Registro Civil de Pessoas Jurídicas – Pretensão de averbação de alteração contratual, para inclusão de espólio como sócio – Inviabilidade da averbação – As quotas sociais que pertenciam ao sócio falecido agora integram a herança e foram transmitidas aos herdeiros – Impossibilidade de participação do espólio no quadro societário – Recurso desprovido.

Número do processo: 1110650-98.2017.8.26.0100

Ano do processo: 2017

Número do parecer: 492

Ano do parecer: 2018

Parecer

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA

Processo CG n° 1110650-98.2017.8.26.0100

(492/2018-E)

Registro Civil de Pessoas Jurídicas – Pretensão de averbação de alteração contratual, para inclusão de espólio como sócio – Inviabilidade da averbação – As quotas sociais que pertenciam ao sócio falecido agora integram a herança e foram transmitidas aos herdeiros – Impossibilidade de participação do espólio no quadro societário – Recurso desprovido.

Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça:

Trata-se de recurso interposto por EDCAR-LOCAÇÃO DE BENS LTDA. contra a r. sentença de fls. 86/89, que julgou improcedente o pedido de providências suscitado em face da negativa do Sr. Oficial do 4º Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Capital ao pedido de averbação da Ata da Assembleia Geral Ordinária e Extraordinária, realizada em 20 de julho de 2017, com alteração no quadro societário.

Sustenta a recorrente que o Espólio de Edda Multedo Pareto possui capacidade postulatória, nos termos do art. 1.056 do Código Civil e art. 618 do Código de Processo Civil, daí decorrendo a possiblidade da averbação, já que o inventário da falecida ainda está em trâmite.

Diz ser perfeitamente possível que o espólio integre o quadro societário, por intermédio de seu representante legal, até o encerramento do inventário.

Por fim, afirma seu direito com base na boa-fé, até porque já houve averbação anterior em que constava o Espólio de Carlo Ernesto Maria Pareto como sócio no contrato social.

A D. Procuradoria Geral da Justiça opinou pelo desprovimento do recurso (fl. 129/133).

Opino.

Preliminarmente, não se tratando de procedimento de dúvida, cujo cabimento é restrito aos atos de registro em sentido estrito, verifica-se que o recurso foi denominado erroneamente de apelação.

Isso porque se busca a retificação de atos já inscritos em registros anteriores, materializados por atos de averbação, nos termos do art. 213 §1° da Lei nº 6.015/73.

Todavia, tendo em vista a sua tempestividade, possível o conhecimento e processamento do apelo como recurso administrativo, nos termos do art. 246 do Código Judiciário do Estado de São Paulo (Decreto-Lei Complementar nº 03/1969).

Na matéria de fundo, independentemente dos dispositivos legais invocados, ou mesmo da vontade dos sócios remanescentes quanto à participação dos sucessores no quadro societário, fato é que o espólio não possui capacidade jurídica para a averbação pretendida.

Diz o art. 1.028 do Código Civil:

Art. 1.028. No caso de morte de sócio, liquidar-se-á sua quota, salvo:

I – se o contrato dispuser diferentemente;

II – se os sócios remanescentes optarem pela dissolução da sociedade;

III – se, por acordo com os herdeiros, regular-se a substituição do sócio falecido.

Por sua vez, o art. 1.031 do Código Civil assim afirma:

Art. 1.031. Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado.

Independentemente das previsões que constam do contrato social, que tratam da liquidação da quota e apuração de haveres no caso de morte de um sócio, é inafastável a aplicação do princípio da saisine, nos exatos termos do art. 1.784 da Lei Civil, já que, aberta a sucessão, a herança se transmite desde logo aos herdeiros legítimos e testamentários.

E não se pode confundir capacidade postulatória com capacidade jurídica. A primeira diz respeito à possibilidade de se pleitear direito próprio em seu nome, ou se defender contra pretensão de outrem, em ação judicial, tudo relacionado a institutos do processo civil.

Já a capacidade jurídica tem natureza material, vinculada à capacidade de ser parte em relação jurídica de direito material, tal como participar ou não de quadro societário.

Tais institutos, a rigor, não se confundem.

E mesmo o art. 1.056 do Código Civil, citado nas razões recursais, também diz respeito à capacidade postulatória, ao dispor que: “os direitos a ele inerentes somente podem ser exercidos (…)”, em clara referência à defesa de direitos em relação processual.

Não por outro motivo, o art. 981 da Lei Civil é expresso ao definir que “celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados”. (g.n).

Ora, espólio não é sujeito de direito e deveres, tampouco é pessoa. Assim, não pode celebrar contrato de sociedade.

Desse modo, o espólio tem a incumbência de administração provisória de apuração de haveres, nos termos dos precedentes citados pela própria recorrente (fl. 105), não restando espaço para que o ente despersonalizado figure como sócio.

O ingresso no quadro societário e a participação nas deliberações sociais dependem de ato de subscrição praticado por pessoa física ou jurídica, dotada de personalidade, não podendo o espólio atuar nesse âmbito.

Cabe ao espólio lidar provisoriamente com a gestão de bens patrimoniais, o que abrange tão somente a administração do direito de crédito representado pelas quotas sociais, mas não a atuação como sócio.

No caso concreto, 31,25% do capital social permaneceriam sem titularidade determinada; a atuação do inventariante do Espólio de Edda Multedo Pareto sequer é definitiva, pois nada obsta, por exemplo, que herdeiros renunciem aos seus quinhões, o que tornaria ilegítima qualquer deliberação tomada pelo inventariante, haja vista o efeito retroativo decorrente do princípio da saisine.

Resta aos herdeiros o direito patrimonial de crédito representado pelas quotas sociais, ficando a cargo deles a opção de ingressar ou não no quadro societário, já que se trata de declaração de vontade a ser tomada com base na Lei e no ato constitutivo, face à intransmissibilidade imediata e automática da condição de sócio.

Por fim, não se acolhe a alegação de que, como houve registro anterior no qual o espólio de falecido marido foi admitido como sócio, deveria incidir a regra da venire contra factum proprium.

A teoria dos atos próprios impede que o sujeito de relação jurídica retorne sobre os próprios passos, prejudicando terceiros que confiaram na regularidade de seu procedimento, em ofensa ao princípio da boa-fé objetiva.

Ocorre que, em matéria de registros públicos, ainda que haja um comportamento inicial e duradouro, tal fato não é passível de gerar expectativa justificada de que se prosseguirá atuando naquela direção.

De fato, fora admitido, em 18/06/2004, o ingresso do espólio de Carlo Ernesto Maria Pareto como sócio, naquela situação, com natureza que deveria ser provisória, solucionada pela expedição do formal de partilha, o que não ocorreu.

Em verdade, se aceita a pretensão da recorrente, a saída do espólio de Carlo Ernesto Maria Pareto redundaria no ingresso de outro espólio no quadro societário, perpetuando-se a situação de irregularidade no quadro social.

Como bem sugerido pelo Sr. Oficial à fl. 84/85, caso um ou mais herdeiros queiram ingressar na sociedade, poderão subscrever imediatamente quotas do capital social, firmando, juntamente com os sócios remanescentes, a respectiva alteração do contrato social, deixando pendente apenas a integralização dessas quotas para o momento em que for expedido o formal de partilha.

Pelas razões expostas, o parecer que, respeitosamente, submeto à elevada apreciação de Vossa Excelência, é pelo conhecimento da apelação como recurso administrativo, nos termos do art. 246 do Código Judiciário do Estado de São Paulo, e, no mérito, pelo seu desprovimento.

Sub censura.

São Paulo, 22 de novembro de 2018.

Paulo Cesar Batista dos Santos

Juiz Assessor da Corregedoria

DECISÃO: Aprovo o parecer do MM. Juiz Assessor da Corregedoria e, por seus fundamentos, que adoto, recebo a apelação como recurso administrativo e a ele nego provimento. Publique-se. São Paulo, 23 de novembro de 2018. (a) GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO, Corregedor Geral da Justiça – Advogado: BRUNO OLIVEIRA MAGGI, OAB/SP 252.385.

