dos títulos de crédito em situações como a presenteÉ o que se extrai dos seguintes precedentes:

(…)

“PROCESSUAL CIVIL. COMERCIAL. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO. CHEQUES PÓS-DATADOS. REPASSE À EMPRESA DE FACTORING. NEGÓCIO SUBJACENTE. DISCUSSÃO. POSSIBILIDADE, EM HIPÓTESES EXCEPCIONAIS.

– A emissão de cheque pós-datado, popularmente conhecido como cheque pré-datado, não o desnatura como título de crédito, e traz como única conseqüência a ampliação do prazo de apresentação.

– Da autonomia e da independência emana a regra de que o cheque não se vincula ao negócio jurídico que lhe deu origem, pois o possuidor de boa-fé não pode ser restringido em virtude das relações entre anteriores possuidores e o emitente.

– Comprovada, todavia, a ciência, pelo terceiro adquirente, sobre a mácula do negócio jurídico que deu origem à emissão do cheque, as exceções pessoais do devedor passam a ser oponíveis ao portador, ainda que se trate de empresa de factoring.

– Nessa hipótese, os prejuízos decorrentes da impossibilidade de cobrança do crédito, pela faturizadora, do emitente do cheque, devem ser discutidos em ação própria, a ser proposta em face do faturizado.

– Recurso especial não conhecido.” (REsp n. 612.423/DF, Terceira Turma, relatora Ministra Nancy Andrighi, DJ de 26.6.2006.)

Do voto condutor do acórdão prolatado no último precedente acima colacionado, permito-me destacar o seguinte trecho, que, a meu juízo, bem justifica a razão pela qual deve ser permitida a oposição de exceção pessoal à empresa de factoring que tenha recebido título de crédito por endosso:

“O contrato de factoring não se resume à mera cessão de títulos de crédito por endosso, mediante o pagamento de valor previamente acordado pelas partes. Esse é apenas um aspecto dessa figura contratual, que é muito mais rica e complexa. O art. 15, inc. III, da Lei nº 9.249/95 define o factoring como a ‘prestação cumulativa e contínua de serviços de assessoria creditícia, mercadológica, gestão de crédito, seleção de riscos, administração de contas a pagar e a receber, compra de direitos creditórios resultantes de vendasmercantis a prazo ou de prestação de serviços’.

Ou seja, pela definição legal, vê-se que a atividade de factoring compõe um leque de serviços interligados. Segundo Luiz Lemos Leite, ‘factoring é uma atividade complexa, cujofundamento é a prestação de serviços, ampla e abrangente, que pressupõe sólidos conhecimentos de mercado, de gerência financeira, de matemática e de estratégiaempresarial, para exercer suas funções de parceiro dos clientes’ (‘O contrato de factoring’, in Revista Forense, 253/458-9, apud Arnaldo Rizzardo, Factoring, 3ª ed., São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2004, pág. 16).

Disso decorre que é fundamental, para a caracterização do contrato de factoring, um envolvimento entre faturizadora e faturizada bem mais profundo que a mera transferência de títulos. Há também a prestação de serviços de consultoria tendentes a, em última análise, otimizar a administração e o gerenciamento da carteira de clientes e dos créditos dasociedade faturizada.

Ora, sendo assim, não é razoável cogitar o completo desconhecimento, pela faturizadora, da situação de inadimplemento da sociedade faturizada. Não seria de forma alguma infundado exigir que o faturizador, pela própria natureza dos serviços que deve prestar, perquira sobre a situação jurídica dos créditos que estão à base dos títulos que adquire por endosso. Por um lado, tal providência iria ao encontro da obrigação do faturizador de orientar seu cliente para a manutenção de uma gerência financeira eficaz; por outro, reduziria os riscos a que estaria exposta a sociedade faturizadora, na medida em que impediria que ela adquirisse créditos evidentemente inexistentes, como é a hipótese dos autos.

Nesse sentido Arnaldo Rizzardo opina que ‘no factoring, há compra de créditos, ou do ativo de uma empresa, e não apenas de títulos. Não se opera o simples endosso, mas a negociação do crédito’, complementando que ‘não é sem razão que se faculta ao factor a escolha dos créditos. Ao receber o borderô dos títulos, tem ele a faculdade de rejeitar os que não lhe interesssam. Com os títulos, acompanham e podem ser exigidos os comprovantes da entrega das mercadorias, o que infunde maior garantia ao negócio.’ (op. cit., págs. 105 e 121)

Disso tudo decorre que a indagação sobre a origem do crédito adquirido no âmbito de um contrato de faturização, longe de ser algo inusitado, faz parte da natureza do contrato de factoring. A inexistência, portanto, do crédito representado pelo cheque endossado à faturizadora também poderá ser oponível a ela, conforme, inclusive, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:”

A recorrente se apega à circunstância de que as duplicatas possuem o aceite do recorrido, que poderia, à luz do disposto nos arts. 7º e 8º da Lei n. 5.474/1968, tê-lo recusado, mas não o fez. Assim, uma vez aceitas, as duplicatas se desvinculam do negócio jurídico subjacente, tornando líquida e certa a obrigação cambiária. Nesse sentido, invoca divergência do aresto recorrido com a tese firmada pela Quarta Turma no julgamento do REsp n. 668.682/MG (Relator Ministro Hélio Quaglia Barbosa, DJ de 19.3.2007), igualmente envolvendo empresa de factoring, cujo acórdão recebeu a seguinte ementa:

(…)

Nada obstante o precedente trazido à colação pela recorrente, alinho-me à tese que prevaleceu no julgado da Terceira Turma (REsp n. 612.423/DF), segundo a qual, na operação de factoring, em que há envolvimento mais profundo entre faturizada e faturizadora, não se opera um simples endosso, mas a negociação de um crédito, cuja origem é – ou pelo menos deveria ser – objeto de análise pela faturizadora, o que faz com que não se equipare a outros terceiros de boa-fé a quem o título pudesse ser transferido por endosso.

Aqui, ao contrário, houve verdadeira cessão de crédito, e não mero endosso, hipótese que se subordina à disciplina do art. 294 do Código Civil, ficando autorizada a discussão da causa debendi.

Anoto que o Tribunal a quo destacou ser crível a afirmação do autor de que somente apôs seu aceite nas cártulas porque os móveis contratados estavam sendo produzidos, vindo depois a ocorrer o descumprimento do quanto pactuado pela empresa Villa Florenza e o encerramento de suas atividades sem a conclusão dos serviços. Salientou ainda que o ora recorrido já havia pago quase todos os valores contratados (R$ 8.350,00), superiores até mesmo aos serviços que lhe foram efetivamente prestados, estando inadimplidas apenas duas parcelas (no total de R$ 3.150,00), sendo uma parte referente ao dormitório inacabado e outra à cozinha que nem sequer foi iniciada. Tais circunstâncias evidenciam que o sacado agiu com absoluta boa-fé.

Por outro lado, a recorrente, empresa de factoring a quem os títulos foram endossados por força de contrato de cessão de crédito e que mantém relação contratual com a empresa que emitiu as duplicatas, nos moldes delineados no trecho do voto da lavra da Ministra Nancy Andrighi, acima transcrito, não ocupa posição de terceiro de boa-fé imune às exceções pessoais dos devedores das cártulas que lhe foram transferidas. Provada a ausência de causa para a emissão das duplicatas, não há como a faturizadora exigir do sacado o pagamento respectivo.

A presunção favorável à existência de causa que resulta do aceite lançado nas duplicatas não se mostra absoluta e deve ceder quando apresentada exceção pessoal perante o credor originário ou seu faturizador.

A conclusão de que o aceite pode ser questionado em face de terceiro portador do título, ante a mera circunstância de se tratar de empresa de factoring, assim, conflita com o entendimento manifestado pela Quarta Turma no acórdão paradigmático, cuja ementa está reproduzida acima, no relatório (REsp 668.682/MG, Rel. Ministro Hélio Quaglia Barbosa, unânime, DJU de 19.3.2007).

Os fundamentos que conduziram aquele Colegiado a esse desfecho são os seguintes:

3. Debate-se, in casu, a possibilidade de oposição à recorrente, empresa de factoring e atual portadora dos títulos (dezenove duplicatas aceitas por funcionário da empresa recorrida), da inexistência de lastro negocial entre os contratantes originários, como restou comprovado nas instâncias ordinárias.

A doutrina possui consolidado entendimento sobre o tema.

