CSM/SP: Registro de Imóveis – Dúvida – Partilha causa mortis – Escritura pública – Renúncia por herdeiros contra os quais pesavam indisponibilidades decorrentes de ordens jurisdicionais – Indisponibilidades que, entretanto, não impunham aos herdeiros o dever de aceitar a herança – Apelação a que se dá provimento para, afastado o óbice e reformada a r. sentença, permitir os registros almejados.


  
 

Apelação Cível nº 1001772-70.2020.8.26.0263

Espécie: APELAÇÃO

Número: 1001772-70.2020.8.26.0263

Comarca: ITAÍ

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

Apelação Cível nº 1001772-70.2020.8.26.0263

Registro: 2021.0000973510

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1001772-70.2020.8.26.0263, da Comarca de Itaí, em que é apelante CELIA PEREIRA BUNDER, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE ITAÍ.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores PINHEIRO FRANCO (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), LUIS SOARES DE MELLO (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), GUILHERME G. STRENGER (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL), MAGALHÃES COELHO(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO) E DIMAS RUBENS FONSECA (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO).

São Paulo, 22 de novembro de 2021.

RICARDO ANAFE

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Apelação Cível nº 1001772-70.2020.8.26.0263

Apelante: Celia Pereira Bunder

Apelado: Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Itaí

VOTO Nº 31.644

Registro de Imóveis – Dúvida – Partilha causa mortis – Escritura pública – Renúncia por herdeiros contra os quais pesavam indisponibilidades decorrentes de ordens jurisdicionais – Indisponibilidades que, entretanto, não impunham aos herdeiros o dever de aceitar a herança – Apelação a que se dá provimento para, afastado o óbice e reformada a r. sentença, permitir os registros almejados.

1. Trata-se de apelação interposta por Célia Pereira Bunder contra a sentença proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas e Naturais e de Interdições e Tutelas da Sede da Comarca de Itaí/SP, que julgou procedente a dúvida e manteve a recusa de registro de escritura de inventário e partilha tendo por objeto os imóveis matriculados sob nos 5.046 e 5.047 da referida serventia extrajudicial (fl. 119/122).

Alega a apelante, em síntese, que os imóveis em questão foram adquiridos na constância de seu casamento com Juveniano Mario Almaceu Bunder, falecido em 27 de junho de 2017. Afirma que, na escritura de inventário e partilha lavrada, os herdeiros filhos, Mariwalton Bunder, Douglas Bunder e Jefferson Bunder renunciaram à herança deixada pelo pai, nos termos do art. 1.806 do Código Civil. Esclarece que, à época, não havia sido decretada a indisponibilidade dos bens dos herdeiros renunciantes, Mariwalton Bunder, Douglas Bunder, tal como apurado em consulta realizada quando da lavratura do ato.  Sustenta que, em virtude da renúncia à herança, os imóveis versados nos autos não chegaram a ingressar no patrimônio dos filhos do falecido e, portanto, não podem ser atingidos pela indisponibilidade posteriormente decretada. Ressalta que, segundo o princípio da saisine, os bens do de cujus são transmitidos aos herdeiros no momento da morte, mas dependem da aceitação ou renúncia posteriores, retroagindo os efeitos à data da abertura da sucessão na forma do art. 1.804, § único, do Código Civil.

A DD. Procuradoria Geral de Justiça ofertou parecer pelo não provimento do recurso (154/157).

É o relatório.

2. A r. sentença tem de ser reformada, não obstante as suas bem fundadas razões.

Sempre que trata do tema, a doutrina faz incluir a indisponibilidade (Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 247) no campo das proibições ao poder de dispor, pois ela:

(a) representa uma “inalienabilidade de bens, que pode provir das mais diversas causas”, diz Valmir Pontes (Registro de Imóveis, São Paulo: Saraiva, 1982, p. 179);

(b) constitui uma “forma especial de inalienabilidade e de impenhorabilidade”, segundo Walter Ceneviva (Lei dos Registros Públicos Comentada, 20ª ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p. 625, n. 671);

(c) implica “a restrição ao poder de dispor da coisa, impedindo-se sua alienação ou oneração por qualquer forma”, conforme o ensinamento de Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza (Noções Fundamentais de Direito Registral e Notarial, São Paulo: Saraiva, 2011, p. 109);