Diário da Justiça Eletrônico de 17.12.2018

Decisão reproduzida na página 262 do Classificador II – 2018

Fonte: INR Publicações

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias

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Civil e Processual Civil – Confirmação de testamento particular escrito por meio mecânico – Omissão e obscuridade no acórdão recorrido – Inocorrência – Questão enfrentada e prequestionada – Sucessão testamentária – Ausência de assinatura de próprio punho do testador – Requisito de validade – Obrigatoriedade de observância, contudo, da real vontade do testador, ainda que expressada sem todas as formalidades legais – Distinção entre vícios sanáveis e vícios insanáveis que não soluciona a questão controvertida – Necessidade de exame da questão sob a ótica da existência de dúvida sobre a vontade real do testador – Interpretação histórico-evolutiva do conceito de assinatura – Sociedade moderna que se individualiza e se identifica de variados modos, todos distintos da assinatura tradicional – Assinatura de próprio punho que traz presunção juris tantum da vontade do testador, que, se ausente, deve ser cotejada com as demais provas – 1. Ação ajuizada em 26/01/2015. Recurso especial interposto em 02/06/2016 e atribuído à Relatora em 11/11/2016 – 2. Os propósitos recursais consistem em definir se: (i) houve omissão relevante no acórdão recorrido; (ii) é válido o testamento particular que, a despeito de não ter sido assinado de próprio punho pela testadora, contou com a sua impressão digital – 3. Deve ser rejeitada a alegação de omissão, obscuridade ou contradição quando o acórdão recorrido se pronuncia, ainda que sucintamente, sobre as questões suscitadas pela parte, tornando prequestionada a matéria que se pretende ver examinada no recurso especial – 4. Em se tratando de sucessão testamentária, o objetivo a ser alcançado é a preservação da manifestação de última vontade do falecido, devendo as formalidades previstas em lei serem examinadas à luz dessa diretriz máxima, sopesando-se, sempre casuisticamente, se a ausência de uma delas é suficiente para comprometer a validade do testamento em confronto com os demais elementos de prova produzidos, sob pena de ser frustrado o real desejo do testador – 5. Conquanto a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça permita, sempre excepcionalmente, a relativização de apenas algumas das formalidades exigidas pelo Código Civil e somente em determinadas hipóteses, o critério segundo o qual se estipulam, previamente, quais vícios são sanáveis e quais vícios são insanáveis é nitidamente insuficiente, devendo a questão ser examinada sob diferente prisma, examinando-se se da ausência da formalidade exigida em lei efetivamente resulta alguma dúvida quanto a vontade do testador – 6. Em uma sociedade que é comprovadamente menos formalista, na qual as pessoas não mais se individualizam por sua assinatura de próprio punho, mas, sim, pelos seus tokens, chaves, logins e senhas, ID’s, certificações digitais, reconhecimentos faciais, digitais e oculares e, até mesmo, pelos seus hábitos profissionais, de consumo e de vida captados a partir da reiterada e diária coleta de seus dados pessoais, e na qual se admite a celebração de negócios jurídicos complexos e vultosos até mesmo por redes sociais ou por meros cliques, o papel e a caneta esferográfica perdem diariamente o seu valor e a sua relevância, devendo ser examinados em conjunto com os demais elementos que permitam aferir ser aquela a real vontade do contratante – 7. A regra segundo a qual a assinatura de próprio punho é requisito de validade do testamento particular, pois, traz consigo a presunção de que aquela é a real vontade do testador, tratando-se, todavia, de uma presunção juris tantum, admitindo-se, ainda que excepcionalmente, a prova de que, se porventura ausente a assinatura nos moldes exigidos pela lei, ainda assim era aquela a real vontade do testador – 8. Hipótese em que, a despeito da ausência de assinatura de próprio punho do testador e do testamento ter sido lavrado a rogo e apenas com a aposição de sua impressão digital, não havia dúvida acerca da manifestação de última vontade da testadora que, embora sofrendo com limitações físicas, não possuía nenhuma restrição cognitiva – 9. O provimento do recurso especial por um dos fundamentos torna despiciendo o exame dos demais suscitados pela parte. Precedentes – 10. Recurso especial conhecido e provido.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.633.254 – MG (2016/0276109-0)

RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI

RECORRENTE : BEATRIZ AGUIAR BOVENDORP VELOSO

ADVOGADOS : RENATO VELOSO E OUTRO(S) – MG072134

JULIANA VIEIRA LOBATO E OUTRO(S) – MG074232

RODRIGO PEIXOTO DE SOUZA E OUTRO(S) – MG129641

RECORRIDO : PATRICIA SIQUEIRA BOVENDORP DAMASIO

ADVOGADOS : PETRONIO PEIXOTO PENA E OUTRO(S) – MG065041N

EMILAYNE NATHALYA COSTA SILVA – MG151077

INTERES. : RICARDO SIQUEIRA BOVENDORP

INTERES. : ANDRE RENNO BOVENDORP

ADVOGADO : ELISIO DA SILVA – MG068187

INTERES. : DIRK GERHARD AGUIAR BEVENDORP

INTERES. : JOAO BOVENDORP NETO

INTERES. : MARCOS SIQUEIRA BOVENDORP

ADVOGADO : SILAS AUGUSTO DA COSTA – MG042617

INTERES. : MARCIA SIQUEIRA BOVENDORP

INTERES. : PEDRO RENNO BOVENDORP

INTERES. : NILZA AGUIAR BOVENDORP – ESPÓLIO

EMENTA

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CONFIRMAÇÃO DE TESTAMENTO PARTICULAR ESCRITO POR MEIO MECÂNICO. OMISSÃO E OBSCURIDADE NO ACÓRDÃO RECORRIDO. INOCORRÊNCIA. QUESTÃO ENFRENTADA E PREQUESTIONADA. SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA. AUSÊNCIA DE ASSINATURA DE PRÓPRIO PUNHO DO TESTADOR. REQUISITO DE VALIDADE. OBRIGATORIEDADE DE OBSERVÂNCIA, CONTUDO, DA REAL VONTADE DO TESTADOR, AINDA QUE EXPRESSADA SEM TODAS AS FORMALIDADES LEGAIS. DISTINÇÃO ENTRE VÍCIOS SANÁVEIS E VÍCIOS INSANÁVEIS QUE NÃO SOLUCIONA A QUESTÃO CONTROVERTIDA. NECESSIDADE DE EXAME DA QUESTÃO SOB A ÓTICA DA EXISTÊNCIA DE DÚVIDA SOBRE A VONTADE REAL DO TESTADOR. INTERPRETAÇÃO HISTÓRICO-EVOLUTIVA DO CONCEITO DE ASSINATURA. SOCIEDADE MODERNA QUE SE INDIVIDUALIZA E SE IDENTIFICA DE VARIADOS MODOS, TODOS DISTINTOS DA ASSINATURA TRADICIONAL. ASSINATURA DE PRÓPRIO PUNHO QUE TRAZ PRESUNÇÃO JURIS TANTUM DA VONTADE DO TESTADOR, QUE, SE AUSENTE, DEVE SER COTEJADA COM AS DEMAIS PROVAS.

1 – Ação ajuizada em 26/01/2015. Recurso especial interposto em 02/06/2016 e atribuído à Relatora em 11/11/2016.

2 – Os propósitos recursais consistem em definir se: (i) houve omissão relevante no acórdão recorrido; (ii) é válido o testamento particular que, a despeito de não ter sido assinado de próprio punho pela testadora, contou com a sua impressão digital.

3 – Deve ser rejeitada a alegação de omissão, obscuridade ou contradição quando o acórdão recorrido se pronuncia, ainda que sucintamente, sobre as questões suscitadas pela parte, tornando prequestionada a matéria que se pretende ver examinada no recurso especial.

4 – Em se tratando de sucessão testamentária, o objetivo a ser alcançado é a preservação da manifestação de última vontade do falecido, devendo as formalidades previstas em lei serem examinadas à luz dessa diretriz máxima, sopesando-se, sempre casuisticamente, se a ausência de uma delas é suficiente para comprometer a validade do testamento em confronto com os demais elementos de prova produzidos, sob pena de ser frustrado o real desejo do testador.

5 – Conquanto a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça permita, sempre excepcionalmente, a relativização de apenas algumas das formalidades exigidas pelo Código Civil e somente em determinadas hipóteses, o critério segundo o qual se estipulam, previamente, quais vícios são sanáveis e quais vícios são insanáveis é nitidamente insuficiente, devendo a questão ser examinada sob diferente prisma, examinando-se se da ausência da formalidade exigida em lei efetivamente resulta alguma dúvida quanto a vontade do testador.

6 – Em uma sociedade que é comprovadamente menos formalista, na qual as pessoas não mais se individualizam por sua assinatura de próprio punho, mas, sim, pelos seus tokens, chaves, logins e senhas, ID’s, certificações digitais, reconhecimentos faciais, digitais e oculares e, até mesmo, pelos seus hábitos profissionais, de consumo e de vida captados a partir da reiterada e diária coleta de seus dados pessoais, e na qual se admite a celebração de negócios jurídicos complexos e vultosos até mesmo por redes sociais ou por meros cliques, o papel e a caneta esferográfica perdem diariamente o seu valor e a sua relevância, devendo ser examinados em conjunto com os demais elementos que permitam aferir ser aquela a real vontade do contratante.

7 – A regra segundo a qual a assinatura de próprio punho é requisito de validade do testamento particular, pois, traz consigo a presunção de que aquela é a real vontade do testador, tratando-se, todavia, de uma presunção juris tantum, admitindo-se, ainda que excepcionalmente, a prova de que, se porventura ausente a assinatura nos moldes exigidos pela lei, ainda assim era aquela a real vontade do testador.

8 – Hipótese em que, a despeito da ausência de assinatura de próprio punho do testador e do testamento ter sido lavrado a rogo e apenas com a aposição de sua impressão digital, não havia dúvida acerca da manifestação de última vontade da testadora que, embora sofrendo com limitações físicas, não possuía nenhuma restrição cognitiva.

9 – O provimento do recurso especial por um dos fundamentos torna despiciendo o exame dos demais suscitados pela parte. Precedentes.

10 – Recurso especial conhecido e provido.

ACÓRDÃO – Decisão selecionada e originalmente divulgada pelo INR –

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos Prosseguindo o julgamento, após o voto-vista antecipado do Sr. Ministro Villas Bôas Cueva abrindo a divergência, no que foi acompanhado pelos Srs. Ministros Raul Araújo e Paulo de Tarso Sanseverino, e os votos dos Srs. Ministros Antonio Carlos Ferreira, Marco Buzzi e Marco Aurélio Bellizze acompanhando a Sra. Ministra Relatora,, por maioria, conhecer e dar provimento ao recurso especial, para restabelecer a sentença que confirmou o testamento particular, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Antonio Carlos Ferreira, Marco Buzzi e Marco Aurélio Bellizze votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Vencidos os Srs. Ministros Raul Araújo, Paulo de Tarso Sanseverino e Villas Bôas Cueva.