Observe-se, por exemplo, a lição de Luiz Emygdio F. da Rosa Jr:

“(…)

A duplicata é titulo causal e, assim, o aceito é obrigatório, no sentido de que o sacado só pode recusá-lo por qualquer das razões previstas em lei. O aceito corresponde a uma declaração cambiária sucessiva e não necessária, e pode ser expresso, presumido ou por comunicação. Ocorre o aceite expresso ou ordinário quando o sacado apõe a sua assinatura na duplicata, reconhecendo a sua exatidão, tornando líquida a obrigação dela constante e obrigando-se como devedor direto e principal, podendo o título ser cobrado judicialmente mediante execução com base em título extrajudicial, independente de protesto (LD, art. 15, I). Assim, aceitando a duplicata, o sacado não mais poderá discutir a causa debendi porque o título liberta-se de sua causa originária em razão de ter reconhecido a sua exatidão e ter assumido a obrigação de pagá-lo no vencimento, tornando líquida a obrigação cambiária, ainda mais porque o sacado poderia ter recusado o aceite no prazo do art. 7º e pelas razões do art. 8º, e não o fez” (in Títulos de Crédito. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, página 690, grifos nossos).

Assim, também, os comercialistas Amador Paes de Almeida e Fran Martins:

“Título eminentemente causal, tem seu alicerce no contrato de compra e venda mercantil ou na prestação de serviços. Sem estes, como adverte Carlos Fulgêncio da Cunha Peixoto, é inexistente. Conquanto mantenha traços comuns com a letra de câmbio, desta distingue-se por ter a sua origem necessariamente presa a um contrato mercantil – disso decorrendo sua natureza causal. Daí só admitir, com relação ao sacador, as exceções que se fundam na devolução da mercadoria, vícios, diferenças de preços etc., exceções, entretanto, jamais argüíveis contra terceiros. Todavia, de causal torna-se abstrato por força do aceite, desvinculando-se do negócio subjacente sobretudoquanto se estabelece circulação por meio do endosso.

Não sem razão lembra Roberto Barcellos de Magalhães que, ‘com o ato do aceite e devolução, imprime-se-lhe o caráter de liquidez e certeza cambiárias, insuscetível de ser revogado ou restringido quanto aos seus efeitos pelo devedor comprador, nem atacado com fundamento em falta de causa, posto que já reconhecida esta em virtude daquele mesmo ato‘.

Contudo, têm admitido os tribunais a discussão da causa debendi entre as figuras intervenientes principais, ou seja, comprador e vendedor, fato esse, aliás, plenamente aceito por Pontes de Miranda: ‘Apenas entre os figurantes imediatos, isto é, entre os que estiverem em contato, no negócio jurídico subjacente, é possível trazerem-se esse e a sua causa, ou só a sua causa, à discussão. O título não deixou de ser abstrato. O processo é que permite exceções de natureza pessoal ou causal, como algo que emerge durante o processo ou durante o exercício da pretensão’.

A nosso ver, entretanto, redundando do aceite presunção favorável à existência de causa, só excessivo liberalismo admitirá discussão da causa debendi, sobretudo por se tratar de duplicata aceita, que é a que nos referimos, ponto de vista, aliás, de que não discrepa Luiz de Freitas Lima, que afirma textualmente: ‘Creio não ser mais viável discussão sobre a causa debendi, pois os arts. 7º e 8º da Lei nº 5.474, de 1968, dão ensejo à recusa justificada do aceite. Com efeito, desde que haja aceitação da duplicata, esta se torna abstrata, não mais se admitindo oposição ao seu pagamento” (Amador Paes de Almeida in Teoria e Prática dos Títulos de Crédito. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, páginas 186/187, grifos nossos);

“(…)

Como no contrato de compra e venda o comprador assume a obrigação de pagar (Código Comercial, art. 191; Código Civil, art. 1.122), sendo a duplicata extraída em face da fatura que é o documento comprobatório da venda, a assinatura no título [aceite] se torna obrigatória por parte do comprador para que, na época do vencimento, possa o vendedor exigir o pagamento. Adquire, assim, importância de destaque a declaração contida na duplicata e exigida como requisito essencial do título pelo número VIII do §1º do art. 2º. A duplicata, título causal, pois nascido sempre de uma compra e venda a prazo, com a assinatura do comprador desprende-se da causa que lhe deu origem já que o comprador não apenas reconheceu a exatidão da mesma como a obrigação de pagá-la na época do vencimento. A obrigação torna-se desse modo líquida, o que dá maior segurança de recebimento não apenas ao sacador-vendedor como a qualquer outra pessoa a quem o título seja transferido” (Fran Martins in Títulos deCrédito. Vol. II. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, página 165, grifos nossos).

4. As instâncias ordinárias, todavia, divergindo das lições acima reproduzidas, adotaram posicionamento diverso, que seria “fruto da evolução doutrinária e jurisprudencial a respeito”.

Assim, o Tribunal mineiro, arrimado na trajetória comercial da empresa emitente dos títulos, manteve a sentença que julgara procedente os embargos opostos.

Destaco, do decisum, o seguinte excerto:

“E sobre a alegada boa-fé da embargada, empresa de factoring, sem sombra de dúvida com amplo cabedal de conhecimento a respeito das operações inerentes às suas atividades, também merece registro a constatação do perito do Juízo, demonstrando a pouca, para não dizer nenhuma credibilidade na praça da Capital, da emitente dos títulos em comento, Luvicky Indústria e Comércio Ltda.

Assim, e opondo-se à argumentação da apelante, de que a investigação da causa debendi da cambial pode se dar ‘apenas entre os figurantes imediatos’ (fls. 528) e que a duplicata, nos termos da Lei 5.474/68, com o aceite, perante terceiros de boa-fé, se separa da compra e venda, tornando-se abstrata, e que a remessa e assinatura da duplicata supõe o recebimento da mercadoria (Lei n. 5.474/68, art. 8º), tem-se que se tratava de títulos sem lastro, ‘frios’, emitidos por pessoa jurídica com manifesta má-reputação na praça”

Observe-se que o acórdão vem arrimado na “manifesta má-reputação na praça” da empresa emitente dos títulos de crédito, a partir de onde se inferiu eventual má-fé da empresa ora recorrente, quando da aquisição das duplicatas, consubstanciando, pois, causa suficiente para decretação da nulidade dos títulos.

(…)

6. Contudo, no caso dos autos, em nenhum momento restou evidenciado qualquer comportamento irregular da recorrente, indicador de sua ciência do descumprimento do acordo realizado entre as partes originárias.

Repita-se: apenas se noticiou a aventada “manifesta má-reputação na praça” da empresa emitente dos títulos de crédito, o que, aliás, pouco significa, porque nenhuma inferência daí advém em relação ao comportamento da empresa recorrente.

Ademais, houve o aceite dos títulos, por parte de funcionários da empresa recorrida, cuja ausência de poderes bastantes para tanto, como registrado na sentença primeva, não constituiu empecilho à validade do ato; verbis:

“(…)

Em relação aos aceites apostos às cártulas pelos ex-empregados Gilberto Carlos Lopes e Hélio Ribeiro da Costa, respectivamente Gerente de Setor e Gerente do Departamento de Bazar, tais subscrições não renderiam ensejo, por si só, à invalidação do negócio, vindo em socorro à embargada, neste tópico, a Teoria da Aparência nas relações mercantis, não lhe sendo exigível o prévio conhecimento dos Estatutos Sociais da empresa para averiguação dos poderes conferidos aos aceitantes das cártulas”

5. Pelo exposto, tenho que a solução se encontra na reforma dos julgados precedentes, isso porque, ainda que a duplicata mercantil tenha por característica o vínculo à compra e venda mercantil ou prestação de serviços realizada, ocorrendo o aceite – como verificado nos autos -, desaparece a causalidade, passando o título a ostentar autonomia bastante para obrigar a recorrida ao pagamento da quantia devida, independentemente do negócio jurídico que lhe tenha dado causa.

