CSM/SP: Registro de Imóveis – Dúvida – Instrumento particular de compra e venda e de alienação fiduciária em garantia – Indisponibilidade judicialmente decretada sobre o patrimônio da compradora e fiduciante – Óbice existente ao tempo da prenotação – Irrelevância, neste caso, da data da celebração dos negócios jurídicos – Prior in tempore, potior in iure – Impossibilidade de ambos os registros – Inviabilidade da cisão do título – Inexistência de direito adquirido à transmissão do domínio e à alienação fiduciária em garantia, antes do registro, que tem natureza constitutiva – Inaplicabilidade, ao caso, das regras que permitem a inscrição de atos coativos (e. g., penhoras) – Irrelevância de questões extrarregistrárias – Óbice mantido – Apelação a que se nega provimento.

Apelação Cível nº 1015670-19.2021.8.26.0554

Espécie: APELAÇÃO
Número: 1015670-19.2021.8.26.0554
Comarca: SANTO ANDRÉ

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

Apelação Cível nº 1015670-19.2021.8.26.0554

Registro: 2022.0000147709

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1015670-19.2021.8.26.0554, da Comarca de Santo André, em que é apelante LUCIANA PASQUALI, é apelado PRIMEIRO OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS, TÍTULOS E DOCUMENTOS E CIVIL DE PESSOA JURÍDICA DA COMARCA DE SANTO ANDRÉ.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores RICARDO ANAFE (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), GUILHERME GONÇALVES STRENGER (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), BERETTA DA SILVEIRA (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO), WANDERLEY JOSÉ FEDERIGHI(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO) E FRANCISCO BRUNO (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 24 de fevereiro de 2022.

FERNANDO ANTONIO TORRES GARCIA

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Apelação Cível nº 1015670-19.2021.8.26.0554

Apelante: Luciana Pasquali

Apelado: Primeiro Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca de Santo André

VOTO Nº 38.595

Registro de Imóveis – Dúvida – Instrumento particular de compra e venda e de alienação fiduciária em garantia – Indisponibilidade judicialmente decretada sobre o patrimônio da compradora e fiduciante – Óbice existente ao tempo da prenotação – Irrelevância, neste caso, da data da celebração dos negócios jurídicos – Prior in tempore, potior in iure – Impossibilidade de ambos os registros – Inviabilidade da cisão do título – Inexistência de direito adquirido à transmissão do domínio e à alienação fiduciária em garantia, antes do registro, que tem natureza constitutiva – Inaplicabilidade, ao caso, das regras que permitem a inscrição de atos coativos (e. g., penhoras) – Irrelevância de questões extrarregistrárias – Óbice mantido – Apelação a que se nega provimento.

Trata-se de apelação (fls. 71/79) interposta por Luciana Pasquali contra a r. sentença (fls. 62/64) proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do 1º Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca de Santo André, que julgou procedente a dúvida (fls. 01/03) e manteve a recusa de registros stricto sensu de compra e venda e de alienação fiduciária em garantia (fls. 13/27) na matrícula nº 158.173 daquele cartório.

Segundo a r. sentença, consta decreto de indisponibilidade sobre os bens da compradora e fiduciante Luciana Pasquali. Portanto, a recusa foi correta e os registros pretendidos não podem ser efetuados, como se tira do item 413 do Capítulo XX das Normas de Serviço dos Cartórios Extrajudiciais NSCGJ, do artigo 16, do Provimento nº 39, de 25 de julho de 2014, da Corregedoria Nacional de Justiça e de precedente do Conselho Superior da Magistratura (Apel. Cív. 0019371-42.2013.8.26.0309, j. 17.03.2017). Acrescenta o decisum, ainda, que os registros da compra e venda e da alienação fiduciária não podem ser efetivados porque o comprador fiduciante não estava livre para dispor do bem comprado e, portanto, não o poderia alienar fiduciariamente, além do que não há como cindir o título, haja vista implicar alteração da vontade dos figurantes.

Em seu recurso, a apelante afirma que o Provimento 39 do CNJ, em seu artigo 14, §4º, não veda a compra de bens, mas, tão somente, sua alienação, e que a ordem advinda da CNIB não é de inalienabilidade, mas de indisponibilidade. Acrescenta que a alienação fiduciária confere ao Banco Credor a propriedade resolúvel do imóvel, não se atribuindo, portanto, a propriedade à parte que possui a indisponibilidade, o que apenas ocorrerá com a quitação do contrato de financiamento com alienação fiduciária. Dessa forma, conclui que a vedação do registro atinge direito do Banco proprietário fiduciário, e não da requerente. Por fim, invoca o direito fundamental à moradia, aduzindo que se trata de aquisição de primeiro e único imóvel, a salvo da penhora por conta da lei que trata do bem de família (Lei nº 8.009/90), destacando, ainda, que é pessoa com deficiência reconhecida e atestada.

