1VRP/SP: Registro de Imóveis. Retificação de área x Usucapião. Córrego Ipiranga. Álveo abandonado.


  
 

Processo 1043551-72.2021.8.26.0100

Retificação de Registro de Imóvel – Registro de Imóveis – Arcos Dourados Comércio de Alimentos LTDA – PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO – Ante o exposto, e por tudo mais que consta nos autos, JULGO IMPROCEDENTE a ação, extinguindo o processo, com resolução do mérito, nos termos do artigo 487, inciso I, do Código de Processo Civil. A parte autora arcará com as custas e despesas processuais. Ciência ao Ministério Público. Com o trânsito em julgado, arquivem-se os autos, com as cautelas de praxe. P.I.C. – ADV: THAIS XERFAN MELHEM MORGADO (OAB 208292/ SP), ZULMIRA MONTEIRO DE ANDRADE LUZ (OAB 62145/SP)

Íntegra da decisão:

SENTENÇA

Processo Digital nº: 1043551-72.2021.8.26.0100

Classe – Assunto Retificação de Registro de Imóvel – Registro de Imóveis

Requerente: Arcos Dourados Comércio de Alimentos LTDA

Requerido: 14º Oficial de Registro de Imoveis da Capital

Juíza de Direito: Dra. Renata Pinto Lima Zanetta

Vistos.

ARCOS DOURADOS COMÉRCIO DE ALIMENTOS LTDA. ajuizou a presente ação de retificação de área e de registro do imóvel situado à Avenida Professor Abraão de Morais, nº 1180/1180-A, Saúde, atualmente objeto das matrículas nºs 5.899, nº 133.728 e nº 133.729, do 14º Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo.

Alega, em síntese, que é proprietária dos imóveis, os quais já foram objeto de ação de retificação judicial anterior, para apuração de remanescente, nos autos do Processo nº 827/93, e do Pedido de Providências nº 0109626-14.2001.8.26.0100, ambos desta Vara. Sustenta que as decisões provenientes desses procedimentos não produzem coisa julgada material. Menciona o surgimento de fato novo consistente na inexistência do Córrego Ipiranga, que impediu o acolhimento dos pleitos anteriores. Afirma que há décadas vem buscando a unificação das três matrículas, a fim de regularizar a transferência da propriedade ao terceiro adquirente. Refere que nos autos do Pedido de Providências, foi inicialmente deferida a unificação das matrículas nºs 5.899, 133.728 e 133.729, resultando na matrícula nº 148.656, com posterior desdobro nas matrículas nºs 158.602 e 158.603. Todavia, em sede recursal, a decisão acabou reformada, determinando-se o cancelamento da fusão das matrículas, situação que prejudica a autora e os adquirentes do imóvel. Aduz que os trabalhos técnicos elaborados nos procedimentos anteriores analisaram mapas hidrográficos e imagens aerofotogramétricos muito antigos, que não representam a realidade. Assevera que não existe qualquer curso d´água, ainda que seco e abandonado sob os imóveis, entendendo ser possível a unificação das matrículas no formato da matrícula cancelada nº 148.656 e de seus desdobros. Deste modo, requer a procedência “do pedido da presente Ação de Retificação de Área e de Registro do Imóvel das matrículas nº 158.602 e 158.603 (manutenção da matrícula nº 148.656 e de seus desdobros (matrículas nº 158.602 e nº 158.603)” (fls. 01/13). Com a inicial, vieram documentos (fls. 14/143).

O Oficial Registrador prestou informações (fls. 144/1074, 1099 e 1294).

A Municipalidade de São Paulo apresentou impugnação, insurgindo-se contra o pedido de retificação, salientando que a área em questão foi objeto da ação de retificação de área para apuração de remanescente, nos autos nº 827/93, na qual a Municipalidade impugnou o pedido, apontando interferência com áreas de domínio municipal (i.e., área desapropriada para abertura da Avenida Professor Abraão de Morais e com o antigo leito do Córrego Ipiranga). Relata que o Perito Judicial definiu o eixo do antigo leito do Córrego Ipiranga, com base em plantas oficiais, e após inúmeras impugnações, essa área pública foi excluída dos imóveis retificandos, assim como a faixa de terreno da Avenida Professor Abraão de Morais, tudo com a concordância da requerente. Ressalta que as decisões provenientes dessas demandas transitaram em julgado.

Acrescenta que a discussão do domínio do antigo leito do Córrego Ipiranga deve se dar nas vias ordinárias. Pugna pelo indeferimento do pedido (fls. 1082/1091).

