TJ/SP – Registro de Imóveis – Escritura pública de instituição de bem de família – Título qualificado negativamente – Indisponibilidade decorrente de penhora em favor da Fazenda Nacional que impede qualquer ato de disposição do bem, que não a forçada – Exigência de levantamento da constrição averbada na matrícula – A situação registral a ser analisada é aquela existente no momento em que apresentada a escritura para registro – Inadmissibilidade de registro condicional – Instituição voluntária do bem de família, com o registro obrigatório no ofício imobiliário da situação do bem, que se destina ao abrigo ou proteção familiar – Ato que não importa em alienação do imóvel, o qual permanece sob o domínio do devedor do crédito que originou a penhora – Instituição do bem de família ineficaz em relação à credora que penhorou o imóvel anteriormente, por força do direito de sequela – Óbice afastado – Dá-se provimento ao recurso interposto.


  
 

Apelação Cível nº 1067433-97.2020.8.26.0100

Espécie: APELAÇÃO
Número: 1067433-97.2020.8.26.0100
Comarca: CAPITAL

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

Apelação Cível nº 1067433-97.2020.8.26.0100

Registro: 2021.0000361665

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1067433- 97.2020.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que é apelante LAURIVAL LAÉRCIO GABRIELLI JÚNIOR, é apelado 15º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA CAPITAL.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores PINHEIRO FRANCO (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), LUIS SOARES DE MELLO (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), GUILHERME G. STRENGER (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL), MAGALHÃES COELHO(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO) E DIMAS RUBENS FONSECA (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO).

São Paulo, 4 de maio de 2021.

RICARDO ANAFE

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Apelação Cível nº 1067433-97.2020.8.26.0100

Apelante: Laurival Laércio Gabrielli Júnior

Apelado: 15º Oficial de Registro de Imóveis da Capital

VOTO Nº 31.495

Registro de Imóveis – Escritura pública de instituição de bem de família – Título qualificado negativamente – Indisponibilidade decorrente de penhora em favor da Fazenda Nacional que impede qualquer ato de disposição do bem, que não a forçada – Exigência de levantamento da constrição averbada na matrícula – A situação registral a ser analisada é aquela existente no momento em que apresentada a escritura para registro – Inadmissibilidade de registro condicional – Instituição voluntária do bem de família, com o registro obrigatório no ofício imobiliário da situação do bem, que se destina ao abrigo ou proteção familiar – Ato que não importa em alienação do imóvel, o qual permanece sob o domínio do devedor do crédito que originou a penhora – Instituição do bem de família ineficaz em relação à credora que penhorou o imóvel anteriormente, por força do direito de sequela – Óbice afastado – Dá-se provimento ao recurso interposto.

1. Trata-se de apelação interposta por Laurival Laercio Gabrielli Júnior contra a sentença proferida pela MM.ª Juíza Corregedora Permanente do 15º Oficial de Registro de Imóveis da Capital, objetivando o registro de escritura pública de instituição de bem de família tendo por objeto o imóvel matriculado sob no 2.098 junto à referida serventia imobiliária (fl. 218/220).

O registrador emitiu nota de devolução, consignando que “o imóvel (…) encontra-se gravado pela penhora objeto da AV. 10 na matrícula nº 2.098, em favor da Fazenda Nacional, o que torna o imóvel indisponível, conforme § 1º do artigo 53 da Lei 8212/91”. Assim, exigiu o prévio cancelamento da referida penhora (fl. 18).

Alega o apelante, em síntese, que reside no imóvel com sua família, desde 1985, razão pela qual o bem já estava protegido, nos termos do art. 1º da Lei nº 8.009/90, antes mesmo da averbação da penhora em favor da Fazenda Nacional. Nesse sentido, afirma que o imóvel, sendo bem de família, não poderia ser penhorado por expressa disposição legal. Defende, também, a possibilidade da prática do ato de registro sob condição, ou seja, garantindo a proteção legal do bem de família enquanto não houver decisão judicial em sentido contrário, nos autos da ação de embargos à execução fiscal em que se discute a impenhorabilidade do bem. Por fim, sustenta que a indisponibilidade, se admitida, atingiria apenas a meação do executado e não, de sua esposa, ressaltando que, à época da lavratura do ato, ficou expressamente constando da escritura de instituição de bem de família que não havia indisponibilidade do bem (fl. 225/235).

A Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fl. 263/266).

É o relatório.

2. Busca o apelante o registro da escritura de instituição de bem de família tendo por objeto o imóvel matriculado sob nº 2.098 junto ao 15º Oficial de Registro de Imóveis da Capital (fl. 117/124).

Desde logo, é preciso anotar que, diferentemente do que sustenta o apelante, não há como se admitir o registro condicional, subordinado ao futuro julgamento dos embargos à execução que tramita perante a Justiça Federal (Processo nº 0003404-17.2013.4.03.6133). A respeito, merece ser transcrito ilustrativo trecho do voto vencedor proferido pelo Desembargador Márcio Martins Bonilha, na Apelação Cível nº 82.230-0/0, da Comarca de Piracicaba:

“Cumpre, inicialmente, ressaltar que não há como admitir o registro condicional, subordinado à futura apresentação de determinado documento, ou certidão explicativa. A legalidade da desqualificação é aferida tomando-se como parâmetro o momento exato da suscitação da dúvida, independentemente de documentos novos acostados aos autos no curso do procedimento, ou prometidos pelo interessado.

Lembre-se que admitir o cumprimento de exigências no curso do procedimento acarretaria a indevida prorrogação da prenotação, em detrimento potencial de outros titulares de direitos posicionais contraditórios (…)”.

É que a dúvida, se não prejudicada, comporta apenas duas soluções: procedência ou improcedência. Jamais poderá ser julgada improcedente para deferimento da prática de ato de registro condicionado a um evento futuro e incerto.

Ainda, no que diz respeito à alegação de que o imóvel em questão é destinado à moradia do apelante e sua família desde 1985 e que, portanto, a proteção legal decorrente do disposto na Lei nº 8.009/90 antecede a averbação da penhora em favor da Fazenda Nacional, importa lembrar que o título é qualificado pelo Oficial do registro de imóveis segundo as regras vigentes ao tempo em que a inscrição (lato sensu) foi rogada. Assim, mesmo que na escritura de instituição de bem de família não tenha constado a indisponibilidade decorrente da penhora averbada na matrícula, a situação registral a ser analisada é aquela existente no momento em que apresentada a escritura para registro.

No caso concreto, a recusa do registrador está fundada na exigência de cancelamento da averbação de penhora do referido imóvel em favor da Fazenda Nacional e consequente levantamento da indisponibilidade do bem.

A propósito da indisponibilidade, prevê o art. 53, § 1º, da Lei nº 8.212/91:

Art. 53. Na execução judicial da dívida ativa da União, suas autarquias e fundações públicas, será facultado ao exeqüente indicar bens à penhora, a qual será efetivada concomitantemente com a citação inicial do devedor.

§ 1º Os bens penhorados nos termos deste artigo ficam desde logo indisponíveis.

A redação da norma permite concluir que, penhorado o imóvel por dívida ativa da União, de suas autarquias ou de suas fundações públicas, de pronto estará indisponível o bem. E a indisponibilidade, decorrente da penhora em favor da Fazenda Nacional, impede qualquer ato de disposição do bem, que não a forçada. Sobre o tema, há inúmeros precedentes deste C. Conselho Superior da Magistratura: Apelação Cível nº 3003761-77.2013.8.26.0019, Rel. Elliot Akel, j. 03.06.2014; Apelação Cível nº 1003418-87.2015.8.26.0038, Rel. Pereira Calças, j. 25.04.2016; Apelação Cível nº 0006500-59.2019.8.26.0344, Rel. Pinheiro Franco, j. 10.12.2019.

Nesse contexto, é preciso ponderar se a instituição de bem de família importa em alienação voluntária do imóvel.

Pois bem. O Código Civil não traz uma definição específica sobre o instituto, nem seu conceito, apenas prevendo sua existência, forma de constituição e finalidade. Nesse sentido, dispõem os arts. 1.711 e 1.712 do referido diploma legal:

Art. 1.711. Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial.

Parágrafo único. O terceiro poderá igualmente instituir bem de família por testamento ou doação, dependendo a eficácia do ato da aceitação expressa de ambos os cônjuges beneficiados ou da entidade familiar beneficiada.

Art. 1.712. O bem de família consistirá em prédio residencial urbano ou rural, com suas pertenças e acessórios, destinando-se em ambos os casos a domicílio familiar, e poderá abranger valores mobiliários, cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família.

