1VRP/SP: Registro de Imóveis. A comunicação dos bens adquiridos na constância do casamento sob o regime da separação obrigatória, embora admitida nos termos da súmula 377/STF, depende do exercício de pretensão e de efetiva demonstração do esforço comum.


  
 

Processo 1010055-81.2023.8.26.0100

Dúvida – Registro de Imóveis – Heloisa Nespoli Llovio – Diante do exposto, JULGO IMPROCEDENTE a dúvida suscitada pelo Oficial do 2º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de Heloísa Nespoli Llovio e, em consequência, determino o registro do título. Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios. Oportunamente, ao arquivo com as cautelas de praxe. P.R.I.C. – ADV: REJANE CRISTINA SALVADOR (OAB 165906/SP)

Íntegra da decisão:

SENTENÇA

Processo Digital nº: 1010055-81.2023.8.26.0100

Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis

Suscitante: 2º Oficial de Registro de Imóveis da Capital

Suscitado: Heloisa Nespoli Llovio

Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 2º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de Heloísa Nespoli Llovio, tendo em vista negativa em se proceder ao registro de formal de partilha dos bens deixados pelo falecimento de Clemilda Marques Vassão, que tem por objeto o imóvel da matrícula n. 80.751 daquela serventia.

A devolução do título foi motivada pela presunção de comunicação do imóvel ao patrimônio de Oscar Ciola, com quem Clemilda estava casada pelo regime da separação obrigatória de bens quando da aquisição (súmula n. 377/STF), o que não foi observado pela partilha.

O Oficial informa que exigiu comprovação da partilha realizada por ocasião do divórcio entre Clemilda e Oscar, uma vez que a presunção decorrente da súmula n.377 incide sobre os aquestos e não há, na escritura de aquisição, indicação de que o imóvel seria bem próprio da adquirente, de modo que a inexistência de contribuição do cônjuge deve decorrer do título ou ser reconhecida pela via jurisdicional.

Documentos vieram às fls. 05/55.

A parte suscitada apresentou impugnação às fls.56/67, aduzindo que a escritura de compra registrou de forma clara que o bem foi adquirido somente por Clemilda; que Oscar foi qualificado apenas na condição de cônjuge da adquirente; que, por ocasião da conversão da separação em divórcio, as partes atestaram a inexistência de bens comuns a partilhar, o que foi homologado e transitou em julgado; que a atual interpretação dada pelo STJ à súmula 377/STF é no sentido de que, embora se comuniquem os bens adquiridos na constância do casamento pelo regime da separação obrigatória, o esforço comum na aquisição deve ser comprovado.

O Ministério Público opinou pela improcedência (fls.71/73).

É o relatório.

Fundamento e decido.

De início, vale destacar que os títulos judiciais não estão isentos de qualificação para ingresso no fólio real.

O Egrégio Conselho Superior da Magistratura já decidiu que a qualificação negativa não caracteriza desobediência ou descumprimento de decisão judicial (Apelação Cível n. 413-6/7).

Neste sentido, também a Ap. Cível nº 464-6/9, de São José do Rio Preto:

“Apesar de se tratar de título judicial, está ele sujeito à qualificação registrária. O fato de tratar-se o título de mandado judicial não o torna imune à qualificação registrária, sob o estrito ângulo da regularidade formal. O exame da legalidade não promove incursão sobre o mérito da decisão judicial, mas à apreciação das formalidades extrínsecas da ordem e à conexão de seus dados com o registro e a sua formalização instrumental”.

E, ainda:

“REGISTRO PÚBLICO – ATUAÇÃO DO TITULAR – CARTA DE ADJUDICAÇÃO – DÚVIDA LEVANTADA – CRIME DE DESOBEDIÊNCIA – IMPROPRIEDADE MANIFESTA.

O cumprimento do dever imposto pela Lei de Registros Públicos, cogitando-se de deficiência de carta de adjudicação e levantando-se dúvida perante o juízo de direito da vara competente, longe fica de configurar ato passível de enquadramento no artigo 330 do Código Penal – crime de desobediência – pouco importando o acolhimento, sob o ângulo judicial, do que suscitado” (STF, HC 85911 / MG – MINAS GERAIS, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, j. 25/10/2005, Primeira Turma).

Sendo assim, não há dúvidas de que a origem judicial não basta para garantir ingresso automático dos títulos no fólio real, cabendo ao oficial qualificá-los conforme os princípios e as regras que regem a atividade registral.

No mérito, porém, a dúvida é improcedente. Vejamos os motivos.

A matrícula n. 80.751 indica que o imóvel foi adquirido pela falecida Clemilda Marques Vassão no ano de 1993, quando estava casada com Oscar Ciola pelo regime da separação obrigatória de bens (fls. 51/53).