Sobreveio manifestação da parte autora (fls. 1095/1097). Laudo pericial acostado aos autos (fls. 1166/1260), seguido de manifestação da parte autora (fls. 1267) e da Municipalidade (fls. 1268/1277).

O Ministério Público ofertou parecer, opinando pela improcedência da retificação (fls. 1102/1105 e 1298/1299).

O julgamento foi convertido em diligência (fls. 1318).

A Municipalidade apresentou novos documentos (fls. 1321/1327).

A parte autora pronunciou-se (fls. 1331/1344).

Esclarecimentos periciais (fls. 1354/1366), seguidos de manifestação das partes (fls. 1370/1373; 1374/1380).

O Ministério Público reiterou seu parecer, pela improcedência do pedido (fls. 1386/1387).

Vieram-me os autos conclusos.

É o relatório.

FUNDAMENTO E DECIDO.

Cuida-se a ação de retificação contenciosa – impugnada pela Municipalidade – de área e de registro de imóvel, visando, ao final, garantir a adequação do registro imobiliário à situação de fato, com fulcro no princípio da especialidade objetiva. A parte autora pretende rediscutir a questão do domínio do antigo leito do Córrego do Ipiranga e revigorar as matrículas nºs 148.656, 158.602 e 158.603, do 14º CRI, que foram canceladas por força de decisão advinda da Egrégia Corregedoria Geral da Justiça.

O procedimento retificatório permite a correção de erros e imprecisões tabulares, mas não pode servir como meio para aumentar os limites e confrontações de imóvel. Sobre o tema, a jurisprudência entende que a ação de retificação de registro não pode ser manejada como meio de aquisição de propriedade imóvel ou como substitutiva da ação de usucapião, ensejando tal tipo de pretensão a propositura de ação própria.

O artigo 212 da Lei de Registros Públicos, com redação dada pela Lei nº 10.931/04, dispõe: “Se o registro ou a averbação for omissa, imprecisa ou não exprimir a verdade, a retificação será feita pelo Oficial do Registro de Imóveis competente, a requerimento do interessado, por meio do procedimento administrativo previsto no art. 213, facultado ao interessado requerer a retificação por meio de procedimento judicial. Parágrafo único. A opção pelo procedimento administrativo previsto no art. 213 não exclui a prestação jurisdicional, a requerimento da parte prejudicada.”

Cabível, no caso, o julgamento imediato, sob pena de vulneração indevida dos princípios da efetividade do processo civil e da duração razoável da prestação jurisdicional. É possível superar as questões prejudiciais apresentadas pelo impugnante para avançar sobre o mérito que constitui a análise sobre a possibilidade da retificação pretendida.

Consta dos autos que a proprietária dos imóveis originalmente matriculados sob nºs 5.899 e 5.900, do 14º CRI, promoveu ação de retificação de registro, na modalidade de apuração de área remanescente, nos autos do Processo nº 827/93, nesta Vara, que foi julgada procedente, para determinar a averbação junto à matrícula nº 5.899, do 14º CRI, consignando que o imóvel passou a ter como área remanescente – com a exclusão da área ocupada pelo atual leito da Avenida Professor Abraão de Morais – a descrição contida no laudo pericial indicado, bem como para determinar a abertura de duas matrículas com descrição dos memoriais descritivos indicados, correspondente às áreas remanescentes da matrícula nº 5.900, excluindo-se o antigo leito do Córrego Ipiranga e a área ocupada pelo atual leito da Avenida Professor Abraão de Morais, encerrando-se aquela (fls. 672/675, 708/709). Assim, foram abertas as matrículas nºs 133.728 e 133.729, do 14º CRI, com a exclusão do leito do Córrego Ipiranga (fls. 716).

Consta, ainda, que, a pedido da autora, o 14º Oficial de Registro de Imóveis da Capital procedeu à unificação dos objetos das matrículas nºs 5.899, 133.728 e 133.729, que passaram a formar um só todo na matrícula nº 148.656 (fls. 31/32, 37, 44, 48/50, 721). Então, a proprietária pleiteou o desdobro do todo resultante da unificação em dois terrenos, e, entendendo o Oficial pela necessidade de apresentação de planta específica, aprovada pela Prefeitura Municipal, e também pela existência do Córrego do Ipiranga que corta a área, submeteu o expediente ao MMº Juiz Corregedor Permanente, instaurando-se o procedimento administrativo nº 000.01.109626-8, nesta Vara (fls. 814/818).