Tais conclusões se ajustam ao quanto decidido também pela Quarta Turma no recente julgamento do REsp 1.315.592/RS (Rel. Ministro Luís Felipe Salomão, por maioria, DJe de 31.10.2017), em que analisada a mesma controvérsia, mantendo a coerência com a linha decisória veiculada no acórdão paradigma:

RECURSO ESPECIAL. FACTORING, DIREITO CAMBIÁRIO E TEORIA DA APARÊNCIA. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. DESENVOLVIMENTO DO CRÉDITO. SEGURANÇA, CERTEZA E FACILIDADE PARA CIRCULAÇÃO. IMPRESCINDIBILIDADE. ATOS DE NATUREZA CAMBIÁRIA. OBSERVÂNCIA AOS USOS E COSTUMES COMERCIAIS. REPRESENTAÇÃO. LEGÍTIMA APARÊNCIA E CONDUTA CULPOSA. TEORIA DA APARÊNCIA. POSSIBILIDADE DE PRODUÇÃO DE EFEITOS DOS ATOS PRATICADOS. ENDOSSO E ACEITE. INSTITUTOS JURÍDICOS CAMBIÁRIOS. DISCIPLINA DO INSTITUTO CIVILISTA DA CESSÃO DE CRÉDITO. INAPLICABILIDADE. DUPLICATA. ACEITE. ENDOSSATÁRIO TERCEIRO DE BOA-FÉ. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA ABSTRAÇÃO.

1. A boa-fé da factoring endossatária é reconhecida, assim como a circulação do título, estando a decisão recorrida – que extinguiu a execução – assentada no apontado vício de existência do título, pois, muito embora a Corte local intitule aquele que firmou o aceite, em nome da associação, diretor administrativo-financeiro, não tem, em vista do estatuto social, poderes estatutários ou outorgados para praticar o ato cambiário.

2. A duplicata mercantil não representa valor significativo para a associação aceitante, e consoante apurado na sentença não infirmada pelo acórdão recorrido, o diretor efetivamente praticava atos como o discutido nos autos.

3. Com efeito, em linha de princípio, não se afigura imprescindível à existência da representação a outorga convencional de poderes, mas a existência de poderes, outorgados ou não, os quais permitem a vinculação direta do representado nos negócios firmados pelo representante em seu nome. Os poderes definem o campo de eficácia vinculativa de acordo com os limites estabelecidos, ora pela outorga, ora pela lei, ora por situação fática consistente na atividade realizada declaradamente em nome de outrem (contemplatio domini), ainda que desprovida de ato jurídico de outorga de poderes (procuração).

4. Por um lado, o art. 113 do CC dispõe que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. Por outro lado, na fattispecie da aparência, a consequência jurídica do erro não é a anulabilidade, como no erro ordinário, mas sim permitir que o ato ou negócio produza os efeitos que lhe são próprios, conforme orienta a teoria da aparência e a inteligência do art. 1.827, parágrafo único, do CC.

5. Para a solução de questão concernente aos institutos de direito cambiário do endosso e do aceite, é descabida a aplicação da disciplina da cessão de crédito. Com efeito, embora o endosso, no interesse do endossatário terceiro de boa-fé, tenha efeito de cessão, não se confunde com o instituto civilista da cessão de crédito.

6. Conquanto a duplicata mercantil seja causal na emissão, a circulação – após o aceite do sacado, ou, na sua falta, pela comprovação do negócio mercantil subjacente e o protesto – rege-se pelo princípio da abstração, desprendendo-se de sua causa original, sendo, por isso, inoponíveis exceções pessoais a terceiros de boa-fé, como a ausência da prestação de serviços ou a entrega das mercadorias compradas. (REsp 774.304/MT, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 5/10/2010, DJe 14/10/2010)

7. Recurso especial parcialmente provido.

O voto do eminente Relator examina com profundidade a questão, abordando de forma exauriente a doutrina e a jurisprudência sobre a matéria:

4. O crédito representa, em uma ideia geral, a confiança no cumprimento das obrigações, o que facilita extremamente as transações comerciais, que nem sempre representam trocas imediatas de valores, permitindo a expansão e o desenvolvimento das principais atividades econômicas existentes no mundo moderno. É certo que o crédito só pode desenvolver seu papel apresentando três características básicas: a certeza, a segurança e a facilidade na sua circulação. (TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: títulos de crédito. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 1 e 4)

Nesse diapasão, em conferência realizada na Faculdade de Direito da Unicamp, por ocasião da III Semana Campineira de Estudos Jurídicos, Oscar Barreto Filho ponderou que “[o] crédito, hoje em dia, é um pressuposto necessário da atividade econômica. Não se discute que é graças ao crédito que os comerciantes, industriais, agricultores e transportadores conseguem imprimir a seus negócios o volume exigido pela intensidade da vida atual”. O crédito também “transbordou do meio comercial para a vida privada”, por mais limitados que sejam os recursos das pessoas, todos dele se valem, sendo curial que, no estudo dos títulos de crédito, “se contemple em tópico especial ponto tão importante”. (BARRETO FILHO, Oscar. O crédito no direito. p. 207 e 208)

Por um lado, a atividade empresarial e, consequentemente, o próprio direito empresarial exigem três pilares fundamentais: a rapidez, a segurança e o crédito. Exige-se um reforço ao crédito, uma disciplina mais célere dos negócios, a tutela da boa-fé e a simplificação da movimentação de valores, tendo em vista a realização de negócios em massa. Nesse particular, ganham especial importância os títulos de crédito. (TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: títulos de crédito. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 1)

Por outro lado, no abalizado escólio de Fran Martins, o Direito Comercial caracteriza-se pela simplicidade de suas fórmulas, pela internacionalidade de suas regras e institutos, pela rapidez de sua aplicação, pela elasticidade dos seus princípios e também pela onerosidade de suas operações – distanciando-se grandemente o Direito Comercial do Civil, em regra formalístico, nacional, lento, restrito. (MARTINS, Fran. Contratos e obrigações comerciais. 15 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 9-10)

Nesse passo, é sempre prudente relembrar a célebre e multicitada advertência de Cesare Vivante – por muitos considerado o primeiro jurista que conferiu tratamento rigorosamente científico ao direito comercial -, em prefácio da primeira edição de sua monumental obra Trattato di Diritto Comerciale, no sentido de que não se deve ser feita investigação jurídica de instituto de direito comercial sem se conhecer a fundo a sua função econômica, considerando “uma falta de probidade” “determinar-lhe a disciplina jurídica sem o conhecer na sua íntima realidade”.

5. Dessarte, consoante recente precedente do Colegiado, o endosso é plenamente aplicável ao fomento mercantil, não cabendo restringir direitos assegurados pelo direito cambiário (REsp 1236701/MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 5/11/2015, DJe 23/11/2015).

Fran Martins elucida que o endosso é aplicável a essa avença mercantilinvocando dispositivo da LUG acerca do endosso sem garantia, que se amolda como uma luva à operação:

Como o endossante, segundo os princípios básicos do direito cambiário, é garante tanto da aceitação como do pagamento do título, a Lei Uniforme, para facilitar a circulação das letras de câmbio, admitiu o chamado endosso sem garantia (art. 15), que é o em que, transferindo o título, o endossante não só deixa de garantir a aceitação da letra como se exime do pagamento da mesma.

Esse procedimento parece o apropriado para ser adotado na cessão dos créditos, no contrato de faturização, do faturizado para o faturizador, pois é princípio da essência do contrato de faturização o fato de não responder o faturizado, ao ceder os seus créditos, pela solvência do devedor, no caso o comprador, correndo, assim, por conta da empresa de faturização o risco do não recebimento já que a mesma não pode se voltar contra o faturizado para que esse satisfaça a obrigação não cumprida pelo comprador. (MARTINS, Fran. Contratos e obrigações comerciais.16 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 429) (grifos)

É o que também leciona Marlon Tomazette, se o crédito adquirido pela factoring disser respeito a título de crédito, com explícita remissão ao mencionado precedente deste Colegiado, in verbis:

12 Factoring e endosso

Outro contrato extremamente importante para a circulação dos títulos de crédito é o contrato de factoring.

[…]

Embora reconheçamos a existência das várias modalidades, a que mais nos interessa é justamente a mais tradicional, uma vez que nela é que existe a transferência de créditos com o pagamento imediato de valores referentes àquele crédito.

[…]

De outro lado, o próprio STJ vem entendendo que não é admissível restringir o uso do endosso nas operações de factoring, mantendo a vigência dos citados princípios em benefício do credor de boa-fé. Nesse particular, o STJ afirmou que, “com efeito, não se pode perder de vista que a exigência, sem nenhum supedâneo legal, de que, com o endosso de cheque “à ordem”, a factoring endossatária devesse se acautelar – mesmo adquirindo pelo meio próprio crédito de natureza autônoma (cambial) – demonstrando ter feito notificação à emitente e/ou procedido à pesquisa acerca de eventual ação judicial, implica, data venia, restrição a direitos conferidos por lei à recorrente, em manifesta ofensa a diversas regras, institutos e princípios do direito cambiário – e, até mesmo, a direitos fundamentais consagrados pela Constituição Federal (vide o art. 5º, II e XXII)”.