(d) “impede apenas a alienação, mas não equivale à penhora e não acarreta necessariamente a expropriação do bem”, no dizer de Francisco Eduardo Loureiro (in José Manuel de Arruda Alvim Neto et alii (coord.), Lei de Registros Públicos comentada, Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 1.291);

(e) “afeta os atributos da propriedade, perdendo o proprietário o poder de disposição, de modo que, para alienar ou onerar o bem é necessário o prévio cancelamento da indisponibilidade”, ensina Ana Paula P. L. Almada (in Registros Públicos, Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2020, p. 444); e

(f) possui natureza “evidentemente acautelatória, pois visa assegurar o resultado prático de não dispor do imóvel enquanto persistir a situação jurídica que autoriza a indisponibilidade de bens”, na opinião de Vitor Frederico Kümpel e Carla Modina Ferrari (Tratado Notarial e Registral – Ofício de Registro de Imóveis, São Paulo: YK Editora, 2020, p. 2.843-2.843).

Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza (op. cit., p. 109-110) ainda faz a seguinte precisão:

“Não obstante a inalienabilidade e a indisponibilidade signifiquem restrição ao poder de dispor da coisa, usualmente tem-se utilizado o termo inalienabilidade para as restrições decorrentes de atos de vontade, enquanto o termo indisponibilidade tem sido usado para se referir às restrições impostas pela lei, ou em razão de atos administrativos ou jurisdicionais. Diferença relevante assenta na finalidade: enquanto nos atos de vontade o que se busca atingir com a restrição é a proteção do beneficiário da cláusula (daquele que fica impedido de dispor), nos demais atos o objetivo, em regra, é dar efetividade a decisões administrativas e jurisdicionais, em desfavor de quem tenha alcançado seu poder de disposição.”

Estabelecido, assim, que a indisponibilidade é proibição ao poder de dispor, com finalidade acautelatória, resta por determinar o seu efetivo alcance no caso concreto. O problema coloca-se, porque, na hipótese em discussão, entenderam assim o ofício de registro de imóveis como o juízo corregedor permanente que os herdeiros, a quem a herança se transmite ipso jure com a morte do de cujus (Código Civil, art. 1.784), não podem renunciar ou, o que é o mesmo, devem aceitar o que veio a seu patrimônio a causa de morte.

Em que pesem à bem fundada nota devolutiva e às boas razões da r. sentença apelada, essa interpretação não é a mais consentânea com o sistema da lei civil e a liberdade que se concede em matéria hereditária. Isso porque, como está no art. 1.813 do Código Civil, a existência de credores não impõe aos herdeiros que necessariamente aceitem a herança: permite-se, em vez disso, e no seu lugar, que os credores aceitem, mas de nenhuma forma está na lei que os herdeiros estejam impedidos de renunciar e se tal dever não está criado no Código Civil, muito menos aparece como decorrência das indisponibilidades em questão.

Segundo as informações postas a fl. 03, com efeito, as indisponibilidades que recaem sobre os herdeiros renunciantes advêm, todas elas, de decisões jurisdicionais, proferidas pela Justiça Federal e pela Justiça do Trabalho, as quais, portanto, não se fundam em regra nenhuma que abra exceção ao regime geral do Código Civil, o qual, repita-se, não impõe dever de aceitação.

Como ensina Pontes de Miranda:

“Em caso de concurso de credores, ou de devedores, a deliberação é segundo os princípios. No direito brasileiro, há o art. 1.586 do Código Civil, onde se diz: ‘Quando o herdeiro prejudicar os seus credores, renunciando a herança, poderão eles, com autorização do juiz, aceitá-la em nome do renunciante. Nesse caso, e depois de pagas as dívidas do renunciante, o remanescente será devolvido aos outros herdeiros’. Noutros sistemas jurídicos parte-se de princípio que colima com a regra jurídica acima transcrita: entende-se que se apoia em pensamento prático não ser influenciada pelos credores a manifestação de vontade do herdeiro” (Tratado de Direito Privado, tomo LV, § 5.590, 4).