No bojo do referido Pedido de Providências, a Municipalidade apresentou impugnação, sustentando que a existência do leito do Córrego, área de domínio municipal, impediria a fusão das matrículas. Adveio a r. sentença, destacando que as primitivas matrículas 5.899 e 5.900, esta última desdobrada nas matrículas 133.728 (5.007,31 m²) e 133.729 (677,85 m²), foram unificadas na matrícula 148.656, sem se levar em conta que não compunham áreas contíguas, vez que cortadas pelo Córrego Ipiranga, concluindo pela natureza privada do córrego em questão, e, consequentemente, pela ausência de irregularidade ou vício em relação à matrícula nº 148.656, mantendo-a, para a produção de seus regulares efeitos (fls. 795/801).

O Oficial Registrador peticionou naquele expediente, comunicando que procedeu à averbação nº 2 na matrícula 148.656, para incluir a área de 113,81 m² proveniente do antigo Córrego Ipiranga (fls. 803). Também comunicou o encerramento da matrícula 148.656 e o descerramento de duas novas, uma para cada lote resultante do desdobro, sob os nºs. 158.602 e 158.603 (fls. 812).

No entanto, contra a sentença exarada no Pedido de Providências, a Municipalidade interpôs recurso administrativo à Egrégia Corregedoria Geral da Justiça, ao qual foi dado provimento, para declarar a nulidade de pleno direito da fusão realizada pelo Oficial Registrador, e determinar o cancelamento da matrícula 148.656 e das averbações noticiadoras da fusão constantes das matrículas 5.899, 133.728 e 133.729 (fls. 987/994).

Por intermédio da presente ação, a autora pretende rediscutir a questão do domínio do antigo leito do Córrego do Ipiranga e revigorar as matrículas nºs 148.656, 158.602 e 158.603, do 14º CRI, que foram canceladas nos termos da sobredita decisão. Alega o surgimento de fato novo, consistente na inexistência do Córrego Ipiranga.

De proêmio, relevante observar o dispositivo que fixa a competência funcional da 1ª Vara de Registros Públicos para processar e julgar as ações judiciais de retificação de natureza voluntária ou contenciosa, ainda que impugnada pela Municipalidade ou por qualquer interessado, sendo esta a unidade jurisdicional ordinária competente para o julgamento do pedido de retificação.

A retificação judicial não se confunde com a retificação administrativa.

No âmbito extrajudicial, a impugnação fundada provoca a atuação administrativa do Juiz Corregedor Permanente, sendo admitido o direcionamento à via jurisdicional nos casos indicados pelo artigo 213 da Lei nº 6.015/1973.

Sobre a eficácia da impugnação fundada merece destaque o comentário de Narciso Orlandi Neto, com a abordagem do encerramento da via administrativa, sem julgamento, apenas em caso de dúvida relevante sobre a viabilidade e inofensividade da retificação (Retificação do Registro de Imóveis, Juarez de Oliveira, págs. 161 e seg.).

Portanto, a remessa dos autos às vias ordinárias é solução procedimental adequada na retificação administrativa (§ 6º, do art.213, da Lei nº 6.015/73), não cabendo ao Juiz de Direito declinar da sua função jurisdicional sem enfrentar a questão controvertida submetida ao crivo do contraditório.

O acolhimento da retificação e a superação das imprecisões são fatores que autorizam o acréscimo de área, desde que haja respeito ao título dominial, sem ofensa aos direitos dos vizinhos (intra muros).

Para a correta compreensão da linha tênue que distingue a retificação da usucapião, vale lembrar a lição de Cristiane Perini e Willian Garcia de Souza, com as seguintes distinções: “Oportuno é fazer um paralelo entre usucapião e retificação, para demonstrar suas diferenças, é o que fica demonstrado nas definições elencadas por Kollet: ‘O usucapião decorre de um acréscimo de área oriunda de sobras, apreciações e outras formas de integração de área ao imóvel respectivo. A retificação, por sua vez, decorre de descrições imprecisas, inverídicas ou omissas. O norte a ser seguido, a nosso sentir, deve estar balizado na diferenciação ontológica dos institutos. Acréscimo de área alheia ao imóvel originalmente descrito, agregada anterior ou posteriormente à descrição que se pretende alterar: usucapião. Acréscimo de área originalmente integrada ao imóvel cuja descrição foi imprecisa ou omissa: retificação'” (In: Retificação Imobiliária das Inexatidões Registrais. Blumenau: Nova Letra, 2009. p. 126). (g.n.)