A nosso ver, a última opinião é a correta, de modo que a transferência aqui mencionada pode ser feita tanto por meio de uma cessão de crédito, como por meio de um endosso. (TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: títulos de crédito. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 122-123)

No entanto, como visto, não foi o fundamento acerca do efeito de endosso que embasou o julgado – a boa-fé da endossatária é reconhecida, assim como a circulação do título e a notificação e a confirmação prévia do crédito pelo diretor da Associação Comercial -, estando a decisão recorrida, na verdade, limitada ao apontado vício de existência do título, pois, muito embora a Corte local intitule aquele que firmou o aceite, em nome da associação, diretor administrativo-financeiro, não tem, em vista do estatuto social, poderes estatutários para praticar o ato cambiário.

Ademais, anoto que o valor da obrigação representada pela duplicata (R$ 25.000,00) adquirida em endosso não representa verba muito representativa para a Associação Comercial de uma grande capital, e que, à luz de um padrão médio objetivo e de atenção ordinária, foram tomadas as cautelas necessárias – havia nota fiscal, orçamento, contrato de prestação de serviços e duplicata aceita, e, como incontroverso e apurado nos autos, foi expedido fax para o número comercial da Associação, que enviou resposta confirmando a operação – antes da aquisição, mediante endosso, da cártula objeto de execução. O próprio Colegiado local qualifica a pessoa que deu o aceite como diretor administrativo-financeiro da Associação, e há apuração de que, de fato, agia e aparentava ser efetivo gestor.

Ora, invocando mais uma vez a obra de Fran Martins, as obrigações resultantes dos atos de natureza cambiária não podem, em geral, acomodar-se às formas hieráticas e solenes dos contratos civis. Os usos e costumes comerciais influenciam a obrigação que resulta do ato mercantil. Se, por acaso, em determinada praça de comércio, há um costume geralmente seguido por todos os comerciantes, esse costume influi sobre a obrigação comercial, fazendo com que esta a ele se adapte, muito embora não esteja o uso amparado pela lei ou, mesmo, aparentemente, esteja contra os princípios da lei. (MARTINS, Fran. Contratos e obrigações comerciais. 15 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 9-10)

Nesse diapasão, como decorrência da modernidade, que, em seu processo de desenvolvimento dinâmico, exige rapidez e intensificação do ritmo das relações econômicas, e como contraponto da existência do risco nas frenéticas transações jurídicas, advém a necessidade de que se confira segurança jurídica para que se possa alicerçar a vida social (MOTA, Mauricio Jorge Pereira da. A teoria da aparência jurídica. Revista de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 32, p. 224-275).

(…)

Assim, parece nítido que a causalidade da duplicata reside apenas na sua origem, mercê do fato de somente poder ser emitida para a documentação de crédito nascido de venda mercantil ou de prestação de serviços. Porém, a duplicata mercantil é título de crédito, na sua generalidade, como qualquer outro, estando sujeita às regras de direito cambial, nos termos do art. 25 da Lei nº 5.474/68, ressaindo daí, notadamente, os princípios da cartularidade, abstração, autonomia das obrigações cambiais e inoponibilidade das exceções pessoais a terceiros de boa-fé.

Uma vez aceita, o sacado (aceitante, à luz da teoria da aparência) vincula-se ao título como devedor principal e a ausência de entrega da mercadoria ou de prestação de serviços somente pode ser oponível ao sacador, como exceção pessoal, mas não a endossatários de boa-fé.

Há de ser ressalvado, caso se confirmem as alegações da recorrida no sentido de não ter conferido autorização para que fosse dado o aceite e de inexistência da prestação dos serviços, apenas o direito de regresso da executada/embargante (recorrida), em face da endossante e daquele preposto que deu o aceite.

Mutatis mutandis, esse foi o entendimento sufragado por este Colegiado, por ocasião do julgamento do REsp 261.170/SP, assim ementado:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO COMERCIAL. TÍTULOS DE CRÉDITO. AÇÃO ANULATÓRIA DE DUPLICATAS MERCANTIS. AUSÊNCIA DE ENTREGA DAS MERCADORIAS. NEGÓCIO JURÍDICO SUBJACENTE DESFEITO. IRRELEVÂNCIA EM RELAÇÃO A ENDOSSATÁRIOS DE BOA-FÉ. DUPLICATA ACEITA. PEDIDO RECONVENCIONAL JULGADO PROCEDENTE. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E, NA EXTENSÃO, PROVIDO.

1. A causalidade da duplicata reside apenas na sua origem, mercê do fato de somente poder ser emitida para a documentação de crédito nascido de venda mercantil ou de prestação de serviços. Porém, a duplicata mercantil é título de crédito, na sua generalidade, como qualquer outro, estando sujeita às regras de direito cambial, nos termos do art. 25 da Lei nº 5.474/68, ressaindo daí, notadamente, os princípios da cartularidade, abstração, autonomia das obrigações cambiais e inoponibilidade das exceções pessoais a terceiros de boa-fé.

2. A compra e venda é contrato de natureza consensual, de sorte que a entrega do bem vendido não se relaciona com a esfera de existência do negócio jurídico, mas tão somente com o seu adimplemento. Vale dizer, o que dá lastro à duplicata de compra e venda mercantil, como título de crédito apto à circulação, é apenas a existência do negócio jurídico subjacente, e não o seu adimplemento.

3. Com efeito, a ausência de entrega da mercadoria não vicia a duplicata no que diz respeito a sua existência regular, de sorte que, uma vez aceita, o sacado (aceitante) vincula-se ao título como devedor principal e a ausência de entrega da mercadoria somente pode ser oponível ao sacador, como exceção pessoal, mas não a endossatários de boa-fé. Há de ser ressalvado, no caso, apenas o direito de regresso da autora-reconvinda (aceitante), em face da ré (endossante), diante do desfazimento do negócio jurídico subjacente.

4. Recurso especial parcialmente conhecido e, na extensão, provido. (REsp 261.170/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 04/08/2009, DJe 17/08/2009)

Por fim, ressalto que o argumento de que o contrato de factoring pressupõe envolvimento mais estreito entre faturizadora e faturizada só faz sentido em relação às atividades de gerência financeira, gestão de crédito e seleção de riscos para terceiros (Lei 9.249/1995, art. 15, inciso III), que não são necessariamente cumulativas com a compra, para si própria, de direitos de crédito mediante deságio.

Inferir, a partir do texto abstrato da Lei 9.249/1995, que existe conhecimento acerca do cumprimento do contrato ou da situação de solvência da empresa endossante, e a partir daí, afastar a disciplina legal da duplicata aceita, implica, ao meu sentir ofensa aos arts 17, 28 e 29 da Lei Uniforme (Decreto 57.663/66) c/c art. 25 da Lei 5.474/68), causando, da maxima vênia, insegurança jurídica para o mercado de fomento de crédito.

Penso que a descrição de circunstância de fato que descaracterizasse a boa-fé da faturizadora, inexiste no caso dos autos, como visto das transcrições do acórdão embargado e do acórdão de origem, seria imprescindível para afastar a regra da abstração da duplicata aceita e da consequente inoponibilidade a terceiros das exceções pessoais, inerente ao direito cambial, não sendo suficiente, para tanto, que o credor endossatário seja empresa dedicada à atividade de factoring.

Seria necessário que o acórdão estadual ou o julgado embargado, da Terceira Turma, fizessem expressa alusão, por exemplo, a que a empresa de factoring tinha prévia ciência de que a prestação de serviços teria sido interrompida.

Má-fé é matéria essencialmente de cunho factual e, se silenciam os julgados a seu respeito, entende-se ausente da conjuntura existente nos autos, uma vez que não descrita forma alguma de conluio entre a credora/sacadora/faturizada/endossante/cedente (Villa Florenza Móveis e Decoração) e a Credfactor (faturizadora/endossatária/cessionária), para prejudicar o devedor/sacado (Ireno Hilário Schneider).

Em face do exposto, conheço e dou provimento ao recurso especial para o efeito de restabelecer a sentença que julgou improcedente o pedido.