O casal se separou consensualmente por sentença homologatória proferida no dia 25 de novembro de 1998, sendo a separação convertida em divórcio por sentença proferida em 28 de dezembro de 1999, ocasião em que as partes manifestaram expressamente a inexistência de bens a partilhar (fls.20/21 e 31/36).

Com o falecimento de Clemilda em 14 de abril de 2021, o imóvel foi partilhado em ação de arrolamento sumário (processo de autos n. 1013890-66.2021.8.26.0482, 2ª Vara da Família e Sucessões da Comarca de Presidente Prudente), oportunidade em que foi reconhecido como de titularidade exclusiva da autora da herança (fls. 22/28).

O Oficial Registrador exigiu, para registro do título judicial, o formal extraído por ocasião do divórcio, com a consequente partilha do referido imóvel, apoiando-se na súmula 377 do STF e em julgados do C. Conselho Superior da Magistratura, como o seguinte:

“Registro de Imóveis – Dúvida inversa – Recusa do registro de escritura de doação de imóvel com reserva de usufruto – Doador que figura no registro como casado pelo regime da separação de bens, sendo no presente viúvo – Necessidade de prévia partilha do bem ou de reconhecimento, na esfera jurisdicional, de que o imóvel não se comunicou à ex-esposa – Escritura, ademais, com descrição do imóvel em desacordo com os dados tabulares, presente, também, divergência no tocante ao número do cadastro municipal – Imprescindibilidade de prévia retificação do título apresentado ou do registro para afastar as divergências – Princípios da continuidade e da especialidade registrais – Recurso não provido” (TJSP; Apelação Cível 990.10.017.578-5; Relator (a): Munhoz Soares (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior de Magistratura; Data do Julgamento: 13/04/2010).

Entretanto, embora a interpretação da súmula 377 do STJ quanto à necessidade de prova do esforço comum seja tema extremamente controvertido, que leva a interpretações divergentes, inclusive no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a corte em questão já o analisou em duas oportunidades para uniformização.

Primeiramente, nos Embargos de Divergência nº1.171.820/PR, o tribunal superior concluiu que o reconhecimento do esforço comum do casal na aquisição onerosa de bens dependeria de prova. Foi nesse sentido o julgamento, que teve a seguinte ementa:

“EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. UNIÃO ESTÁVEL. COMPANHEIRO SEXAGENÁRIO. SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS (CC/1916, ART. 258, II; CC/2002, ART. 1.641, II). DISSOLUÇÃO. BENS ADQUIRIDOS ONEROSAMENTE. PARTILHA. NECESSIDADE DE PROVA DO ESFORÇO COMUM. PRESSUPOSTO DA PRETENSÃO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA PROVIDOS. 1. Nos moldes do art. 258, II, do Código Civil de 1916, vigente à época dos fatos (matéria atualmente regida pelo art. 1.641, II, do Código Civil de 2002), à união estável de sexagenário, se homem, ou cinquentenária, se mulher, impõe-se o regime da separação obrigatória de bens. 2. Nessa hipótese, apenas os bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, e desde que comprovado o esforço comum na sua aquisição, devem ser objeto de partilha. 3. Embargos de divergência conhecidos e providos para negar seguimento ao recurso especial” (EREsp 1171820/PR, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 26/08/2015, DJe 21/09/2015).

Para correta aplicação do precedente, é importante verificar os elementos do caso concreto.

Conforme indicado expressamente no corpo do referido acórdão:

“A tese central da controvérsia cinge-se, portanto, em definir se, na hipótese de união estável envolvendo sexagenário e cinquentenária, mantida sob o regime da separação obrigatória de bens, a divisão entre os conviventes dos bens adquiridos onerosamente na constância da relação depende ou não da comprovação do esforço comum para o incremento patrimonial”.

Também o fato de o aresto embargado cuidar da hipótese de partilha de bens foi destacado nos seguintes termos:

“Aqui, o fenômeno sucessório é elemento meramente circunstancial da tese ora discutida, o que não afasta a similitude fática entre os arestos confrontados, porque as eventuais peculiaridades da sucessão não foram levadas em conta, pois o que pretendia a convivente supérstite era a meação dos bens”.

Naquele julgamento, o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino pronunciou voto-vencido, no qual defendeu a aplicação da regra do artigo 5º da Lei n. 9.278/96, que estabelece exatamente a presunção legal do esforço comum na aquisição onerosa de bens na constância de união estável.