Não participou do julgamento o Sr. Ministro Luis Felipe Salomão.

Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Moura Ribeiro.

Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti.

Brasília (DF), 11 de março de 2020(Data do Julgamento).

MINISTRA MARIA ISABEL GALLOTTI

Presidente

MINISTRA NANCY ANDRIGHI

Relatora

RELATÓRIO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):

Cuida-se de recurso especial interposto por BEATRIZ AGUIAR BOVENDORP, com base nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, em face de acórdão do TJ/MG que, por unanimidade, deu provimento a apelação interposta por PATRÍCIA BOVENDORP VELOSO.

Recurso especial interposto em: 02/06/2016.

Atribuído ao gabinete em: 11/11/2016.

Ação: de abertura, confirmação, registro e cumprimento de testamento particular de NILZA AGUIAR BOVENDORP, requerida pela recorrente.

Sentença: julgou procedente o pedido (fls. 120/122, e-STJ).

Acórdão: por unanimidade, deu provimento à apelação interposta pela recorrida, nos termos da seguinte ementa:

TESTAMENTO PARTICULAR – PROCEDIMENTO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA – ASSINATURA DO TESTADOR – AUSÊNCIA – CONFIRMAÇÃO – IMPOSSIBILIDADE AUSÊNCIA DE TODOS OS REQUISITOS DE VALIDADE FORMAL.

O procedimento de jurisdição voluntária tem como pressuposto a ausência de situação contenciosa, cabendo ao magistrado examinar, tão-somente, a validade formal do testamento particular, com relação aos demais requisitos, vícios intrínsecos, esses devem ser questionados em ação própria. O testamento particular é aquele escrito pelo testador de próprio punho ou por meio de processo mecânico, onde se retrata a vontade do de cujus com relação a divisão de seus bens, sendo requisitos de sua validade a leitura e assinatura do testador, na presença de pelo menos três testemunhas, que também devem assiná-lo. Não preenchidos os requisitos estabelecidos pelo artigo 1876 do Código Civil, em relação ao testamento particular, não há como confirmar sua validade. (fls. 183/198, e-STJ).

Embargos de declaração: opostos pelo recorrente, foram rejeitados por unanimidade (fls. 210/217, e-STJ).

Recurso especial: alega-se violação ao art. 1.022 do CPC/15, ao fundamento de que haveria omissão relevante no acórdão recorrido, não sanadas a despeito da oposição dos aclaratórios; negativa de vigência ao art. 1.876, §2º, do CC/2002, ao fundamento de que, conquanto ausente a assinatura de próprio punho da testadora, o testamento possui a sua impressão digital, o que seria suficiente para confirmar a manifestação de última vontade da falecida; e dissenso jurisprudencial (fls. 220/236, e-STJ).

Ministério Público Federal: opinou pelo não conhecimento do recurso especial (fls. 343/346, e-STJ), posteriormente ratificado pelo Parquet (fls. 352/355, e-STJ).

Julgamento da 3ª Turma: em sessão de julgamento ocorrida em 08/10/2019, a 3ª Turma, por unanimidade, decidiu pela afetação do presente recurso especial à Segunda Seção, em razão da divergência interna da Turma Julgadora e da ausência de julgados da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça.

É o relatório.

VOTO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):

Os propósitos recursais consistem em definir se: (i) houve omissão relevante no acórdão recorrido; (ii) é válido o testamento particular que, a despeito de não ter sido assinado de próprio punho pela testadora, contou com a sua impressão digital.

1. DA REMESSA DO PRESENTE RECURSO ESPECIAL À SEGUNDA SEÇÃO. QUESTÃO JURÍDICA RELEVANTE. PREVENÇÃO DE DIVERGÊNCIA ENTRE TURMAS. INCIDÊNCIA DA REGRA DO ART. 14, II, DO RISTJ.

De início, faz-se necessário destacar que estão presentes os requisitos autorizadores para a remessa do presente recurso especial à Segunda Seção deste Superior Tribunal de Justiça, conforme se depreende do art. 14, II, do RISTJ:

Art. 14. As Turmas remeterão os feitos de sua competência à Seção de que são integrantes:

II – quando convier pronunciamento da Seção, em razão da relevância da questão, e para prevenir divergência entre as Turmas da mesma Seção;

Em primeiro lugar, registre-se que a questão relativa aos requisitos de validade do testamento particular, em especial a necessidade de assinatura de próprio punho do testador ou a eventual possibilidade de substituição da assinatura pela sua impressão digital, é questão jurídica relevante no âmbito do direito sucessório, a fim de que se possa dar a efetiva e correta destinação aos bens que fora desejada pelo testador em sua manifestação de última vontade, o que, consequentemente, traz significativas repercussões em termos de planejamento sucessório, de inventário e, em última análise, de segurança jurídica.

Embora a hipótese versada neste recurso especial pareça, em princípio, ser rara, verifica-se que essa matéria tem sido trazida com certa frequência ao Superior Tribunal de Justiça e, coincidentemente, somente a 3ª Turma desta Corte tem sido reiteradamente chamada a examinar essa questão.

No primeiro exame da matéria (REsp 1.444.867/DF, 3ª Turma, DJe 31/10/2014), formou-se maioria, capitaneada em voto do e. Relator Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, no sentido de que não seria possível o reconhecimento da validade de testamento sem assinatura de próprio punho do testador. Naquela assentada, votaram com S. Exa. o Min. Moura Ribeiro e o Min. Paulo de Tarso Sanseverino, vencidos os e. Min. Marco Aurélio Bellizze e João Otávio de Noronha, que admitiam a validade do testamento nessa hipótese.

Por ocasião do segundo exame desta questão (REsp 1.618.754/MG, 3ª Turma, DJe 13/10/2017), novamente se formou maioria capitaneada pelo voto divergente do Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, no sentido de que não seria possível o reconhecimento da validade de testamento sem assinatura de próprio punho do testador. Nessa assentada, votaram com S. Exa. o Min. Moura Ribeiro e o Min. Paulo de Tarso Sanseverino, ficando vencida esta Relatora (porque admitia a validade do testamento nessa hipótese) e estando ausente, naquela ocasião, o e. Min. Marco Aurélio Bellizze.

Ressalvadas as eventuais modificações de posicionamento dos e. Ministros, parece correto afirmar que hoje, na 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em princípio há 02 votos no sentido de admitir como válido o testamento particular sem assinatura de próprio punho do testador (desta Relatora e do e. Min. Marco Aurélio Bellizze) e 03 votos em sentido diametralmente oposto (dos e. Ministros Moura Ribeiro, Ricardo Villas Bôas Cueva e Paulo de Tarso Sanseverino).

Paralelamente a isso, não existem, salvo melhor juízo, precedentes sobre essa temática na 4ª Turma, tendo sido, inclusive, negado seguimento aos embargos de divergência interpostos após o julgamento do REsp 1.618.754/MG por ausência de semelhança fática com paradigmas da 4ª Turma.

Desse modo, é correto afirmar que a jurisprudência desta Corte ainda não está consolidada sobre a questão, razão pela qual é mais apropriado, sobretudo diante das inúmeras repercussões econômicas e jurídicas decorrentes do reconhecimento da validade, ou não, do testamento, que haja pronunciamento preventivo e uniformizador da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, motivo pelo qual se propõe a afetação do presente recurso especial nos termos do art. 14, II, do RISTJ.

2. EXISTÊNCIA DE OMISSÃO E OBSCURIDADE. ALEGADA VIOLAÇÃO AO ART. 1.022, I E II, DO CPC/15. INOCORRÊNCIA.

De início, anote-se que o recorrente alegou inicialmente a ocorrência de violação ao art. 1.022, I e II, do CPC/15, ao fundamento de que o acórdão recorrido teria sido omisso e obscuro, na medida em que não se teria investigado com maior profundidade a real vontade da testadora.

Ocorre que, conquanto de modo sucinto, verifica-se que o TJ/MG efetivamente enfrentou o tema, firmando a sua convicção no sentido de que a formalidade de assinatura de próprio punho seria essencial à validade do testamento, de modo que a sua ausência, por si só, seria suficiente para colocar em dúvida a real vontade da testadora.

Diante desse cenário, é preciso reconhecer que os elementos de fato e de direito constantes do acórdão recorrido são suficientes para que se proceda ao imediato julgamento da questão de direito vertida no recurso especial.

3. OBRIGATORIEDADE DA ASSINATURA DE PRÓPRIO PUNHO COMO REQUISITO DE VALIDADE DO TESTAMENTO. ALEGADA VIOLAÇÃO AO ART. 1.876, §2º, DO CC/2002.

Para melhor contextualizar a controvérsia, ressalte-se que foi pleiteado pela recorrente a confirmação do testamento particular de NILZA AGUIAR BOVENDORP, lavrado em 05/04/2013 e do qual a recorrente é beneficiária. A testadora faleceu em 04/02/2014.

Processado o pedido, sobreveio sentença de confirmação do testamento (fls. 120/122, e-STJ), que, em sintonia com o parecer do Ministério Público (fls. 115/118, e-STJ), consignou inexistir vício formal grave e que a validade se confirma pelo depoimento das testemunhas do testamento, inclusive no que se refere à lucidez da testadora.