É como voto. – – /

Dados do processo:

STJ – Embargos de Divergência em REsp nº 1.439.749 – Rio Grande do Sul – 2ª Seção – Rel. Min. Maria Isabel Gallotti 

Fonte: INR Publicações

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Agravo de Instrumento – Irresignação em face da decisão que em ação de inventário deferiu o requerimento formulado pela companheira do de cujus, determinando a reserva de bens suficientes para garantia de seus direitos sucessórios a serem definidos – Descabimento – O de cujus possuía idade superior a 70 anos quando do início da união estável, de modo que, por equivalência ao disposto na legislação pátria em relação ao matrimônio, aplica-se o mesmo regramento ao instituto em questão – Sendo o falecido septuagenário quando do início da união estável, o regime de bens vigente é o da separação obrigatória, o qual não permite a concorrência do cônjuge com os descendentes na sucessão legítima – Inteligência do art. 1.829, I, CC – Recurso provido.

ACÓRDÃO – Decisão selecionada e originalmente divulgada pelo INR –

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Agravo de Instrumento nº 2230760-84.2018.8.26.0000, da Comarca de Atibaia, em que são agravantes ESTELA BAPTISTA WIRTZ (INVENTARIANTE) e JULIO BAPTISTA (ESPÓLIO), é agravada ELIANA APARECIDA DE CAMPOS.

ACORDAM, em sessão permanente e virtual da 5ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: Deram provimento ao recurso. V. U., de conformidade com o voto do relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Desembargadores JAMES SIANO (Presidente), MOREIRA VIEGAS E FÁBIO PODESTÁ.

São Paulo, 12 de fevereiro de 2019.

James Siano

Relator

Assinatura Eletrônica

VOTO Nº: 34357

AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 2230760-84.2018.8.26.0000

Comarca: Atibaia

AGTES: Estela Baptista Wirtz e Outro

AGDA: Eliana Aparecida de Campos

AGRAVO DE INSTRUMENTO.

Irresignação em face da decisão que em ação de inventário deferiu o requerimento formulado pela companheira do de cujus, determinando a reserva de bens suficientes para garantia de seus direitos sucessórios a serem definidos.

Descabimento. O de cujus possuía idade superior a 70 anos quando do início da união estável, de modo que, por equivalência ao disposto na legislação pátria em relação ao matrimônio, aplica-se o mesmo regramento ao instituto em questão. Sendo o falecido septuagenário quando do início da união estável, o regime de bens vigente é o da separação obrigatória, o qual não permite a concorrência do cônjuge com os descendentes na sucessão legítima. Inteligência do art. 1.829, I, CC.

Recurso provido.

Irresignação em face da decisão de f. 25/26 c/c f. 27, que em ação de inventário deferiu o requerimento formulado pela companheira do de cujus, determinando a reserva de bens suficientes para garantia de seus direitos sucessórios a serem definidos.

Sustentam os agravantes que a declaração do regime de bens entre o de cujus e a convivente, cuja união estável foi reconhecida em ação ajuizada anteriormente por esta, é matéria de competência do juízo a quo, uma vez que somente com tal declaração poderá se partilhar os bens de forma correta.

Alegam que, por equivalência ao regime de bens de matrimônio, tal regime deverá ser o de separação total de bens, por força do disposto no art. 1.641, II, CC, sendo sua aplicação obrigatória.

Afirmam que, além de não ter direito aos bens do de cujus, a convivente não pode sequer ser considerada herdeira, de acordo como art. 1.829, I, CC, o qual determina que a sucessão legítima defere-se aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se este casado com o falecido no regime da separação total de bens.

Apontam o descabimento da reserva legal concedida à convivente, sendo que esta se encontra na posse exclusiva de dois imóveis particulares, adquiridos durante a união estável e não trazidos à colação.

Se não reconhecido o regime de separação total de bens à união estável entre o de cujus e a convivente, deverão ser, obrigatoriamente, incluídos no espólio os referidos imóveis.

Liminar indeferida à f. 30/32.

Contraminuta à f. 35/95.

É o relatório.

Procedem as razões recursais.

O artigo 1.725 do CC/02 estabelece que o regime a ser aplicado às relações patrimoniais do casal em união estável é o de comunhão parcial dos bens, salvo contrato escrito entre companheiros.

No entanto, o de cujus possuía idade superior a 70 anos quando do início da união estável, de modo que, por equivalência ao disposto na legislação pátria em relação ao matrimônio, aplica-se o mesmo regramento ao instituto em questão.

Nestes termos:

“EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA.

UNIÃO ESTÁVEL. COMPANHEIRO SEXAGENÁRIO. SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS (CC/1916, ART. 258, II; CC/2002, ART. 1.641, II). DISSOLUÇÃO.

BENS ADQUIRIDOS ONEROSAMENTE. PARTILHA. NECESSIDADE DE PROVA DO ESFORÇO COMUM. PRESSUPOSTO DA PRETENSÃO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA PROVIDOS.

1. Nos moldes do art. 258, II, do Código Civil de 1916, vigente à época dos fatos (matéria atualmente regida pelo art. 1.641, II, do Código Civil de 2002), à união estável de sexagenário, se homem, ou cinquentenária, se mulher, impõe-se o regime da separação obrigatória de bens.

2. Nessa hipótese, apenas os bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, e desde que comprovado o esforço comum na sua aquisição, devem ser objeto de partilha.

3. Embargos de divergência conhecidos e providos para negar seguimento ao recurso especial.

(REsp 1.171.820/PR, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, j. 26.08.15).

Neste diapasão, vislumbro que, em tese, a partilha que cabe à convivente se resume apenas aos bens adquiridos durante a união estável, mediante comprovação do esforço comum.

Assim, sendo o de cujus septuagenário quando do início da união estável, o regime de bens vigente é o da separação obrigatória, o qual não permite a concorrência do cônjuge com os descendentes na sucessão legítima, nos termos do art. 1.829, I, CC.

Portanto, a providência reclamada afigura-se infactível, pois o regime de bens não seria o da comunhão parcial de bens, hipótese em que o cônjuge ou, no caso, convivente poderia suceder em concorrência com os demais descendentes nos bens particulares do falecido.

Ante o exposto, dá-se provimento ao recurso.

JAMES SIANO

Relator – – /

Dados do processo:

TJSP – Agravo de Instrumento nº 2230760-84.2018.8.26.0000 – Atibaia – 5ª Câmara de Direito Privado – Rel. Des. James Siano 

Fonte: INR Publicações

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Direito civil e processual civil – Recurso Especial – Ação de execução hipotecária – Adjudicação direta ao credor hipotecário pelo valor da avaliação do imóvel, indepentemente da realização de hasta pública – Possibilidade – 1. Ação de execução hipotecária, na qual o credor hipotecário requer a adjudicação do imóvel penhorado pelo valor constante do laudo de avaliação, independentemente da realização de hasta pública – 2. Ação ajuizada em 12/02/2008. Recurso especial concluso ao gabinete em 26/08/2016. Julgamento: CPC/73 – 3. O propósito recursal é definir se pode ocorrer a adjudicação direta do imóvel ao credor hipotecário que oferece o preço da avaliação judicial do bem, independentemente da realização de hasta pública – 4. O art. 10 da Lei 5.741/71 preceitua, de forma expressa, que o Código de Processo Civil será aplicado, subsidiariamente, à ação executiva de que trata referida lei