No caso em exame, como relatado, a proprietária moveu ação de retificação para apuração de área remanescente, visando a retificação da descrição do imóvel objeto da matrícula 5.900, para apuração da área remanescente, após os desfalques ocorridos.

Após a elaboração de perícia judicial, foi proferida sentença de procedência, que resultou na abertura das matrículas 133.728 e 133.729 (fls. 716). Posteriormente, o 14º CRI, a pedido da autora, efetuou a unificação dos objetos das matrículas 5.899, 133.728 e 133.729, que passaram formar um só todo na matrícula 148.656, com o acréscimo da área de 113,81 m², correspondente ao antigo leito do Córrego Ipiranga (fls. 803).

Ocorre, contudo, que a E. Corregedoria Geral da Justiça decidiu, no âmbito do Pedido de Providências nº 000.01.109626-8, que essa fusão de matrículas, que resultaram na matrícula 148.656, foi realizada com mácula de nulidade de pleno direito, por ausência de contiguidade tabular, vez que os imóveis, de duas das matrículas abertas por mandado judicial, eram separados pelo álveo do antigo Córrego Ipiranga, expressamente excluído das áreas remanescentes apuradas em Juízo.

Nos termos do parecer elaborado pelo MM. Juiz Auxiliar da Corregedoria, Vicente de Abreu Amadei, aprovado pelo Excelentíssimo Corregedor Geral da Justiça, constou: “Então, abertas, por força de mandado judicial, as matrículas nºs 133.728 e 133.729 (fls. 53/57), que, obviamente, não comportavam fusão, uma vez que, entre os respectivos imóveis encontra-se o antigo álveo do Córrego Ipiranga que ficou, repito, expressamente excluído das descrições das novas unidades imobiliárias. (…) O que importa é, de um lado, que, pelas descrições tabulares dos imóveis das matrículas nºs 133.728 e 133.729 não há contiguidade dos imóveis, pois separados pelo trecho correspondente ao antigo leito daquele curso d’água, que ficou excluído das áreas remanescentes apuradas judicialmente; e, de outro, que esta sede administrativa não se presta à atribuição de domínio desse trecho excluído do fólio real retificado” (fls. 990/991, g.n.). “

Pois bem.

Do estudo detido do conjunto probatório reunido nos presentes autos, na consideração de que as matrículas 133.728 e 133.729 foram abertas por força de mandado judicial, em cumprimento a decisão definitiva, após regular tramitação de ação para apuração de remanescente, em que foram corretamente apuradas as áreas por meio de laudo pericial idôneo, submetido a amplo contraditório das partes e instrução exauriente, concluo que não restou comprovada a alegação de surgimento de fato novo – consistente na inexistência do Córrego Ipiranga – conforme foi aventado pela autora na exordial para justificar a propositura desta segunda ação de retificação de registro.

Nesta senda, as provas dos autos confirmam que, com base nas plantas oficiais da Municipalidade disponíveis à época, o antigo leito do Córrego Ipiranga cortava realmente uma parte do imóvel retificando. Desta forma, o acervo probatório angariado não revela, com a suficiente certeza, o desacerto da conclusão pericial anterior e, consequentemente, não evidencia a existência de erro no registro tabular que justifique a retificação das matrículas, tal como pretendido.

Na hipótese, a retificação de registro objetivando o acréscimo da área do antigo leito do Córrego Ipiranga, que não integra as matrículas retificandas por expressa decisão proferida na ação de retificação anterior, a rigor, caracteriza aquisição de área que extrapola os limites do título, não podendo, pois, ser admitida, em sede de ação de retificação de registro.

Forte no princípio da segurança jurídica, impõe-se o reconhecimento da preclusão lógica das decisões anteriores provenientes da ação de apuração de remanescente e, especialmente da decisão da E. Corregedoria Geral da Justiça que determinou o retorno dos fatos à situação prévia, significando que não se mostra possível o acolhimento do pedido para revigorar as matrículas 148.656, 158.602 e 158.603, do 14º CRI, que foram canceladas por decisão definitiva.

Segundo leciona Cândido Rangel Dinamarco: “A segurança nas situações jurídicas, proporcionada tanto pela coisa julgada material quanto pela formal, é importantíssimo fator de pacificação e tranquilidade, sabendo-se que a insegurança é um estado perverso prejudicial aos negócios, ao crédito e às relações familiares e, por isso, à felicidade pessoal dos indivíduos os grupos. A imutabilidade da sentença e de seus efeitos é um dos mais importantes pesos responsáveis pelo equilíbrio entre exigências opostas, inerente a todo sistema processual” (In: Instituições de Direito Processual Civil III, São Paulo: Malheiros. 2017. Página 356).