A despeito da existência de diversos interessados, apenas a recorrida PATRÍCIA interpôs recurso de apelação (fls. 143/150, e-STJ), em que sustenta, essencialmente, que teria havido avanço sobre a legítima de herdeiros necessários e que o vício de forma – ausência de assinatura de próprio punho da testadora – comprometeria a higidez da manifestação de vontade supostamente externada pela testadora.

Do acórdão recorrido, que deu provimento à apelação interposta por PATRÍCIA para não confirmar o testamento deixado por NILZA em favor de BEATRIZ, colhe-se a seguinte razão de decidir:

Da análise do Testamento Particular de fls. 14, elaborado por meio mecânico, verifica-se que o requisito referente às 03 (três) testemunhas foi preenchido, tendo essas, também, em seus depoimentos, colhidos em juízo, confirmado a leitura do referido documento perante elas mesmas.

Todavia, o Testamento em análise não preenche todos os requisitos de validade de que fala o artigo supracitado artigo 1876 do Código Civil, uma vez que não foi assinado pela testadora, que se encontrava hospitalizada, à época, contendo no documento, tão somente, sua digital, rubricada por uma das testemunhas, conforme alegado.

Dessa forma, considerando que a assinatura de próprio punho do testador é requisito de validade, e, ainda, levando-se em conta que tal requisito não foi devidamente preenchido, não há como confirmar o Testamento objeto desta demanda.

Da leitura do acórdão recorrido, percebe-se que o fundamento determinante para a não confirmação do testamento foi exclusivamente a ausência de assinatura de próprio punho pelo testador e a substituição pela impressão digital, sendo que a tese vertida no recurso especial é de que, quando inexistir dúvida sobre a vontade do testador, essa formalidade pode ser dispensada.

Para o adequado exame da controvérsia, confira-se o que dispõe o art. 1.876, caput e §2º, do CC/2002:

Art. 1.876. O testamento particular pode ser escrito de próprio punho ou mediante processo mecânico.

(…)

§2o Se elaborado por processo mecânico, não pode conter rasuras ou espaços em branco, devendo ser assinado pelo testador, depois de o ter lido na presença de pelo menos três testemunhas, que o subscreverão.

Em se tratando de sucessão testamentária, é preciso ter em mente que o objetivo a ser alcançado deve ser, sempre, a preservação das hígidas manifestações de última vontade do falecido. Não deve o Poder Judiciário se imiscuir nas disposições testamentárias do de cujus, senão naquilo que for estritamente necessário para que se confirme, estreme de dúvidas, que a disposição dos bens retratada no documento é aquela efetivamente desejada pelo testador.

Significa dizer, pois, que as detalhadas formalidades previstas na legislação civil devem ser interpretadas à luz dessa diretriz máxima e desse princípio informador e norteador dessa modalidade de sucessão. Logo, não se pode, somente pela forma, prejudicar o conteúdo do ato de disposição quando inexistir dúvida acerca da própria manifestação de vontade do declarante.

Registre-se que o cumprimento da disposição do testador também se revela importante porque tem o condão de apaziguar, intimamente, aquele que produz esse documento, pela certeza de que seus desígnios futuros serão atendidos após seu óbito.

Em última análise, é sempre necessário lembrar o que consta em vetusto acórdão desta Corte: “Não se deve alimentar a superstição do formalismo obsoleto, que prejudica mais do que ajuda. Embora as formas testamentárias operem como jus cogens, entretanto a lei da forma está sujeita a interpretação e construção apropriadas às circunstâncias”. (REsp 1.422/RS, 3ª Turma, DJ 04/03/1991).

Daí porque igualmente já se consignou que “em matéria testamentária, a interpretação deve ter por fim o intuito de fazer prevalecer a vontade do testador, a qual deverá orientar, inclusive, o magistrado quanto à aplicação do sistema de nulidades, que apenas não poderá ser mitigado diante da existência de fato concreto, passível de colocar em dúvida a própria faculdade que tem o testador de livremente dispor de seus bens…” (AgRg no Ag 570.748/SC, 3ª Turma, DJ 04/06/2007).

A razão de ser desses entendimentos está na necessidade de se conter o Estado e a própria Jurisdição, para que esses, em nome da inexistência no cumprimento de uma formalidade, muitas vezes passível de ser colmatada diante da univocidade do ato, acabem por desrespeitar a vontade higidamente manifestada.

É evidente que esse também é o objetivo perseguido pelo legislador quanto cria regramentos cogentes para a validação do negócio jurídico que regula, na medida em que se pretende assegurar que será a vontade do testador, e não uma outra qualquer, a que será posteriormente cumprida.

Isso não significa dizer, contudo, que a tessitura normativa deva, sempre e indistintamente, ser literal ou rigidamente interpretada, porque a mesma regra que visa tutelar a real vontade do testador é aquela que, se porventura for aplicada de modo dissociado do fim almejado em razão do excessivo apego à forma, produzirá o efeito oposto, ou seja, a frustação da vontade do testador.

Nesse contexto, é interessante observar que o próprio legislador que estabelece previamente determinadas formalidades para que se considere válido o testamento também confere ao Poder Judiciário a possibilidade de controlar a validade da disposição de última vontade quando algumas dessas formalidades não estiverem presentes, como se depreende, por exemplo, dos arts. 1.878, caput e parágrafo único, e 1.879, ambos do CC/2002:

Art. 1.878. Se as testemunhas forem contestes sobre o fato da disposição, ou, ao menos, sobre a sua leitura perante elas, e se reconhecerem as próprias assinaturas, assim como a do testador, o testamento será confirmado.

Parágrafo único. Se faltarem testemunhas, por morte ou ausência, e se pelo menos uma delas o reconhecer, o testamento poderá ser confirmado, se, a critério do juiz, houver prova suficiente de sua veracidade.

Art. 1.879. Em circunstâncias excepcionais declaradas na cédula, o testamento particular de próprio punho e assinado pelo testador, sem testemunhas, poderá ser confirmado, a critério do juiz.

É certo que a jurisprudência desta Corte tem confirmado testamentos particulares escrito por processo mecânico que eventualmente contenham algum vício de natureza formal, como, por exemplo, quando a declaração de vontade foi manifestada na presença de 2 e não 3 testemunhas (REsp 1.583.314/MG, 3ª Turma, DJe 23/08/2018) ou na hipótese em que o documento foi firmado por quantidade menor de testemunhas do que aquela exigida pela lei (REsp 701.917/SP, 4ª Turma, DJe 01/03/2010).

Diante desse cenário, a questão que se coloca é: Ainda seria razoável manter a distinção entre vícios formais relativizáveis e vícios formais não relativizáveis como critério definitivo para confirmar um testamento? Ou, ao revés, a doutrina e a jurisprudência deveriam evoluir no sentido de que o critério mais apropriado para a confirmação do testamento é a existência, ou não, de dúvida quanto a vontade do testador?

Quanto ao ponto, cite-se inicialmente excerto do voto vencido do Min. Marco Aurélio Bellizze por ocasião do julgamento do REsp 1.444.867/DF. Disse S. Exa. naquela oportunidade:

Como se pode observar, a inquietação acerca da invalidação do testamento particular por desatendimento a requisitos de forma previstos no art. 1645 do CC/1916 sempre pairou nos julgados desta Corte Superior. Entretanto, nunca houve julgado específico relativamente à falta da assinatura do testador.

Estamos, portanto, diante de um leading case.

Concessa maxima venia, não vejo motivo suficiente para que se deva emprestar interpretação diferente com relação à falta de assinatura e, por conseguinte, não se lhe aplicar a jurisprudência consolidada desta Corte no sentido de atenuar requisitos legais ditos essenciais em prol da efetivação das disposições de última vontade do testador. Explico.

Em primeiro lugar, valho-me da doutrina de Pontes de Miranda acerca do trato de questões relativas às alegações de nulidades dos testamentos por defeito de forma:

A nulidade dos testamentos – facilitada, em vez de restringida – importaria em desrespeito ao art. 1.666. Se, para as disposições particulares, há de o juiz preferir a interpretação que dê eficácia à declaração do testador, como tornar rigoroso o formalismo da lei, que invalidaria, não uma ou duas disposições, porém todo o testamento? Daí a conclusão de Danz: deverá ter-se por válido o testamento, ainda quando apresente defeitos de forma, sempre que se comprove que, no documento, se contém a última vontade do declarante. Melhor disse Düringer: quando for duvidoso se se observou ou não um preceito de forma, dever-se-á impor a solução da efetividade do testamento, sempre que exista certeza quanto a este. A nulidade dos atos jurídicos de intercâmbio ou inter vivos é, praticamente, reparável: fazem-se outros, com as formalidades legais, ou se intentam ações que compensem o prejuízo, como a de in rem verso. Não se dá o mesmo com as declarações de última vontade: nulas, por defeito de forma, ou por outro motivo, não podem ser renovadas – morreu quem as fez. Razão maior para se evitar, no zelo do respeito à forma o sacrifício do fundo. (Op. cit., vol. 1, pp. 240/241). Grifos meus.

Comungo desse entendimento. Assim, qualquer nulidade decorrente da não observância da forma, sem distinção, deve ceder quando se puder reconhecer, como no caso, a originalidade das disposições de última vontade do testador.

A segunda razão é topológica: se todos requisitos de validade do testamento particular estão escritos em três incisos de um mesmo dispositivo legal (e por isso, sob a mesma hierarquia e exigibilidade normativa), seria possível, pela via interpretativa, abrandar o rigor da formalidade para alguns desses incisos e para outro não?