Direito civil e processual civil – Recurso Especial – Ação de execução hipotecária – Adjudicação direta ao credor hipotecário pelo valor da avaliação do imóvel, indepentemente da realização de hasta pública – Possibilidade – 1. Ação de execução hipotecária, na qual o credor hipotecário requer a adjudicação do imóvel penhorado pelo valor constante do laudo de avaliação, independentemente da realização de hasta pública – 2. Ação ajuizada em 12/02/2008. Recurso especial concluso ao gabinete em 26/08/2016. Julgamento: CPC/73 – 3. O propósito recursal é definir se pode ocorrer a adjudicação direta do imóvel ao credor hipotecário que oferece o preço da avaliação judicial do bem, independentemente da realização de hasta pública – 4. O art. 10 da Lei 5.741/71 preceitua, de forma expressa, que o Código de Processo Civil será aplicado, subsidiariamente, à ação executiva de que trata referida lei – 5. De fato, em um primeiro momento, o confronto entre os arts. 6º e 7º da Lei 5.741/71 e o art. 685-A do CPC/73 (introduzido pela Lei 11.382/06) sugere um possível conflito entre as suas redações, de forma a induzir o julgador à aplicação imediata do que previsto na lei especial – 6. Ressoa nítido que a lei especial prevê a realização de hasta pública (art. 6º), admitindo a adjudicação direta ao credor hipotecário apenas na hipótese de não haver qualquer licitante na praça (art. 7º), situação que, quando verificada, e após a adjudicação do bem, exonerará o devedor da obrigação de pagar o restante da dívida. De outra banda, o CPC/73 (art. 685-A) prevê a possibilidade de a adjudicação ao credor dar-se pela simples oferta de preço não inferior ao da avaliação, independentemente da prévia realização de hasta pública – 7. Entretanto, pode-se constatar que a suposta incompatibilidade entre os dispositivos legais é meramente aparente, não se circunscrevendo à mera aplicação do princípio da especialidade das normas. Isso porque dois escopos da legislação específica devem ser sempre considerados na sua interpretação: o fim social com que foram criadas todas as regras que tratam do Sistema Financeiro da Habitação e a rápida recuperação do crédito para a reintrodução do capital investido no fluxo do sistema para novos financiamentos, o que não deixa de traduzir, em certa medida, esse fim social – 8. Analisando-se a específica situação versada nos presentes autos, não há como se vedar o pleito do recorrente de adjudicação direta do imóvel pelo valor da avaliação judicial do bem, quando o mesmo expressamente curva-se à previsão da legislação especial de exoneração dos devedores ao pagamento do valor remanescente da dívida. A realização de hasta pública, na espécie, apenas comprometeria a celeridade da própria execução, ou seja, tardando a própria satisfação da dívida – 9. Recurso especial conhecido e provido.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.721.731 – SP (2015/0112347-0)

RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI

RECORRENTE : ITAU UNIBANCO S.A

ADVOGADO : PAULO ROBERTO JOAQUIM DOS REIS – SP023134

RECORRIDO : EDUARDO ALVES FERREIRA

RECORRIDO : MARIA LUZENILDA DE QUEIROZ FERREIRA

RECORRIDO : HARLEY BOCCACINO JUNIOR

ADVOGADO : JOSE LUIZ SILVA GARCIA E OUTRO(S) – SP054789

EMENTA – Decisão selecionada e originalmente divulgada pelo INR –

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE EXECUÇÃO HIPOTECÁRIA. ADJUDICAÇÃO DIRETA AO CREDOR HIPOTECÁRIO PELO VALOR DA AVALIAÇÃO DO IMÓVEL, INDEPENTEMENTE DA REALIZAÇÃO DE HASTA PÚBLICA. POSSIBILIDADE.

1. Ação de execução hipotecária, na qual o credor hipotecário requer a adjudicação do imóvel penhorado pelo valor constante do laudo de avaliação, independentemente da realização de hasta pública.

2. Ação ajuizada em 12/02/2008. Recurso especial concluso ao gabinete em 26/08/2016. Julgamento: CPC/73.

3. O propósito recursal é definir se pode ocorrer a adjudicação direta do imóvel ao credor hipotecário que oferece o preço da avaliação judicial do bem, independentemente da realização de hasta pública.

4. O art. 10 da Lei 5.741/71 preceitua, de forma expressa, que o Código de Processo Civil será aplicado, subsidiariamente, à ação executiva de que trata referida lei.

5. De fato, em um primeiro momento, o confronto entre os arts. 6º e 7º da Lei 5.741/71 e o art. 685-A do CPC/73 (introduzido pela Lei 11.382/06) sugere um possível conflito entre as suas redações, de forma a induzir o julgador à aplicação imediata do que previsto na lei especial.

6. Ressoa nítido que a lei especial prevê a realização de hasta pública (art. 6º), admitindo a adjudicação direta ao credor hipotecário apenas na hipótese de não haver qualquer licitante na praça (art. 7º), situação que, quando verificada, e após a adjudicação do bem, exonerará o devedor da obrigação de pagar o restante da dívida. De outra banda, o CPC/73 (art. 685-A) prevê a possibilidade de a adjudicação ao credor dar-se pela simples oferta de preço não inferior ao da avaliação, independentemente da prévia realização de hasta pública.

7. Entretanto, pode-se constatar que a suposta incompatibilidade entre os dispositivos legais é meramente aparente, não se circunscrevendo à mera aplicação do princípio da especialidade das normas. Isso porque dois escopos da legislação específica devem ser sempre considerados na sua interpretação: o fim social com que foram criadas todas as regras que tratam do Sistema Financeiro da Habitação e a rápida recuperação do crédito para a reintrodução do capital investido no fluxo do sistema para novos financiamentos, o que não deixa de traduzir, em certa medida, esse fim social.

8. Analisando-se a específica situação versada nos presentes autos, não há como se vedar o pleito do recorrente de adjudicação direta do imóvel pelo valor da avaliação judicial do bem, quando o mesmo expressamente curva-se à previsão da legislação especial de exoneração dos devedores ao pagamento do valor remanescente da dívida. A realização de hasta pública, na espécie, apenas comprometeria a celeridade da própria execução, ou seja, tardando a própria satisfação da dívida.

9. Recurso especial conhecido e provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial nos termos do voto do(a) Sr(a) Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Brasília (DF), 27 de novembro de 2018(Data do Julgamento)

MINISTRA NANCY ANDRIGHI

Relatora

RELATÓRIO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI:

Cuida-se de recurso especial interposto por ITAU UNIBANCO S.A, fundamentado nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, contra acórdão proferido pelo TJ/SP.

Recurso especial interposto em: 05/03/2014.

Atribuído ao Gabinete em: 26/08/2016.

Ação: de execução hipotecária, ajuizada pelo recorrente, em desfavor de EDUARDO ALVES FERREIRA e MARIA LUZENILDA DE QUEIROZ FERREIRA (e-STJ fls. 6-8).

O recorrente (credor hipotecário), por sua vez, requereu, nos termos do art. 685-A do CPC/73, fosse autorizada a adjudicação do imóvel penhorado pelo valor constante do laudo de avaliação, independentemente da realização de hasta pública, respeitada a exoneração dos devedores do pagamento do valor remanescente da dívida (e-STJ fls. 40-41).

Decisão interlocutória: indeferiu o pleito do recorrente de adjudicação do imóvel dado em garantia (e-STJ fl. 46).

Acórdão: negou provimento ao agravo de instrumento interposto pelo recorrente, nos termos da seguinte ementa:

EXECUÇÃO HIPOTECÁRIA. Credor que pretende a adjudicação direta do imóvel. Impossibilidade. Execução regida pela Lei n.º 5.741/71. Necessidade de realização de hasta pública antes da adjudicação do bem ao credor. Recurso não provido (e-STJ fl. 71).

Recurso especial: alega violação do art. 685-A do CPC/73, bem como dissídio jurisprudencial. Sustenta que:

a) é lícito ao credor hipotecário, oferecendo preço não inferior ao da avaliação, requerer lhe sejam adjudicados os bens penhorados; e

b) a adjudicação direta ao credor pelo valor da avaliação judicial não se mostra prejudicial aos recorridos, uma vez que os mesmos serão exonerados do restante do pagamento da dívida, dispensando, assim, a realização de hasta pública (e-STJ fls. 75-88).

Prévio juízo de admissibilidade: o TJ/SP inadmitiu o recurso especial interposto por ITAU UNIBANCO S.A (e-STJ fls. 98-100), ensejando a interposição de agravo em recurso especial (e-STJ fls. 103-112), que foi provido e reautuado como recurso especial, para melhor exame da matéria (e-STJ fl. 122).

É o relatório.

VOTO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (RELATOR):

O propósito recursal é definir se pode ocorrer a adjudicação direta do imóvel ao credor hipotecário que oferece o preço da avaliação judicial do bem, independentemente da realização de hasta pública.

Aplicação do Código de Processo Civil de 1973 – Enunciado Administrativo n. 2/STJ.

1. DA POSSIBILIDADE DA ADJUDICAÇÃO DIRETA DO IMÓVEL AO CREDOR HIPOTECÁRIO (art. 685-A do CPC/73; e dissídio jurisprudencial)

Inicialmente, convém salientar que o TJ/SP consignou expressamente que a execução hipotecária deve seguir os ditames previstos em lei especial – Lei 5.741/71 –, aplicando-se apenas subsidiariamente as disposições constantes do Código de Processo Civil.

