Estado X Igreja: o Casamento islâmico com dote e a escolha do regime de bens

Em quais situações as leis da Igreja se encontram ou divergem das leis do Estado? Conheça a recente decisão da Justiça do Paraná com relação a um casamento religioso islâmico não realizado em Cartório e com regime dotal

A partir do Decreto nº 119-A, de 7 de janeiro de 1890, estabelecido há poucos meses da Proclamação da República, foi instaurado no Brasil a separação definitiva entre o Estado e a Igreja Católica Apostólica Romana, considerando, assim, a nação um Estado laico. Apesar da divisão entre religião e política, a Constituição Federal de 1988 consagra como direito fundamental a liberdade religiosa do cidadão brasileiro, além de ter estabelecido que o casamento religioso também possa dispor de efeito civil.

Apesar de não haver uma relação de união plena entre o Estado e a Igreja, o indivíduo nascido no País pode, além de escolher a partir de sua livre e espontânea vontade uma religião a seguir, também pode optar por realizar seu matrimônio conforme os preceitos de sua fé, obtendo por meio dele o consentimento do casamento perante o Estado.

Laura Roncaglio e Arethusa Baroni, servidoras públicas atuantes junto ao Ministério Público das Varas de Família e criadoras do blog Direito Familiar, explicam que “o casamento religioso com efeito civil é aquele que em vez dos nubentes realizarem um ato no cartório (civil) e um religioso (cerimônia), celebram o casamento em apenas um ato”, podendo seguir as demais tradições religiosas da celebração, visto que as “formalidades inerentes à esfera civil já foram cumpridas perante à serventia extrajudicial”.

O diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Paulo Lins e Silva, esclarece: “A celebração do casamento religioso com efeito civil é autorizada pelo notário da circunscrição civil, após a tramitação do processo de habilitação, que será entregue à autoridade religiosa para que solenize o ato jurídico do casamento. Assim, com a assinatura dos noivos, testemunhas e da autoridade religiosa, se envia a documentação à circunscrição civil para que seja registrado o casamento”.

Por a Igreja ser considerada uma instituição, há em sua composição diretrizes, regras e normas, que são seguidas não apenas pelos fiéis, mas também pelos sacerdotes da religião. Levando em conta o decreto que instituiu o estado laico brasileiro, as condutas, leis e princípios que regem o País são distintos aos da Igreja, não podendo haver associações entre ambas as normas.

E são nestes momentos que certas ocorrências e preceitos considerados habituais para uma comunidade podem não ir de acordo com as previstas na lei brasileira. Um caso recente e que entra neste assunto é a decisão da 2ª Vara das Famílias e Sucessões de Foz do Iguaçu, no estado do Paraná, que constatou que casamento religioso islâmico com dote não justifica regime de separação de bens, estabelecendo, assim, o regime de comunhão parcial de bens, após ter declarado uma união estável post mortem.

União estável

No caso acima, a esposa e o marido, falecido, haviam formalizado o casamento de acordo com os preceitos da fé islâmica, há 16 anos, sem realizá-lo perante Cartório de Registro Civil. Durante o matrimônio, o casal adquiriu um imóvel e um veículo, além de ter aberto uma conta bancária em conjunto. Com o falecimento do marido, a esposa solicitou o reconhecimento da união estável perante o Estado a partir da data do casamento religioso até o dia da morte do esposo.

Com base na certidão do casamento religioso islâmico, na certidão de óbito do marido e no instrumento público do imóvel foi constatada, a partir da convivência pública e duradoura dos cônjuges, a união estável do casal. Apesar da relação e da constatação de união estável, segundo o juiz responsável não seria possível a comprovação de casamento entre os dois indivíduos, por não terem formalizado relação perante Cartório de Registro Civil, sendo assim, não havendo procedimento de habilitação e nem registro do ato.

Paulo Lins e Silva explica que “o reconhecimento de união estável é mais flexível e abrangedor”. Sendo assim, “se um casal optar pelo casamento religioso sem os efeitos civis, estará formalmente realizando uma união estável”, por não ter concluído o ato em serventia extrajudicial.

Para o caso analisado pela 2ª Vara das Famílias e Sucessões de Foz do Iguaçu, Laura Roncaglio e Arethusa Baroni afirmam que em seu entendimento “as regras religiosas e as do Direito não se misturam”, pela questão do Brasil ser um Estado laico.

“Portanto, um casamento religioso celebrado no Brasil só terá validade jurídica se for registrado em Cartório de Registro Civil. Desta forma, entendendo que pode haver posicionamentos contrários, concordamos com a disposição do magistrado que analisou o caso, pois demonstra claramente o distanciamento que deve existir entre leis e religiões”, finalizaram as advogadas.

Regime de bens

Na sentença, um herdeiro do falecido argumentou que para o regime da relação deveria ser adotado o de separação total de bens, visto que no casamento religioso islâmico adota-se o “regime dotal, no qual é acordado um dote do noivo para a noiva”, explica a Federação das Associações Muçulmanas do Brasil (FAMBRAS), por meio de seu consultor Jurídico, Mohamad Charanek, em parceria com o escritório Mazloum Advogados.

A Federação comentou ainda que “nesta linha, o dote pode ser entendido como um presente (obrigatório) que o homem deve oferecer à sua futura esposa, como símbolo da sinceridade e dedicação que deve prestar a ela”. Em entrevista exclusiva, a FAMBRAS, juntamente com o Mazloum Advogados, esclarece que, na opinião dos mesmos, “a questão do dote poderia, no máximo, configurar uma dívida do noivo para a noiva, caso o dote fosse acordado e não pago”.

Para a decisão, o magistrado levou em consideração as leis da política nacional, comprovando a irrelevância do dote, não justificando assim a separação total de bens do casal. Para a FAMBRAS, “em ato de casamento religioso islâmico, caso os noivos decidam optar por regime de separação de bens diverso do legalmente fixado, é necessário que manifestem expressamente tal vontade no próprio contrato de casamento islâmico. Assim, o Juiz, em eventual análise, poderá considerar a vontade dos noivos em matéria de regime de casamento”.

Fonte:Assessoria de Comunicação – Arpen/SP.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias.

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