A Ministra Maria Isabel Gallotti, por sua vez, seguiu a maioria, lembrando que a lei civil que determina o regime da separação obrigatória para o sexagenário afasta a presunção do esforço comum, sendo que os bens adquiridos antes da entrada em vigor da Lei n. 9.278/96 têm sua propriedade disciplinada pelo ordenamento jurídico anterior, que não estabelecia essa presunção de esforço comum.

Posteriormente, no julgamento dos Embargos de Divergência nº1.623.858/MG, a necessidade de prova do esforço comum foi reafirmada, com expressa indicação de releitura da antiga súmula 377/STF, fixando-se nova compreensão, com a seguinte ementa:

“EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. UNIÃO ESTÁVEL. CASAMENTO CONTRAÍDO SOB CAUSA SUSPENSIVA. SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS (CC/1916, ART. 258, II; CC/2002, ART. 1.641, II). PARTILHA. BENS ADQUIRIDOS ONEROSAMENTE. NECESSIDADE DE PROVA DO ESFORÇO COMUM. PRESSUPOSTO DA PRETENSÃO. MODERNA COMPREENSÃO DA SÚMULA 377/STF. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA PROVIDOS. 1. Nos moldes do art. 1.641, II, do Código Civil de 2002, ao casamento contraído sob causa suspensiva, impõe-se o regime da separação obrigatória de bens. 2. No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento, desde que comprovado o esforço comum para sua aquisição. 3. Releitura da antiga Súmula 377/STF (No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento), editada com o intuito de interpretar o art. 259 do CC/1916, ainda na época em que cabia à Suprema Corte decidir em última instância acerca da interpretação da legislação federal, mister que hoje cabe ao Superior Tribunal de Justiça. 4. Embargos de divergência conhecidos e providos, para dar provimento ao recurso especial” (EREsp 1623858/MG, Rel. Ministro LÁZARO GUIMARÃES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 5ª REGIÃO), SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 23/05/2018, DJe 30/05/2018).

Neste caso, como anotado no acórdão:

“(…) a moldura fática e jurídica dos arestos confrontados é idêntica: saber se a comunicação/partilha dos bens adquiridos na constância de casamento submetido ao regime da separação legal de bens depende da comprovação do esforço comum na aquisição do acervo”.

O fenômeno sucessório, tal como no EREsp nº1.171.820, foi considerado elemento meramente circunstancial da celeuma.

Verificou-se que a súmula 377/STF apenas apregoa a comunicação dos bens, mas não esclarece se a comunicabilidade depende de algum outro requisito, permitindo a presunção pelo esforço comum do casal na aquisição do acervo ou exigindo comprovação desse esforço.

A conclusão foi de que a presunção do esforço comum conduz à ineficácia do regime da separação obrigatória por exigir produção de prova negativa para se comprovar que o ex-cônjuge ou ex-companheiro nada contribuiu para a aquisição onerosa do bem.

A regra, portanto, é a aplicação do regime da separação.

A comunicação dos bens adquiridos na constância do casamento sob o regime da separação obrigatória, embora admitida nos termos da súmula 377/STF, depende do exercício de pretensão e de efetiva demonstração do esforço comum.

Nesse contexto, não cabe ao Oficial Registrador qualificar negativamente o título com base na presunção do esforço comum, notadamente diante do reconhecimento do próprio casal, por ocasião de seu divórcio, de que não possuíam bens a partilhar (fls. 31/36).

Ademais, o artigo 489, §1º, VI, do CPC, dispõe que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial que deixe de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

A Corregedoria Permanente é exercida por órgão judicial, ainda que em processo administrativo.

A hipótese ora analisada se enquadra perfeitamente no precedente invocado: embora aquele trate de união estável, envolve a aplicação subsidiária do regime da separação obrigatória, o qual incide no caso concreto, sendo que a presunção do esforço comum prevista na Lei n. 9.278/96 se refere apenas ao reconhecimento da união estável, não se aplicando à situação sub judice.

Ressalta-se, por fim, que, nos termos da ementa do EREsp 1.623.858, a interpretação da súmula 377/STF é mister que hoje cabe ao STJ.

Assim, considerando que referida súmula é o fundamento básico da orientação firmada pelo C. Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, se definida sua releitura pelo STJ, toda a jurisprudência deve ser uniformemente orientada, como disciplina o artigo 926 do CPC, o que passou a ser feito por este juízo.

Diante do exposto, JULGO IMPROCEDENTE a dúvida suscitada pelo Oficial do 2º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de Heloísa Nespoli Llovio e, em consequência, determino o registro do título.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, ao arquivo com as cautelas de praxe.

P.R.I.C.

São Paulo, 15 de fevereiro de 2023.

Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Juíza de Direito (DJe de 17.02.2023 – SP)

Fonte: Diário da Justiça Eletrônico.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias.

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