Por conseguinte, e com base no art. 7º da Lei 5.741/71, concluiu não ser possível a adjudicação direta do bem ao credor hipotecário, pois seria imprescindível a prévia realização de hasta pública, “tendo em vista a possibilidade de se auferir um valor superior ao da avaliação do bem” (e-STJ fl. 72).

O recorrente, por sua vez, defende a possibilidade de adjudicação direta do imóvel ao credor hipotecário quando a oferta dá-se por preço não inferior ao da avaliação, com fulcro em dispositivo legal inserto no CPC/73 (art. 685-A), argumentando a ausência de incompatibilidade do mesmo com dispositivo legal previsto na lei especial, senão vejamos:

Equivocado o acórdão atacado, sendo certo que o deferimento da adjudicação direta pelo valor da avaliação judicial ao credor hipotecário, ora Recorrente, não se mostra prejudicial aos Recorridos, uma vez que os mesmos serão exonerados do restante do pagamento da dívida, em observância aos termos do artigo 7º da referida lei especial, dispensando assim, a realização de hasta pública.

Ao contrário, o prejuízo é do credor que terá que arcar com novos gastos com editais para o praceamento, que por fim serão inócuos, uma vez que deverá ser observada, a final, a quitação da totalidade da dívida pela adjudicação do imóvel por seu preço já estimado.

Neste sentido, não há incompatibilidade de normas, vez que o artigo 7º da lei 5.741/71 prevê que na ausência de licitantes na praça pública, o Juiz adjudicará ao credor o imóvel hipotecado, exonerando os devedores da obrigação de pagar o restante da dívida (e-STJ fl. 80).

Cabe, então, perquirir acerca de suposta incompatibilidade entre dispositivo legal previsto em lei especial – que prevê a venda do imóvel hipotecado em praça pública – e dispositivo legal previsto em lei geral – que trouxe como alternativa a faculdade da adjudicação do bem penhorado, pelo credor, por preço não inferior ao da avaliação, antes mesmo da oferta em hasta pública.

Com efeito, o art. 10 da Lei 5.741/71 preceitua, de forma expressa, que o Código de Processo Civil será aplicado, subsidiariamente, à ação executiva de que trata referida lei.

Esta Corte Superior, também, quando instada a manifestar-se sobre o tema, reconheceu a especialidade da Lei 5.741/71 e a prevalência de sua aplicação sobre os dispositivos legais do Código Processual Civil. A propósito, cita-se:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO HIPOTECÁRIA. PREVALÊNCIA DAS NORMAS DA LEI N. 5.741/71 SOBRE AS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, POR SE TRATAR DE LEI ESPECIAL. EMBARGOS DO DEVEDOR. SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS PREVISTOS NO ART. 5º DA LEI 5.741/71.

1. A jurisprudência desta eg. Corte é pacífica em considerar que, em se tratando de execução hipotecária, o disposto no art. 5º da Lei n. 5.741/71, por se tratar de regra especial, prevalece sobre o art. 739, § 1º, do Código de Processo Civil.

2. Para a concessão de efeito suspensivo aos embargos do devedor, é necessário que o executado cumpra os requisitos insertos no art. 5º da Lei n. 5.741/71, comprovando que depositou integralmente o valor reclamado na inicial ou que pagou a dívida.

3. Agravo regimental a que se nega provimento (AgRg no REsp 1.017.277/RS, 4ª Turma, DJe 26/03/2012).

Imperioso destacar, contudo, que este STJ possui entendimento de que a prevalência da Lei 5.741/71 sobre o Código de Processo Civil ocorre somente quanto às regras dissonantes entre os dois diplomas, sendo certa a subsidiariedade da aplicação da lei geral naquilo que não contrariar a lei específica:

PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. LEI 5.741/71. EXECUÇÃO HIPOTECÁRIA. AÇÃO REVISIONAL ANTERIOR. TRATAMENTO ANÁLOGO AO DOS EMBARGOS DO DEVEDOR. CONEXÃO. SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO. NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DE UM DOS REQUISITOS PREVISTOS NO ART. 5º DA LEI 5.741/71.

1. A Lei 5.741/71, que regula a proteção do financiamento de bens imóveis vinculados ao Sistema Financeiro da Habitação, prevalece sobre o Código de Processo Civil ante a sua natureza especial, de modo que é possível a suspensão da execução hipotecária, desde que atendidos os requisitos previstos em seu art. 5º: a) oposição de embargos e b) depósito integral da importância reclamada ou o pagamento prévio da dívida. (Precedentes da Corte Especial do STJ).

2. Nessa linha, a prevalência da Lei 5.741/71 sobre o Código de Processo Civil ocorre somente quanto às regras dissonantes entre os dois diplomas, sendo certa a subsidiariedade da aplicação da lei adjetiva civil naquilo que não contrariar a lei específica.

3. A ação revisional ostenta a mesma natureza dos embargos do devedor – ação de conhecimento prejudicial à execução -, razão pela qual deve ter o mesmo tratamento àqueles dispensado quando ajuizada anteriormente à ação satisfativa. Precedentes.

4. Portanto, a suspensão do processo executivo hipotecário é medida que se impõe apenas quando efetuado o depósito integral da importância reclamada ou o pagamento prévio da dívida, o que não ocorreu no caso em julgamento.

5. Recurso especial provido para determinar o prosseguimento da execução (REsp 850.142/SE, 4ª Turma, DJe 06/12/2011).

De fato, em um primeiro momento, o confronto entre os arts. 6º e 7º da Lei 5.741/71 e o art. 685-A do CPC/73 (introduzido pela Lei 11.382/06) sugere um possível conflito entre as suas redações, de forma a induzir o julgador à aplicação imediata do que previsto na lei especial.

Registra-se o que disposto nos referidos dispositivos legais:

Lei 5.741/71

Art. 6º Rejeitados os embargos referidos no caput do artigo anterior, o juiz ordenará a venda do imóvel hipotecado em praça pública por preço não inferior do saldo devedor expedindo-se edital pelo prazo de 10 (dez) dias.

(…)

Art. 7º Não havendo licitante na praça pública, o Juiz adjudicará, dentro de quarenta e oito horas, ao exequente o imóvel hipotecado, ficando exonerado o executado da obrigação de pagar o restante da dívida.

CPC/73

Art. 685-A. É lícito ao exequente, oferecendo preço não inferior ao da avaliação, requerer lhe sejam adjudicados os bens penhorados.

Ressoa nítido que a lei especial prevê a realização de hasta pública (art. 6º), admitindo a adjudicação direta ao credor hipotecário apenas na hipótese de não haver qualquer licitante na praça (art. 7º), situação que, quando verificada, e após a adjudicação do bem, exonerará o devedor da obrigação de pagar o restante da dívida.

De outra banda, o CPC/73 (art. 685-A) prevê a possibilidade de a adjudicação ao credor dar-se pela simples oferta de preço não inferior ao da avaliação, independentemente da prévia realização de hasta pública.

Entretanto, aprofundando-se no estudo da controvérsia, pode-se constatar que a suposta incompatibilidade entre os dispositivos legais é meramente aparente, não se circunscrevendo à mera aplicação do princípio da especialidade das normas.

Explica-se. É que, como mesmo explica Volnei Luiz Denardi, “dois escopos da legislação específica devem ser sempre considerados na sua interpretação: o fim social com que foram criadas todas as regras que tratam do Sistema Financeiro da Habitação e a rápida recuperação do crédito para a reintrodução do capital investido no fluxo do sistema para novos financiamentos, o que não deixa de traduzir, em certa medida, esse fim social” (Execuções judicial e extrajudicial no Sistema Financeiro da Habitação: Lei 5.741/1971 e Decreto-lei 70/1966. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2009, p. 137).

Afinal, além de cada situação específica exigir particular reflexão, os dois objetivos de toda a normatização voltada ao Sistema Financeiro da Habitação devem servir de norte para a interpretação, inclusive para adaptar-se a execução especial hipotecária ao Código de Processo Civil.

A exemplo disso, cita-se que a Lei 5.741/71 estabeleceu modalidade particular de limitação da responsabilidade patrimonial, uma vez que sujeita à expropriação apenas o bem imóvel hipotecado, independentemente do seu valor ser ou não suficiente para o pagamento da dívida. Essa restrição decorre, justamente, do que vem estipulado nos arts. 6º e 7º da mencionada lei, quando obriga que a arrematação seja realizada por preço não inferior ao saldo devedor ou, na hipótese de adjudicação, exonera o executado da obrigação de pagar o restante da dívida.