No caso específico do art. 1.645 do CC/1916, a questão que se coloca é a seguinte: é possível relativizar, num mesmo artigo de lei, a essencialidade da forma do ato para dois incisos inteiros e a metade de outro (os incs. II e III e a primeira parte do inc. I), mas não poder fazê-lo em relação a meio inciso (a última parte do inc. I), exigindo, para esse último apenas, o rigor da forma pela forma? Penso que não.

A razão de ser da norma (assegurar a autenticidade e legitimidade do testamento) aliada aos pressupostos fáticos dos precedentes, também verificados no caso concreto, privilegiam o fundo em detrimento da forma, ou seja, a efetivação das disposições de última vontade do testador em prejuízo das exigências formais do ato.

Desse modo, não vejo razão para aplicar discrímen interpretativo para incisos integrantes do mesmo dispositivo legal (com mesma hierarquia e exigibilidade normativa). Aqui, penso eu, tem aplicação princípio clássico de hermenêutica jurídica, segundo o qual onde a lei não faz distinção não deve o intérprete fazê-lo.

Toma-se a liberdade de acrescentar ao judicioso voto de S. Exa., ainda, que a interpretação do texto legal deve levar em consideração o contexto social e cultural vigente ao tempo de sua aplicação.

Não se pode, a pretexto da interpretação literal, deixar de considerar outras técnicas hermenêuticas, em especial para a hipótese, a histórica-evolutiva, a fim de que a norma jurídica – que difere do texto legal – efetivamente se amolde à realidade vivenciada pelos seus destinatários.

A atual sociedade brasileira e mundial é indiscutivelmente menos formalista que àquela existente ao tempo da confecção do Código de Civil que, a despeito de ter entrado em vigor no ano de 2003, originou-se do Projeto de Lei nº 634 de 1975, pensado e gestado, pois, por juristas e especialistas que certamente haviam nascido na década de 40.

As pessoas do mundo moderno não mais se individualizam e se identificam apenas por sua assinatura de próprio punho, mas, sim, pelos seus tokens, chaves, logins e senhas, ID’s, certificações digitais, reconhecimentos faciais, digitais e oculares e, até mesmo, pelos seus hábitos profissionais, de consumo e de vida captados a partir da reiterada e diária coleta de seus dados pessoais.

As decisões judiciais dispensam a assinatura de próprio punho e negócios jurídicos de relevância são celebrados apenas por WhatsApp, Facebook, Instagram, chats, cliques e infinitos “de acordo” em contratos de que não se tem ciência de absolutamente nada.

É no mínimo paradoxal, pois, que ainda se exija, em alguns outros poucos negócios jurídicos, o papel e a caneta esferográfica sem que haja justificativa teórica, prática e jurídica plausível, simplesmente porque sim, porque é a praxe e a tradição. Admite-se a transferência de valores milionários por intermédio de um clique, mas não se admite a disposição de última vontade de um bem somente pela ausência de uma formalidade, a despeito de inexistir dúvida sobre a vontade da testadora.

Nesse contexto, não é minimamente razoável supor ou impor que um millenial ou um pós-millenial que pretenda dispor de modo testamentário de sua herança digital somente o possa fazer se imprimir um documento e assiná-lo de próprio punho.

Essas gerações possivelmente não têm sequer uma impressora (como já não possuem há anos desktops, notebooks e e-mails) e, até mesmo, talvez não tenham sequer a destreza necessária para reproduzir, identicamente e em série, uma assinatura de próprio punho, habilidade de que não necessitam para viver adequadamente na sociedade atual.

É preciso, pois, repensar o direito civil codificado à luz da nossa atual realidade social, sob pena de se conferir soluções jurídicas inexequíveis, inviáveis ou simples ultrapassadas aos problemas trazidos pela sociedade contemporânea.

O direito positivo engessado e que continua arraigado apenas em suas próprias bases históricas e literais não é direito real. E “quando o Direito ignora a realidade”, disse Georges Ripert, reitor da Faculdade de Direito de Paris, “a realidade se vinga ignorando o Direito”. E a realidade, hoje, é verdadeiramente inescondível.

Na hipótese em exame, conquanto tenha havido, inicialmente, impugnações de todos os interessados e potenciais beneficiários da herança de NILZA, fato é que, após a sentença que confirmou o testamento, apenas a recorrida PATRÍCIA interpôs apelação e, ainda assim, fundada essencialmente em hipotético avanço sobre a legítima de herdeiros necessários e no vício de forma – ausência de assinatura de próprio punho da testadora.

A fundamentação adotada pelo acórdão recorrido para não confirmar o testamento, a propósito, está assentada exclusivamente no referido vício formal.

Não controvertem as partes, ademais, quanto ao fato de que a testadora, ao tempo da lavratura do testamento, que se deu 10 meses antes de seu falecimento, possuía esclerose múltipla geradora de limitações físicas, sem prejuízo da sua capacidade cognitiva e de sua lucidez.

O testamento de NILZA foi assinado a rogo e contou com a aposição de sua impressão digital, sendo que as testemunhas, sobre as quais não recai absolutamente nenhuma suspeita ou questionamento, confirmaram, inclusive quando ouvidas em juízo, o cumprimento das demais formalidades e, sobretudo, que aquela era mesmo a manifestação de última vontade de NILZA.

A regra segundo a qual a assinatura de próprio punho é requisito de validade do testamento particular traz consigo a presunção de que aquela é a real vontade do testador, tratando-se, todavia, de uma presunção juris tantum, admitindo-se a prova de que, se porventura ausente a assinatura nos moldes exigidos pela lei, ainda assim era aquela a real vontade do testador.

Diante desse cenário, nada impede a confirmação do testamento particular escrito por meio mecânico de NILZA AGUIAR BOVENDORP como concretização de sua vontade, razão pela qual se conclui que o acórdão recorrido violou o art. 1.876, §2º, do CC/2002.

4. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL.

Finalmente, na esteira da jurisprudência desta Corte, o provimento do recurso especial por um dos fundamentos torna despiciendo o exame dos demais suscitados pelo recorrente (na hipótese, divergência jurisprudencial). Nesse sentido: AgInt no REsp 1.528.765/RS, 2ª Turma, DJe 17/06/2019 e REsp 1.738.756/MG, 3ª Turma, DJe 22/02/2019.

5. CONCLUSÃO.

Forte nessas razões, CONHEÇO e DOU PROVIMENTO ao recurso especial para restabelecer a sentença que confirmou o testamento particular, invertendo-se, em razão disso, a sucumbência, relegando-se o debate acerca do hipotético avanço sobre a legítima dos herdeiros necessários para as vias processuais próprias.

VOTO-VISTA

VENCIDO

O EXMO. SR. MINISTRO RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA: Pedi vista dos autos para melhor exame da controvérsia em debate.

Trata-se de recurso especial interposto por BEATRIZ AGUIAR BOVENDORP, com fundamento no artigo 105, inciso III, alíneas “a” e “c”, da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais.

Noticiam os autos que a ora recorrente formulou pedido de “abertura de testamento particular” deixado por NILZA AGUIAR BOVENDORP amparado nos artigos 1.126, 1.130, 1.131 e 1.133 do Código de Processo Civil de 1973 e 1.876 e seguintes do Código Civil (e-STJ fls. 1-6).

O juízo de primeiro grau determinou o registro, arquivamento e cumprimento do testamento ao fundamento de que “não se constatou vícios graves que tornem o presente testamento suspeito de nulidade ou de falsidade” (e-STJ fl. 122).

Irresignada, PATRÍCIA BOVENDORP VELOSO interpôs recurso de apelação (e-STJ fls. 143-150).

O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais conferiu provimento ao apelo em aresto assim ementado:

TESTAMENTO PARTICULAR – PROCEDIMENTO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA – ASSINATURA DO TESTADOR – AUSÊNCIA – CONFIRMAÇÃO – IMPOSSIBILIDADE AUSÊNCIA DE TODOS OS REQUISITOS DE VALIDADE FORMAL. O procedimento de jurisdição voluntária tem como pressuposto a ausência de situação contenciosa, cabendo ao magistrado examinar, tão-somente, a validade formal do testamento particular, com relação aos demais requisitos, vícios intrínsecos, esses devem ser questionados em ação própria. O testamento particular é aquele escrito pelo testador de próprio punho ou por meio de processo mecânico, onde se retrata a vontade do de cujus com relação à divisão de seus bens, sendo requisitos de sua validade a leitura e assinatura do testador, na presença de pelo menos três testemunhas, que também devem assiná-lo. Não preenchidos os requisitos estabelecidos pelo artigo 1.876 do Código Civil, em relação ao testamento particular, não há como confirmar sua validade” (e-STJ fl. 193).

Nas razões do especial (e-STJ fls. 220-236), a recorrente, com fulcro nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, aponta, além de negativa de prestação jurisdicional (artigo 1.022 do Código de Processo Civil de 2015), violação dos artigos 1.133 do Código de Processo Civil de 1973 e 1.876 a 1.880 do Código Civil.

Com as contrarrazões (e-STJ fls. 294-303), e admitido o recurso na origem (e-STJ fls. 305-306), subiram os autos a esta Colenda Corte.

O Ministério Público Federal opinou pelo não conhecimento do recurso especial (e-STJ fls. 343-346 e 352-355).

Na sessão de julgamento do dia 8/10/2019, a Terceira Turma afetou o julgamento à Segunda Seção.

Levado o feito a julgamento na Segunda Seção em 11/12/2019, após a prolação do voto da Relatora, Ministra Nancy Andrighi, conferindo provimento ao recurso especial, pedi vista antecipada dos autos e ora apresento meu voto.