“No direito brasileiro, o credor tem a pretensão à adição, a despeito de ter havido a renúncia pelo sucessor. Tem de ser exercida, satisfeitos os pressupostos e produzidas as provas, com o remédio jurídico processual da autorização judicial. O credor pede ao juiz tal autorização. Tem base jurídica exigir-se o rito ordinário, pois é indispensável a citação do renunciante, para a contestação e os demais atos processuais. O renunciante pode alegar e provar que não há insolvabilidade, que o demandante não é credor do que diz, que as dívidas foram posteriores à renúncia. Se o renunciante paga a dívida, ou as dívidas, cessa a demanda. A lei criou direito, pretensão e ação para o credor, se se compõem os requisitos que ela aponta como necessários. Não se trata de inserção do credor na situação jurídica do devedor insolvente e renunciante. Apenas se sub-roga ao renunciante, no que toca ao devedor, razão por que, no inventário e partilha, se legitima a todos os atos que o devedor renunciante tinha de praticar ou poderia praticar. Desde o momento em que se paga de todo o crédito, cessa a legitimação do credor para atos que concernem ao patrimônio ou à parte do patrimônio que seria do renunciante se renúncia não tivesse havido. Não se trata de ‘anulação’ a favor do credor, o que é erronia de alguns juristas (e. g., CARLOS MAXIMILIANO, Direito das Sucessões, 1, 86). Todas as renúncias a herança ficam expostas a essa eventual ineficacização por ter algum credor, ou por terem alguns credores, satisfeitos os pressupostos, exercido o direito de se sub-rogar nos direitos do renunciante, até a importância do que esse lhe devia antes da renúncia. No fundo, a ação do credor é constitutiva negativa, quanto à renúncia pelo devedor, e tem carga de eficácia condenatória, sem que isso altere o rito processual do inventário e da partilha. […] A desconstituição é até o quanto da dívida, ou das dívidas, seja um só o credor, ou sejam dois ou mais os credores. No que excede à soma devida, a eficácia da renúncia não é atingida. O resto vai aos outros sucessores, conforme os princípios, em virtude da permanência abdicativa.” (Pontes de Miranda, op. cit., § 5.592, 9)

Não se ignora, é certo, que as razões da renúncia formulada pelos herdeiros é matéria que extrapola o aspecto formal a que em regra se limita a qualificação registral. De resto, o dever de velar pelos interesses dos beneficiados com a indisponibilidade não é da serventia imobiliária, mas dos credores, a quem tocará, eventualmente, usar dos remédios jurídicos que possam ter.

As decisões proferidas por este Conselho na Apelação Cível nº 1100256-61.2019.8.26.0100 (j. 16.03.2020, DJe 14.04.2020), na Apelação Cível nº 0000003-66.2011.8.26.0196 (j. 07.11.2011, DJe 13.01.2012) e na Apelação Cível nº 1003970-04.2018.8.26.0505 (j. 15.08.2019, DJe 02.09.2019), invocadas como precedentes nas razões de suscitação de dúvida, não se aplicam a este caso, porque tratam de hipóteses diversas.

Em todas, é claro, se cuida de saber se são eficazes (ou mesmo válidos) os atos dependentes daquele praticado por quem estava sob a indisponibilidade. Contudo, isso não basta para dar similaridade às espécies, porque nos referidos precedentes estava certo que se tratava de legitimado que se demitiu de seu patrimônio, cedendo direitos a despeito da indisponibilidade, enquanto na hipótese em análise se versa situação distinta, ou seja, o caso de legitimados que, segundo disseram o ofício de registro de imóveis e a sentença, estavam obrigados a adquirir para, então, não poder alienar e, desse modo, não prejudicar seus credores o que, repita-se, não é a solução da lei, que permite a renúncia e faculta aos interessados que aceitem em lugar do renunciante.

Em suma: a pendência das indisponibilidades não impedia que os herdeiros renunciassem; a renúncia, portanto, foi válida e eficaz, e não há impedimento a que se proceda, agora, aos registros stricto sensu resultantes da partilha causa mortis.

3. À vista do exposto, pelo meu voto, dou provimento à apelação para, afastando-se o óbice registral e reformando-se a r. sentença, deferir os pretendidos registros stricto sensu da partilha (escritura pública copiada a fl. 19/26; matrículas nos 5.046 e 5.047 do Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas e Naturais e de Interdições e Tutelas da Sede da Comarca de Itaí/SP; prenotação nº 22.878).

RICARDO ANAFE

Corregedor Geral da Justiça e Relator (DJe de 24.02.2021 – SP)

Fonte: INR Publicações.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias.

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