Tal exceção, certamente, foi criada tendo em vista os escopos sociais e de celeridade processual estabelecidos na própria lei especial, afinal, essas regras atendem ao objetivo social do Sistema Financeiro de Habitação e visam a eximir o mutuário que não conseguiu pagar as prestações da casa própria de eventual saldo remanescente da dívida que, em tempos atuais, frequentemente torna-se superior ao próprio valor do imóvel.

Consoante destaca Evaristo Aragão Ferreira dos Santos:

Ou seja, isto permite afirmar, com toda segurança, que, na execução especial hipotecária, se admite que o credor, no caso concreto, po as deixar de receber tudo aquilo a que teria direito pela lei e pelo contrato, em benefício da celeridade do procedimento (isto é, do retorno rápido do capital investido) e da necessidade de se preservar o mutuário, limitando-se a satisfação do crédito, exclusivamente, ao imóvel através dele financiado (Processo de execução e assuntos afins / coord. Teresa Arruda Alvim Wambier; colab. Araken de Assis… [et al.]. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1998, p. 216).

Já a lei processual civil, além de prever que o devedor responde, com todos os seus bens, presentes e futuros, para o adimplemento da obrigação (art. 591 do CPC/73), prevê que, requerida a adjudicação do bem pelo credor, se o valor do crédito foi superior ao do bem, a execução prosseguirá pelo saldo remanescente (art. 685-A, § 1º, do CPC/73).

Da confrontação de mencionados comandos, deve-se captar o real espoco da legislação específica, chegando-se à conclusão de que se a exceção da exoneração do restante da dívida prevista na Lei 5.741/71 tem objetivos específicos, não poderia ser revogada por dispositivo de lei geral posterior que prevê o prosseguimento da execução na hipótese de haver saldo remanescente.

Disso dessume-se a importância de se extrair da legislação especial a real exegese de sua norma, de forma a coordená-la conjuntamente com as disposições da lei geral – e, obviamente, sempre que não haja antinomia entre as mesmas.

Ora, analisando-se a específica situação versada nos presentes autos, não há como se vedar o pleito do recorrente de adjudicação direta do imóvel pelo valor da avaliação judicial do bem, quando o mesmo expressamente curva-se à previsão da legislação especial de exoneração dos devedores ao pagamento do valor remanescente da dívida.

A dúvida poderia surgir porque a lei especial sequer prevê a avaliação do bem imóvel penhorado. Como admitir-se, então, a aplicação do art. 685-A do CPC/73, que admite a adjudicação ao credor hipotecário pelo valor da avaliação do bem?

Quanto ao ponto, vale destacar o que frisa a doutrina:

A Lei 11.382/2006 trouxe como alternativa a faculdade da adjudicação do bem penhorado, pelo credor, por preço não inferior ao da avaliação, antes mesmo da oferta em hasta pública. É o que passou a constar no art. 685-A do Código de Processo Civil, estabelecendo ser “lícito ao exequente, oferecendo preço não inferior ao da avaliação, requerer lhe sejam adjudicados os bens penhorados”.

Sem dúvidas que o encurtamento dos atos de execução, com a eliminação de procedimentos para a oferta pública, agiliza a prestação da tutela jurisdicional e, assegurando-se que a adjudicação não se fará por preço inferior ao da avaliação, preserva-se também o interesse do devedor.

A dificuldade de adaptação dessa salutar alternativa para a execução hipotecária especial estaria na circunstância de a Lei 5.741/71 não exigir a avaliação do imóvel hipotecado e impor que a arrematação ou adjudicação dê-se, no mínimo, pelo valor do saldo devedor.

Como já assinalado anteriormente (…), a mesma Lei 11.382 veio autorizar a avaliação judicial pelo oficial de justiça quando da realização da penhora, o que pode oferecer ao juiz condições para permitir a adjudicação na execução especial hipotecária, sem prejuízo para nenhuma das partes, especialmente ao devedor, já que para o credor o parâmetro será sempre o saldo devedor.

Se o valor do imóvel hipotecado, pela estimativa do oficial de justiça, for superior ao saldo devedor, a adjudicação pelo credor, nessa fase, poderá se deferida se depositar a diferença, nos termos do § 1º do mesmo art. 685-A. Caso o valor do bem seja inferior, a adjudicação poderá se dar pelo saldo devedor. Esse critério permite harmonizar a execução especial ao Código de Processo Civil (DENARDI, Volnei Luiz. Execuções judicial e extrajudicial no Sistema Financeiro da Habitação: Lei 5.741/1971 e Decreto-lei 70/1966. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2009, p. 161) (grifos acrescentados).

Com efeito, elucidou-se que o próprio CPC/73 autoriza a avaliação judicial do bem pelo oficial de justiça quando da realização da penhora, o que pode oferecer ao juiz condições para permitir a adjudicação na execução especial hipotecária, sem prejuízo para nenhuma das partes.

Assim, a depender do valor constante do laudo de avaliação, e conjugando-se com a limitação da responsabilidade patrimonial prevista na Lei 5.741/71, tem-se que, se o mesmo for inferior ao valor da dívida, ter-se-á por exonerado o devedor de eventual saldo remanescente; e se superior ao valor da dívida, o credor hipotecário deverá realizar depósito da diferença.

Por oportuno, convém transcrever exatamente o que requerido pelo recorrente na petição de fls. 40-41 (e-STJ):

2 – Com as alterações dispostas no Código de Processo Civil, no tocante ao novo sistema de adjudicação na fase executiva, temos que não mais se faz necessário aguardar a fase de hasta pública para realizar referido ato processual. A propósito, registre-se que, com esta reforma processual, a adjudicação de bens passa a ser a forma preferencial para satisfazer o crédito exequendo.

Diante do exposto, requer seja autorizada a adjudicação por iniciativa particular do imóvel penhorado pelo valor do lado de avaliação, respeitada a exoneração dos devedores no pagamento do valor remanescente da dívida, conforme previsão no art. 7º da Lei 5.741/71, nos termos do artigo 685-A do Código de Processo Civil e, consequentemente a expedição do Auto de Adjudicação, para os fins de direito (e-STJ fls. 40-41) (grifos acrescentados).

Logo, é patente que a adjudicação direta do imóvel ao credor hipotecário, observado o valor de avaliação do bem, não importará em prejuízo ao devedor – que será exonerado da obrigação de pagar o restante da dívida –, representando, ainda, inegável benefício àquele, que, além de deparar-se com a celeridade na satisfação da dívida, evitará gastos com editais de praceamento do bem.

Disso dessume-se, como anteriormente salientado, que não há, de fato, conflito entre as mencionadas normas, salientando-se a necessidade de interpretá-las, conjuntamente, de forma a melhor atender a finalidade do sistema.

Afinal, inócua seria a realização da praça a fim de possivelmente auferir valor superior ao da avaliação do bem – justificativa utilizada pelo Tribunal de origem – quando a adjudicação direta ao credor hipotecário importará na exoneração dos recorridos da obrigação de pagar saldo remanescente na dívida.

A realização de hasta pública, na espécie, apenas comprometeria a celeridade da própria execução, ou seja, tardando a própria satisfação da dívida.

Destarte, tem-se que, na hipótese dos autos, deve a Corte local, com base no valor constante do laudo de avaliação do bem, reconhecer a possibilidade de adjudicação direta do imóvel ao credor hipotecário, independentemente da realização de hasta pública, desde que exonerado o devedor da obrigação de pagar o restante da dívida.

Por fim, revela-se a necessidade de cautela por parte do Tribunal de origem a fim de analisar se o valor de avaliação do imóvel é superior ou não ao valor da dívida e, em sendo, determinar que o credor hipotecário deposite de imediato a diferença.

Forte nessas razões, CONHEÇO do recurso especial interposto por ITAU UNIBANCO S.A, e DOU-LHE PROVIMENTO, para autorizar a adjudicação direta do imóvel ao recorrente, observando-se a Corte local o valor constante do laudo de avaliação do bem e a necessidade de exoneração do devedor do pagamento de suposto saldo remanescente da dívida. – – /

Dados do processo:

STJ – REsp nº 1.721.731 – São Paulo – 3ª Turma – Rel. Min. Nancy Andrighi 

Fonte: INR Publicações

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Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!

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