Para Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (“Direito das Famílias”. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, pp. 702/703), o instituto é uma forma de afetação de bens a um destino especial, visando assegurar a dignidade humana dos componentes de uma família, garantindo sua sobrevivência, com base no mínimo existencial de patrimônio, para a realização da justiça social. Caio Mário da Silva Pereira (“Instituições de Direito Civil: direito de família”, 23ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, v. 5, p. 244) entende que “o bem de família é uma forma de afetação de bens a um destino especial que é ser a residência da família, e, enquanto for, é impenhorável por dívidas posteriores à sua constituição, salvo provenientes de impostos devidos pelo próprio prédio”. De seu turno, Sílvio de Salvo Venosa (“Direito Civil: Direito de família”, 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2009, pp. 384/386) transmite o pensamento de Serpa Lopes, para quem o bem de família é um condomínio sui generis, no qual nenhum dos cotitulares possui uma quota parte, ensejando uma coletividade que abarca o instituto, representada pelo chefe da família.

Assim, conclui:

“Trata-se da destinação ou afetação de um patrimônio em que opera a vontade do instituidor, amparada pela lei. É uma forma de tornar o bem como coisa fora do comércio, em que são combinadas a vontade da lei e a vontade humana. Nesse diapasão, o bem de família fica isento de execução por dívidas posteriores sua instituição, salvo as que provierem de tributos relativos ao prédio ou despesas de condomínio (art. 1.715)”.

A instituição voluntária do bem de família, com o registro obrigatório no ofício imobiliário da situação do bem, destina-se ao abrigo ou proteção familiar. Com isso, o imóvel em que a família está domiciliada torna-se impenhorável (isento de dívidas futuras, salvo obrigações tributárias referentes ao bem e despesas condominiais – art. 1.715 do Código Civil) e inalienável (só poderá ser alienado com a autorização dos interessados, cabendo ao Ministério Público intervir quando houver participação de incapaz – art. 1.717 do Código Civil), até a morte de ambos os cônjuges e a maioridade dos filhos, desde que não sujeitos a curatela (art. 1.722 do Código Civil).

Como se vê, a instituição do bem de família não se consubstancia numa transferência de domínio, ou seja, não equivale à alienação do imóvel. Ao contrário, o imóvel permanece sob o domínio do devedor do crédito que originou a penhora em questão.

A respeito, ressalta Caio Mário da Silva Pereira que:

“Não se verifica uma transmissão (salvo constituição por terceiros), porque a coisa não sai da propriedade do pater familias, e não ocorre a criação de um condomínio, pela razão de nenhum dos membros do grupo familiar ter uma quota ideal do imóvel. Se se atentar para o fato de que com a morte dos cônjuges e a maioridade dos filhos se opera, pleno iure, a sua extinção, da mesma forma que esta pode ser declarada a requerimento dos interessados, se o bem tiver deixado de preencher o requisito de sua destinação, concluir-se-á que não sofre a coisa, como objeto de relação jurídica, uma alteração essencial na sua natureza. É, e continua sendo objeto do direito de propriedade do instituidor, mas afetado a uma finalidade, sub conditione da utilização como domicílio dos membros da família” (“Instituições de Direito Civil”. 28ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2010, p. 230).

Ademais, em relação à credora que penhorou o imóvel a instituição do bem de família é ineficaz, por força do direito de sequela. Em princípio, responderá o imóvel pelos débitos pretéritos, certo que eventual impenhorabilidade decorrente de lei deverá ser discutida nos autos dos embargos à execução que está em curso perante a Justiça Federal.

Nesse cenário, o registro da escritura pública de instituição de bem de família, tendo por objeto o imóvel matriculado sob nº 2.098 junto ao 15º Oficial de Registro de Imóveis da Capital, não pode ser obstado, sendo de rigor o afastamento, no caso concreto, da exigência de prévio levantamento da penhora averbada em favor da Fazenda Nacional (AV. 10 – fl. 117/124), que deu ensejo à indisponibilidade do bem (art. 53, § 1º, da Lei 8.212/91).

3. À vista do exposto, pelo meu voto, dou provimento à apelação interposta, para julgar a dúvida improcedente.

RICARDO ANAFE

Corregedor Geral da Justiça e Relator (DJe de 27.07.2021 – SP)

Fonte: DJE/SP

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias.

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