É o relatório.

Cinge-se a controvérsia a determinar se pode subsistir o testamento particular formalizado sem um dos requisitos exigidos pela legislação de regência, no caso, a assinatura do próprio testador.

A teor do artigo 1.876 do Código Civil,

(…)

(…) O testamento particular pode ser escrito de próprio punho ou mediante processo mecânico.

(…)

§ 2º Se elaborado por processo mecânico, não pode conter rasuras ou espaços em branco, devendo ser assinado pelo testador, depois de o ter lido na presença de pelo menos três testemunhas, que o subscreverão” (grifou-se).

No caso dos autos, o documento de fls. 14-15 (e-STJ), elaborado por processo mecânico, intitulado “Testamento Particular”, não está assinado pela própria testadora – Nilza Aguiar Bovendorp -, conforme exige a legislação de regência.

No lugar onde deveria estar a sua assinatura está aposta sua impressão digital.

No mencionado documento consta, ainda, ao lado da digital da testadora, a rubrica de uma das testemunhas.

A assinatura no testamento particular pelo próprio testador não é mera formalidade do ato, de modo que sua presença não pode ser relativizada.

Especificamente acerca da assinatura do testador, Pontes de Miranda, ao discorrer quanto à função do formalismo testamentário, assevera que a falta de assinatura do testador pode ensejar a nulidade do ato ou até mesmo a sua inexistência: “(…) c) No testamento particular, se o não escreveu o testador, ou se o escreveu e não o assinou (nulidade); se o testador não o escreveu, nem o assinou (inexistência).” (PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. Direito das Sucessões. Tomo LVIII. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, pág. 337 – grifou-se)

A inafastabilidade de tal exigência se faz ainda mais evidente se considerada a inovação trazida pelos artigos 1.878 e 1.879 do atual Código Civil, que passaram a admitir a possibilidade excepcional de confirmação do testamento particular assinado pelo testador em hipóteses em que ausentes as testemunhas.

Eis a redação dos referidos dispositivos legais:

Art. 1.878. Se as testemunhas forem contestes sobre o fato da disposição, ou, ao menos, sobre a sua leitura perante elas, e se reconhecerem as próprias assinaturas, assim como a do testador, o testamento será confirmado. Parágrafo único. Se faltarem testemunhas, por morte ou ausência, e se pelo menos uma delas o reconhecer, o testamento poderá ser confirmado, se, a critério do juiz, houver prova suficiente de sua veracidade” (grifou-se).

Art. 1.879. Em circunstâncias excepcionais declaradas na cédula, o testamento particular de próprio punho e assinado pelo testador, sem testemunhas, poderá ser confirmado, a critério do juiz” (grifou-se).

Da leitura atenta dos referidos artigos, percebe-se com clareza a exigência, em qualquer caso, da presença da assinatura do próprio testador.

Daí porque também não se amolda ao caso em análise a jurisprudência desta Corte consolidada no sentido de que, em que pese a solenidade que envolve a realização do testamento particular, seria possível abrandar o rigorismo formal no tocante a imprecisões do ato relativas às testemunhas (tais como o número de testemunhas e a leitura do testamento para elas), sempre que, redigido e assinado o ato pelo testador, fosse possível extrair dos demais elementos probatórios acostados aos autos a certeza de que era sua a vontade ali retratada.

A propósito:

RECURSO ESPECIAL. TESTAMENTO PARTICULAR. VALIDADE. ABRANDAMENTO DO RIGOR FORMAL. RECONHECIMENTO PELAS INSTÂNCIAS DE ORIGEM DA MANIFESTAÇÃO LIVRE DE VONTADE DO TESTADOR E DE SUA CAPACIDADE MENTAL. REAPRECIAÇÃO PROBATÓRIA. INADMISSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ.

I – A reapreciação das provas que nortearam o acórdão hostilizado é vedada nesta Corte, à luz do enunciado 7 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça.

II – Não há falar em nulidade do ato de disposição de última vontade (testamento particular), apontando-se preterição de formalidade essencial (leitura do testamento perante as três testemunhas), quando as provas dos autos confirmam, de forma inequívoca, que o documento foi firmado pelo próprio testador, por livre e espontânea vontade, e por três testemunhas idôneas, não pairando qualquer dúvida quanto à capacidade mental do de cujus, no momento do ato. O rigor formal deve ceder ante a necessidade de se atender à finalidade do ato, regularmente praticado pelo testador.

Recurso especial não conhecido, com ressalva quanto à terminologia“.

(REsp 828.616/MG, Rel. Ministro CASTRO FILHO, TERCEIRA TURMA, julgado em 05/09/2006, DJ 23/10/2006 – grifou-se)

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. TESTAMENTO PARTICULAR. ASSINADO POR QUATRO TESTEMUNHAS E CONFIRMADO EM AUDIÊNCIA POR TRÊS DELAS. VALIDADE DO ATO. INTERPRETAÇÃO CONSENTÂNEA COM A DOUTRINA E COM O NOVO CÓDIGO CIVIL, ARTIGO 1.876, §§ 1º e 2º. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO.

1. Testamento particular. Artigo 1.645, II do CPC. Interpretação: Ainda que seja imprescindível o cumprimento das formalidades legais a fim de preservar a segurança, a veracidade e legitimidade do ato praticado, deve se interpretar o texto legal com vistas à finalidade por ele colimada. Na hipótese vertente, o testamento particular foi digitado e assinado por quatro testemunhas, das quais três o confirmaram em audiência de instrução e julgamento. Não há, pois, motivo para tê-lo por inválido.

2. Interpretação consentânea com a doutrina e com o novo código civil, artigo 1.876, §§ 1º e 2º. A leitura dos preceitos insertos nos artigos 1.133 do CPC e 1.648 CC/1916 deve conduzir à uma exegese mais flexível do artigo 1.645 do CC/1916, confirmada inclusive, pelo Novo Código Civil cujo artigo 1.876, §§ 1º e 2º, dispõe: ‘o testamento, ato de disposição de última vontade, não pode ser invalidado sob alegativa de preterição de formalidade essencial, pois não pairam dúvidas que o documento foi firmado pela testadora de forma consciente e no uso pleno de sua capacidade mental’. Precedentes deste STJ.

3. Recurso especial conhecido e provido“.

(REsp 701.917/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 02/02/2010, DJe 1º/03/2010 – grifou-se)

Como se vê, os supracitados precedentes não apresentam base fática idêntica àquela retratada nos presentes autos.

Nos casos anteriormente analisados por esta Corte – acima reproduzidos -, foram abrandadas as formalidades relativas às testemunhas do ato (leitura do testamento para as testemunhas e testemunhas em número inferior ao exigido por lei).

Em tais hipóteses, entendeu-se possível o abrandamento do rigorismo formal para a realização do testamento que, de forma inconteste, considerou-se firmado pelo próprio testador.

Logo, ainda que se admita, em casos excepcionalíssimos, a relativização das exigências legais no tocante às testemunhas, é imperativo, para que se reconheça a validade do testamento particular, que tenha ele sido assinado pelo testador.

No caso em apreço, a falta de assinatura da testadora, que, segundo consta dos autos, estava impossibilitada de assinar, pois se encontrava hospitalizada (e-STJ fl. 196), impede que se tenha certeza acerca da higidez da própria manifestação de vontade ali expressa.

Nesse contexto, sem a assinatura da testadora não é possível concluir, de modo seguro, que o testamento, que nem sequer foi escrito de próprio punho, exprime a sua real vontade.

Não se trata de mero apego a formalismos, mas de obediência a requisitos legais pensados justamente para transmitir segurança jurídica aos envolvidos quando aquele cuja vontade se almeja proteger já não pode mais expressá-la.

O processo em curso também não cuida, por mais envolvente que seja a matéria, de novas formas de expressão e manifestação da vontade pelas gerações millenial ou pós-millenial em virtude de evoluções tecnológicas.

Seguramente não é o caso dos autos, em que a testadora, nascida em 25/4/1934, faleceu em 4/2/2014, com 79 (setenta e nove) anos de idade, aproximadamente 10 (dez) meses após a confecção do suposto instrumento em debate.

Essa foi inclusive a acertada conclusão do acórdão recorrido (e-STJ fls. 193-198) e dos dignos representantes do Ministério Público em seus dois pareceres exarados nesta Corte Superior (e-STJ fls. 343-346 e 352-355).

Acrescente-se que, para o testamento público, que tem suas prescrições dispostas na Seção II (artigos 1.864 a 1.867), o legislador previu a possibilidade de assinatura a rogo, para as hipóteses em que o testador não souber ou não puder assinar, sempre condicionada à declaração expressa dessa condição no instrumento feita pelo tabelião ou seu substituto legal.

É o que dispõe o artigo 1.865 do Código Civil:

Art. 1.865. Se o testador não souber, ou não puder assinar, o tabelião ou seu substituto legal assim o declarará, assinando, neste caso, pelo testador, e, a seu rogo, uma das testemunhas instrumentárias.” (grifou-se)

Não há prescrição semelhante na Seção IV (artigos 1.876 a 1.880), destinada às regras do testamento particular, o que reforça a exigência legal de que, para a confecção dessa modalidade de testamento, o testador saiba e possa assinar, de modo a garantir a legitimidade da disposição de última vontade, não se admitindo a assinatura a rogo ou por meio de impressão digital.