Por tudo isso, pede a apelante a reforma da sentença, para que se lhe defira o registro, como rogara.

A douta Procuradoria Geral de Justiça ofertou parecer pelo não provimento do recurso (fls. 94/96).

É o relatório.

Em que pese às razões da apelante, a r. sentença deve ser mantida, como, aliás, opinou o Ministério Público.

A pretensão da apelante de ver registrado o contrato de compra e venda com alienação fiduciária em garantia na matrícula do imóvel sob nº 158.173, junto ao 1º Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca de Santo André, não era mesmo procedente, em face da ordem de indisponibilidade de bens advinda do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (fl. 05).

O Provimento nº 39 não veda, de fato, a compra e bens imóveis, como se vê do artigo 14, §4º:

“Em caso de aquisição de imóvel por pessoa cujos bens foram atingidos por ordem de indisponibilidade deverá o Oficial de Registro de Imóveis, imediatamente após o lançamento do registro do título aquisitivo na matrícula do imóvel, promover a averbação da indisponibilidade, independentemente de prévia consulta ao adquirente”.

Todavia, o artigo 16, do mesmo provimento, impede o registro da alienação judicial do imóvel, a menos que ela seja oriunda do mesmo “juízo que determinou a indisponibilidade, ou a que distribuído inquérito civil público e a posterior ação desse decorrente, ou que consignado no título judicial a prevalência da alienação judicial em relação à restrição oriunda de outro juízo ou autoridade administrativa a que foi dada ciência da execução”.

No mesmo sentido é o item 413, do Capítulo XX, das Normas de Serviço dos Cartórios Extrajudiciais:

“413. As indisponibilidades averbadas nos termos do Provimento CG. 13/2012 e CNJ nº 39/2014 e na forma do § 1º, do artigo 53, da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, não impedem a inscrição de constrições judiciais, assim como não impedem o registro da alienação judicial do imóvel desde que a alienação seja oriunda do juízo que determinou a indisponibilidade, ou a que distribuído o inquérito civil público e a posterior ação desse decorrente, ou que consignado no título judicial a prevalência da alienação judicial em relação à restrição oriunda de outro juízo ou autoridade administrativa a que foi dada ciência da execução”.

Então, caso fosse registrada a compra e venda, imediatamente deveria o Oficial realizar o registro da indisponibilidade, em atendimento ao artigo 14, §4º, do Provimento 39, do CNJ, o que faria incidir, em seguida, o disposto no artigo 16 do mesmo ato normativo, impedindo que fosse o imóvel alienado fiduciariamente ao Banco contratante.

Isso porque o bem se torna indisponível assim que passar a compor o patrimônio da apelante, obstando que seja dado em garantia mediante a alienação fiduciária.

Trata-se de observar o princípio da prioridade registral (Cód. Civil, artigo 1.246; Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973, arts. 182, 183 e 186), evitando “conflitos de títulos contraditórios, que são aqueles incompatíveis entre si ou reciprocamente excludentes, referentes ao mesmo imóvel” (Apelação Cível nº 1037783-85.2019.8.26.0602, Conselho Superior da Magistratura do TJSP, Relator Corregedor Geral de Justiça, DES. RICARDO ANAFE, data do julgamento: 05/07/2020).

Nas palavras de Afrânio de Carvalho:

“O princípio da prioridade significa que, num concurso de direitos reais sobre um imóvel, estes não ocupam todos o mesmo posto, mas se graduam ou classificam por uma relação de precedência fundada na ordem cronológica do seu aparecimento: prior tempore polior jure. Conforme o tempo em que surgirem, os direitos tomam posição no registro, prevalecendo os anteriormente estabelecidos sobre os que vierem depois”. (Registro de Imóveis, 4a ed., Editora Forense, 1998, p. 181).

Os títulos apresentados a registro serão, então, qualificados conforme a data de apresentação, e sofrerão os efeitos de quaisquer outros fatos impeditivos que houverem, antes, acedido conhecimento do Oficial de Registro de Imóveis e dados ao Protocolo: prior in tempore, potior in iure, isto é, prevalece o fato jurídico com precedência, no tempo.

Na espécie, os negócios jurídicos de compra e venda e de alienação fiduciária em garantia foram celebrados em 31 de maio de 2021 (fls. 27), e o instrumento particular correspondente foi apresentado ao registro e prenotado em 16 de junho de 2021 (fls. 01). Portanto, os requisitos de inscrição de ambos os negócios tinham de ser avaliados segundo a situação jurídica dessa última data, quando já havia o obstáculo: com efeito, sobre o patrimônio da compradora e fiduciante pendia, desde 19 de novembro de 2020, ordem jurisdicional de indisponibilidade de bens (fls. 05).

Portanto, andou bem o Oficial quando indeferiu os registros da compra e venda (Lei n. 6.015/73, artigo 167, I, 29) e da alienação fiduciária (eadem, artigo 167, I, 35), tendo em conta essa ordem de indisponibilidade: é que a lavratura dessas inscrições dependia de que o comprador fiduciante estivesse livre para dispor do bem comprado para que, assim, o pudesse alienar fiduciariamente (Cód. Civil, artigo 1.420, caput, c. c. artigo 1.367).

Porém, essa liberdade não havia, e, tratando-se de dois negócios jurídicos coligados (a alienação e a prestação da garantia), o Oficial simplesmente não podia cindir o título, permitindo o registro da compra e venda sem, contudo, admitir o da alienação fiduciária. Em outros termos: o título formal (= o instrumento particular de compra e venda copiada a fls. 13/27 destes autos; Lei n. 6.015/1973, artigo 221, I) contém dois negócios jurídicos, e foi rogado o registro de ambos, de maneira que, sendo inviável a cisão (já por implicar alteração da vontade dos figurantes, já por violar o princípio da instância: CSMSP, Apel. Cív. 1.918-0, Rel. Bruno Affonso de André, j. 7.7.1983; CSMSP, Apel. Cív. 59.966-0/4, Rel. Sérgio Augusto Nigro Conceição, j. 10.9.1999; CSMSP, Apel. Cív. 12.941-0/7, Rel. Onei Raphael, j. 23.9.1991), a impossibilidade de ingresso de um necessariamente implicava o malogro registral de ambos como bem ficou visto na nota devolutiva e na r. sentença apelada.

Dados esses pressupostos, nenhum dos demais pontos discutidos na apelação traz algum argumento que possa justificar a reforma do decisum, o afastamento das exigências e a lavratura dos registros rogados.

As regras prior in tempore, potior in iure e a sua correlata tempus regit actum não ferem a boa-fé, nem prejudicam a igualdade jurídica, pelo contrário: num sistema formal, como é o registro de imóveis, trata-se de exigência fundamental da segurança jurídica, para que se conheça, desde o início do processo de inscrição, quais sejam o direito aplicável e os requisitos normativos para o registro, a averbação ou a matriculação que o interessado rogou.

A apelante não tem direito adquirido à transmissão do domínio e à alienação fiduciária, e, portanto, não se pode dizer que se esteja a vedar o direito à moradia (Constituição da República, artigo 6º). Como é cediço, direito adquirido é aquele cujo titular possa exercer (Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942, artigo 6º, § 2º), e na hipótese em questão esse exercício só se podia dar com a inscrição no registro de imóveis, a qual é constitutiva. Ou seja: a transmissão do domínio fundada na compra e venda e a alienação fiduciária não se constituíram pelo mero contrato entre os figurantes, os quais, portanto, ainda não podiam (como ainda não podem) beneficiar-se da cláusula posta no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição da República. Nesse contexto, convém notar que é aqui de todo descabida a analogia com o que se passa no compromisso de compra e venda: de um lado, o direito real previsto no artigo 1.418 do Cód. Civil efetivamente só existe se e quando houver registro (cf. artigo 1.417); e, de outro lado, as súmulas 84 e 239 do Superior Tribunal de Justiça protegem situações de fato, em respeito à boa-fé e à intenção das partes, sem, entretanto, afastar a regra fundamental de que no direito brasileiro o negócio jurídico não é, de per si, bastante para a constituição, modificação e extinção de direitos reais imobiliários (Cód. Civil, artigo 1.227; Lei n. 6.015/1973, artigo 172).

É fato que as NSCGJ (item 413 do Capítulo XX), o Provimento n. 39, de 25 de julho de 2014, da Corregedoria Nacional de Justiça (artigo 16) e a jurisprudência deste Conselho Superior da Magistratura (e. g., Apel. Cív. n. 0019371-42.2013.8.26.0309, j. 17.3.2017) não impedem, como regra geral, a penhora de bens indisponíveis. Isso, porém, não basta para que se autorize, também, a alienação fiduciária desses mesmos bens, pois não há razão de analogia entre uma constrição de natureza jurisdicional (como é a penhora) e um negócio jurídico de disposição (como é um direito real de garantia) para que se aplique, a este último, regra jurídica que concerne apenas àquela primeira, por dizer respeito somente à inscrição de atos coercitivos.

Por fim, a invocação do direito à moradia, a eventual proteção ulterior do bem de família, ou sobre a autora ser pessoa com deficiência, são, com a devida vênia, questões extra registrais que, justamente por isso (= porque não contribuem em nada para afastar o óbice aos registros pretendidos), não podem ser levadas em linha de conta.

Ante o exposto, pelo meu voto, nego provimento ao apelo.

FERNANDO ANTONIO TORRES GARCIA

Corregedor Geral da Justiça e Relator (DJe de 12.05.2022 – SP)

Fonte: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias.

Para acompanhar as notícias do Portal do RI, siga-nos no twitter, curta a nossa página no facebook e/ou assine nosso boletim eletrônico (newsletter), diário e gratuito