Essa é a voz uníssona da doutrina especializada:

(…)

13 – Para que teste sob a forma hológrafa, tem o disponente de saber e poder assinar. Não se admite, na espécie, a assinatura a rogo do testador. E, se o testador prefere escrever o testamento do próprio punho, tem de fazê-lo pessoalmente, não se permitindo a escrita a rogo“. (VELOSO, Zeno. Comentários ao Código Civil: parte especial, direito das sucessões. v. 21. São Paulo: Saraiva, 2003, pág. 132 – grifou-se)

(…)

104. Requisitos Essenciais de Validade. São requisitos essenciais de validade:

a) a autografia da cédula;

b) sua leitura às testemunhas;

c) as assinaturas do testador e das testemunhas.

Significa a primeira exigência que a cédula tem de ser totalmente escrita do próprio punho do testador (RA) ou por processo mecânico (RA) e por ele assinada.

(RA) No primeiro caso, deve ser lido e assinado pelo testador e pelas testemunhas. Feito através de processo mecânico, não poderá conter rasuras ou espaços em branco, devendo, também, ser assinado pelo testador e pelas testemunhas, após a leitura na presença das mesmas (RA).

Desta exigência resulta que não podem fazer testamento particular o cego, o analfabeto e as pessoas incapacitadas eventualmente de escrever, ainda quando sobrevenha a incapacidade depois de haver o testador começado a redigi-lo“. (GOMES, Orlando. Sucessões. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, pág. 134 – grifou-se)

(…)

A atual lei estatui que o testamento pode ser escrito de próprio punho ou mediante processo mecânico. Não é admitida a assinatura a rogo. Vem aqui novamente à baila a possibilidade da utilização de meios eletrônicos para sua redação. Não havia disposição pertinente no Código de 1916. A jurisprudência, com divergência, admitiu o uso da datilografia no testamento particular (RT 264/236, STF, RTJ 92/1.234, 64/339, 69/559; contra 447/213, com voto vencido), ao contrário do Código de 2002, que segue o mesmo princípio do Código italiano e do Código suíço, exigindo agora que o testamento particular seja feito de próprio punho ou por meio mecânico; o direito de 1916 exigia apenas que fosse escrito e assinado pelo testador. Podíamos entender que, provado que fosse o próprio testador quem datilografara ou digitara o documento, o requisito estaria preenchido. (…)“. (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: sucessões. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2017, pág. 253 – grifou-se)

(…)

Requisitos essenciais do testamento particular. Exigem-se para a feitura do testamento particular: a) redação e assinatura de próprio punho do testador, não se admitindo assinatura a rogo (RT. 327:137, 264:236, 210:194, 447:213, 540:891, 327:240, 300:230 e 311:288; BAASP, 1.955:47; RTJ, 92:1.234, 64:339 e 69:559; RF, 247:210; AJ, 112:319). Pode ser datilografado ou escrito mediante processo mecânico, caso em que não poderá conter rasuras ou espaços em branco; b) intervenção de três testemunhas, além do testador, que deverão presenciar o ato (RTJ, 33:560; EJSTJ, 4:73; RTJSP, 134:343; RT, 709:197, 673:167); c) leitura do testamento pelo testador perante as testemunhas, que logo em seguida o assinarão (AJ, 103:48; RT, 673:167). O Projeto de Lei n. 204/2011 visa criar requisitos para validade de testamento particular, impondo registro de títulos e documentos no prazo de 20 dias contado de sua elaboração“. (DINIZ, Maria Helena. Código civil anotado. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, pág. 1.431 – grifou-se)

(…)

Quando elaborado por processo mecânico, não pode conter rasuras ou espaços em branco, devendo ser assinado pelo testador, depois de o ter lido na presença de pelo menos três testemunhas que o subscreverão (§ 2º, do art. 1.876).

Esse tipo de testamento também não admite assinatura a rogo, nem uso de Alfabeto Morse ou de qualquer outra escrita convencional“. (AMORIM, Sebastião Luiz. Código civil comentado: direito das sucessões, sucessão testamentária. São Paulo: Atlas, 2004, pág. 96 – grifou-se)

Por fim, registra-se que, nos termos dos artigos 541, parágrafo único, do Código de Processo Civil de 1973 e 255, §§ 1º e 2º, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, inviável o conhecimento do recurso especial pela alínea “c” do permissivo constitucional quando não demonstrada, como no caso vertente, a similitude fática entre as hipóteses confrontadas, inviabilizando a análise da divergência de interpretação da lei federal invocada.

Nesse sentido:

RECURSO ESPECIAL – CUMPRIMENTO DE SENTENÇA – VALOR PATRIMONIAL DA AÇÃO – DECISÃO ACOBERTADA PELO MANTO DA COISA JULGADA MATERIAL – DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO CONFIGURADA.

I. A superveniente mudança de posicionamento desta Corte no tocante ao valor patrimonial da ação não tem o condão de alterar o parâmetro definido no processo de conhecimento, sob pena de afronta ao instituto da coisa julgada material.

II. Não houve a comprovação da divergência, conforme as exigências contidas nos arts. 541, parágrafo único, do CPC e 255 do RISTJ, em razão da ausência de similitude fática com os paradigmas confrontados.

Recurso Especial improvido“.

(REsp 1.131.621/RS, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 14/12/2010, DJe 10/02/2011).

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. DISSÍDIO PRETORIANO. AUSÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICA. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

1. A dessemelhança fática entre o paradigma citado e o acórdão recorrido impede a configuração da divergência jurisprudencial, em virtude da ausência de tese divergente tratada por outro Tribunal a respeito do assunto discutido no recurso especial.

2. Agravo regimental a que se nega provimento.

(AgRg no REsp 1.100.486/RS, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 03/05/2011, DJe 06/06/2011).

Ante o exposto, com a devida vênia, nego provimento ao recurso especial.

É o voto. – – /

Dados do processo:

STJ – REsp nº 1.633.254 – Minas Gerais – 2ª Seção – Rel. Min. Nancy Andrighi – DJ 18.03.2020

Fonte: INR Publicações

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Inventário – Decisão que deixa de determinar a colação de metade do único imóvel doado pelo “de cujus” a uma de suas filhas – Desacerto – Possível colacionar metade do imóvel doado pelo autor da herança a uma de suas filhas, independentemente do ajuizamento de ação autônoma para reconhecer que se tratou de doação inoficiosa – Doação abrangeu todo o patrimônio do casal, que se resumia a um único bem imóvel – Inoficiosa a doação feita pelo “de cujus” e seu cônjuge supérstite – Não se cogita de doação universal, uma vez que os doadores reservaram para si o usufruto vitalício do prédio – Não é necessário que a nulidade da doação seja declarada em ação autônoma, pois a donatária (ora agravada) anuiu ao esboço de partilha que busca igualar os quinhões da tia e das sobrinhas, concordando expressamente com a colação – No caso, o bem inteiro deve ser objeto de colação para fins de partilha, já que a doação de ascendente a descendente (na parte que ultrapassa a parte disponível) importa mero adiantamento de herança, a teor do artigo 544 do CC – Deve ser colacionada metade do imóvel doado pelo autor da herança à filha CECÍLIA (ora agravada), independentemente do ajuizamento de ação autônoma para declarar a nulidade da doação inoficiosa – Recurso provido.

ACÓRDÃO 

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Agravo de Instrumento nº 2023509-28.2020.8.26.0000, da Comarca de Campo Limpo Paulista, em que são agravantes WANDA MICELI DIAS DE SÁ, CAMILA DIAS DE SÁ (INVENTARIANTE), BEATRIZ DIAS DE SÁ e JOÃO JUSTO DIAS DE SÁ (ESPÓLIO), é agravado O JUÍZO.

ACORDAM, em sessão permanente e virtual da 1ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: Deram provimento ao recurso. V. U., de conformidade com o voto do relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Desembargadores RUI CASCALDI (Presidente sem voto), CHRISTINE SANTINI E CLAUDIO GODOY.

São Paulo, 31 de março de 2020.

FRANCISCO LOUREIRO

Relator

Assinatura Eletrônica

Agravo de Instrumento nº 2023509-28.2020.8.26.0000

Processo 1º Instância n.º 1002883-19.2018.8.26.0115

Comarca: CAMPO LIMPO PAULISTA

Juiz: GABRIELA DA CONCEIÇÃO RODRIGUES

Agvte: WANDA MICELI DIAS DE SÁ E OUTROS

Agvdo: CECÍLIA DIAS DE SÁ

VOTO Nº 35.384

INVENTÁRIO. Decisão que deixa de determinar a colação de metade do único imóvel doado pelo “de cujus” a uma de suas filhas. Desacerto. Possível colacionar metade do imóvel doado pelo autor da herança a uma de suas filhas, independentemente do ajuizamento de ação autônoma para reconhecer que se tratou de doação inoficiosa. Doação abrangeu todo o patrimônio do casal, que se resumia a um único bem imóvel. Inoficiosa a doação feita pelo “de cujus” e seu cônjuge supérstite. Não se cogita de doação universal, uma vez que os doadores reservaram para si o usufruto vitalício do prédio. Não é necessário que a nulidade da doação seja declarada em ação autônoma, pois a donatária (ora agravada) anuiu ao esboço de partilha que busca igualar os quinhões da tia e das sobrinhas, concordando expressamente com a colação. No caso, o bem inteiro deve ser objeto de colação para fins de partilha, já que a doação de ascendente a descendente (na parte que ultrapassa a parte disponível) importa mero adiantamento de herança, a teor do artigo 544 do CC. Deve ser colacionada metade do imóvel doado pelo autor da herança à filha CECÍLIA (ora agravada), independentemente do ajuizamento de ação autônoma para declarar a nulidade da doação inoficiosa. Recurso provido.

Cuida-se de Agravo de Instrumento, com pedido de efeito ativo, tirado de decisão (fls. 280/281 dos autos digitais de primeira instância; aclarada às fls. 293/294) que, nos autos do inventário dos bens deixados por JOÃO JUSTO DIAS DE SÁ, deixou de determinar a colação de metade do único imóvel doado pelo autor da herança a uma de suas filhas.

Fê-lo o decisum recorrido, na parte que interessa ao presente recurso, nos seguintes termos:

“Vistos.

Trata-se a presente ação de inventário dos bens deixados por João Justo dias de Sá, falecido em 14 de outubro de 2018, casado com Wanda Miceli Dias de Sá pelo regime de comunhão universal de bens, que teve dois filhos: Cecília Dias de Sá e Luiz Dias de Sá (falecido em 2005) casado com Salete Dias de Sá, que deixou duas filhas: Camila Dias de Sá e Beatriz Dias de Sá estas, portanto, netas do de cujus.

[…]

Quanto ao imóvel que foi doado na porção de 100% para uma das herdeiras, tendo sido alegado que não foi respeitado à legitima, outra decisão não é possível, senão de que também não cabe discussão nos presentes autos, pois não faz mais parte do monte mor.

Deverá a patrona intentar os meios próprios ou para anulação da doação ou considerando-se o consenso entre as partes deverá a herdeira Cecília, se assim entender, proceder a doação da cota parte das demais herdeiras, também fora destes autos de inventario, pois não se refere ao falecido. No mesmo sentido, caso realizada a anulação da doação com relação a cota parte da interditada é o juízo da interdição competente para apreciação da venda.

[…]”

Aduz a requerente, em apertada síntese, que o autor da herança doou em vida seu único imóvel à filha CECÍLIA DIAS DE SÁ, o que evidencia se tratar de doação inoficiosa.

Destaca que a doação não dispensou a colação.

Sustenta a necessidade de que seja colacionada metade do imóvel doado, sem necessidade de prévia anulação do contrato em ação autônoma, pois a própria donatária reconheceu a nulidade.

Em razão do exposto, e pelo que mais argumenta às fls. 01/10, pede, ao final, o provimento do recurso.

Ausente pedido de efeito suspensivo, foi determinado o processamento deste Agravo (fls. 27/29).

Contraminuta às fls. 33/35.

Ofertou parecer a douta Procuradoria Geral de Justiça, que opina pelo provimento (fls. 40/42).

Não se opuseram as partes à realização de julgamento virtual, nos termos da Resolução nº 772/2017 do Órgão Especial deste Tribunal, disponibilizada no DJe aos 09 de agosto de 2.017 e em vigor desde a data da publicação.

É o relatório.

1. Inicialmente, admito o recurso com fundamento no parágrafo único do art. 1.015 do Código de Processo Civil vigente, de acordo com o qual cabe Agravo de Instrumento contra decisões interlocutórias proferidas no processo de inventário.

2. No mérito, o recurso comporta provimento.

A questão devolvida ao conhecimento do Tribunal neste Agravo versa, em poucas palavras, sobre a possibilidade de colacionar metade do imóvel doado pelo autor da herança a uma de suas filhas, independentemente do ajuizamento de ação autônoma para reconhecer que se tratou de doação inoficiosa.

Preservado o entendimento da MM. Magistrada de Primeira Instância, as circunstâncias do caso concreto recomendam a colação de metade ideal do imóvel.

Explico.

Doaram o autor da herança JOÃO JUSTO DIAS DE SÁ e a viúva meeira WANDA MICELI DIAS DE SÁ (interdita) o imóvel objeto da matrícula nº 40.020 do 2º Oficial de Registro de Imóveis de Jundiaí. A doação, com reserva de usufruto, teve como donatária uma das duas filhas dos doadores: a agravada CECÍLIA DIAS DE SÁ.

Cumpre destacar que o casal também tinha um filho LUIZ DIAS DE SÁ (herdeiro pré-morto), o qual deixou viúva e duas filhas.

Compulsando, verifica-se que a doação abrangeu todo o patrimônio do casal, que se resumia a um único bem imóvel. Disso decorre que é inoficiosa a doação feita pelo “de cujus” e seu cônjuge supérstite.

3. Não se cogita de doação universal, uma vez que os doadores reversaram para si o usufruto vitalício do prédio.

Reza o artigo 549 do Código Civil que “Nula é a também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento”.

Veda a lei, por norma cogente, que o doador que tenha herdeiros necessários disponha a título gratuito de quinhão maior do que aquele que poderia testar. Visa o preceito a preservar a legítima dos herdeiros necessários, evitando que por negócio gratuito inter vivos se obtenha o que proíbe a lei em negócio jurídico causa mortis. Em termos diversos, pode-se doar o quanto se pode testar.

As referidas características apresentadas pelas doações no caso em comento geram consequências distintas: a parcela das doações que invadiu a legítima deve ser declarada nula, nos termos do art. 549 do Código Civil. A consequente redução das liberalidades deve observar o disposto nos parágrafos do art. 2.007 do aludido diploma, principalmente o fato de que a redução se dará em substância (em espécie), com a restituição dos próprios bens doados que excederam a metade disponível da herança.

Ou seja, em relação às doações inoficiosas, como são consideradas nulas desde o momento em que foram celebradas em relação à parte que invadiu a legítima dos herdeiros necessários, os bens devem retornar em espécie ao monte.

Lembro que o momento adequado para verificar se a doação violou ou não a legítima é o da liberalidade, e não o da abertura da sucessão, tanto que se encontra pacificado o entendimento de que a ação para reconhecimento de doação inoficiosa pode ser ajuizada não só contra o donatário, mas também contra o doador, se este estiver vivo (cf. Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, Contratos Nominados II, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2005, p. 129).

Na lição de Pontes de Miranda, “a ação de doação ofensiva da legitima é da mesma natureza que a ação de redução das disposições testamentárias (artigos 1726/8), apenas nasce ao ser feita a doação de modo que, de regra, nasce antes da abertura da sucessão. A nulidade pode ser decretada antes da morte do doador. Qualquer pessoa que interesse tenha pode suscitar a decretação da nulidade, mas esse interesse, de regra, só o tem o que seria herdeiro necessário ao tempo da doação” (Tratado de Direito Privado, vol. 46, p. 251; no mesmo sentido, Clóvis Bevilácqua, Código Civil Comentado, vol. IV, p. 342; Serpa Lopes, Curso de Direito Civil, vol III, p. 426; Hermenegildo de Barros, Manual Lacerda, vol. XVIII, n 35, pp. 63/64; Agostinho Alvim, Da Doação, RT, p. 181).

E, se a doação foi realmente inoficiosa, deve ser declarada nula, mas apenas na parte que invadiu a legítima.

Não é necessário que a nulidade da doação seja declarada em ação autônoma, pois a donatária (ora agravada) anuiu ao esboço de partilha que busca igualar os quinhões da tia e das sobrinhas, concordando expressamente com a almejada colação (cfr. fls. 273/274 na origem).

4. No caso concreto, o bem inteiro deve ser objeto de colação para fins de partilha. Isso porque a doação de ascendente a descendente na parte que ultrapassar a parte disponível importa em mero adiantamento de herança, a teor do artigo 544 do CC.

A conclusão de que a doação deve ser encarada como adiantamento de herança, no caso em tela, decorre da ausência de dispensa de colação na escritura pública do ato de liberalidade (cfr. fls. 61/63 na origem).

Sabido que a doação a descendentes tem natureza provisória, pois o valor dos bens será trazido à colação por ocasião da morte do doador.

A regra é excepcionada pela previsão dos artigos 2.005 e 2.006 do Código Civil, que tratam da doação com dispensa da colação. Ocorre que, no presente caso, o autor da herança e sua esposa não realizaram aludida dispensa, prevalecendo a regra do art. 544 do CC.

Dessa forma, advindo a morte de um dos doadores, deve ser colacionado o imóvel ao inventário, a fim de imputar o valor do bem ao quinhão que caberá a cada herdeira por ocasião da partilha.

5. Finalmente, observo que as doações aludidas nos acordos de fls. 51/55 e fls. 135/152 dos autos principais aparentam ter uma só motivação: evitar que venha a novamente à colação a outra metade ideal do imóvel quando do falecimento da viúva.

A doação da tia CECÍLIA DIAS DE SÁ para as duas sobrinhas, por ato inter vivos, tem o condão de igualar os quinhões da tia e das sobrinhas (que receberão um quarto do imóvel cada), o que evitará nova colação de metade do bem após o falecimento da WANDA MICELI DIAS DE SÁ (interdita).

Aliás, a própria agravada concorda com o provimento do recurso ao dizer em contraminuta que “ratifica integralmente as alegações formuladas pela agravante” (fl. 35).

6. Em suma, deve ser colacionada metade do imóvel doado pelo autor da herança à filha CECÍLIA DIAS DE SÁ, independentemente do ajuizamento de ação autônoma para declarar a nulidade da doação inoficiosa.

Dou provimento ao recurso.

FRANCISCO LOUREIRO

Relator – – /

Dados do processo:

TJSP – Agravo de Instrumento nº 2023509-28.2020.8.26.0000 – Campo Limpo Paulista – 1ª Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Francisco Loureiro – DJ 02.04.2020

Fonte: INR Publicações

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias

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