Sob a perspectiva do antigo leito do Córrego Ipiranga, denota-se que no âmbito da pretérita ação de retificação para apuração de remanescente, foram juntadas plantas oficiais e realizado estudo técnico, tendo o então Perito Judicial apurado que “o antigo leito do Córrego Ipiranga de acordo com o levantamento aerofotométrico de 1.952 cortava o imóvel retificando, mas o domínio definido na matrícula 5.900 abrange, certamente, o seu leito e áreas adjacentes” (fls. 550), concluindo que “o antigo córrego do Ipiranga corta realmente o imóvel da matrícula retificanda, inclusive a área objeto dos autos de desapropriação indireta (processo nº 27/87 da 2ª Vara da Fazenda Municipal)” (fls. 479), sendo excluída tal área do imóvel retificandos no Processo nº 827/93.

Para a apuração do antigo Córrego, o Perito anterior utilizou-se do levantamento aerogramétrico de 1.952 em seu trabalho, definindo o antigo leito do córrego e a projeção do seu leito (fls. 478/480). Note-se que, naquele processo, o expert, instado pelas partes, justificou a Metodologia aplicada: “A adoção do levantamento aerogramétrico VASP-CRUZEIRO de 1.952 foi devidamente explicada nos esclarecimentos de fl. 258/283 e tem motivo técnico: o levantamento anterior de 1.930 (planta SARA – fl. 239) não define com perfeição e nem representa o primitivo traçado do Córrego Ipiranga. Ressalte-se, contudo, que o traçado do Córrego Ipiranga definido no levantamento de 1.952 é semelhante ao da planta DESAP e que a bifurcação do córrego retratado no referido levantamento não caracteriza o seu antigo leito e nem existia na época da sua canalização (conforme planta DESAP)” (fls. 555).

O Vistor ainda salientou que o leito do córrego definido na planta DESAP é certamente abrangido pelos limites tabulares da matrícula retificanda e que a perícia considerou a situação tabular. Mencionou que, embora a Municipalidade não tenha definido na impugnação a origem da propriedade sobre a área em questão, tudo indica que se funda no artigo 27 do Código de Águas, que dispõe sobre o álveo abandonado, proveniente de mudança da corrente por utilidade pública, o qual passa a pertencer ao expropriante (fls. 556).

Naquele feito, ante a concordância expressa das partes com os esclarecimentos periciais (fls. 664), sobreveio a r. sentença reproduzida às fls. 669/675, assentando: “Face a exclusão do antigo leito do Córrego Ipiranga, que cortava o imóvel de M. 5.900, a área desta matrícula ficou dividida em duas porções. Já a área da M. 5.899 sofreu parcial desfalque fático pelo avanço sobre seus limites do leito da Av. Prof. Abraão de Morais. De assinalar que as partes – requerente e Municipalidade – expressaram concordância com o trabalho pericial complementar, mais exatamente com os memoriais descritivos de fls. 344/358.

Assim, feitas as necessárias averbações acerca do leito do antigo Córrego Ipiranga e das faixas de terreno ocupadas pela Av. Prof. Abraão de Morais, é de ser retificada a descrição do imóvel objeto da M. 5.899, para ajustá-la aquela informada pelo perito a fls. 357/358, da ordem de 2.093,39 m², bem assim para, encerrada a M. 5.900, abrirem-se duas outras para abrigarem as respectivas glebas delas resultantes, com áreas respectivas de 5.007,31 m² (fls. 350/351) e 677,85 m² (fls. 352/353)” (fls. 669/670). (g.n.)

Destarte, urge dos autos do Processo nº 827/93, que as partes (requerente/então proprietária e Municipalidade) expressaram concordância com o trabalho pericial complementar, mais exatamente com a descrição do antigo leito do antigo Córrego do Ipiranga que, por caracterizar álveo abandonado, foi excluído da área do imóvel retificando, que ficou dividida em duas porções.

Por outro lado, de acordo com o laudo pericial elaborado nos presentes autos, restou bem demonstrada a ocorrência de diversas ações de desapropriação no local pelo Município de São Paulo, visando a realização de obras para abertura da atual Avenida Professor Abraão de Morais e para a canalização do Córrego do Ipiranga no eixo central da avenida.

A propósito, o i. Perito Judicial mencionou que em pesquisa sobre o Riacho Ipiranga ou Córrego do Ipiranga, constatou que algumas obras de canalização do Córrego Ipiranga se deram em trechos isolados, pontuando que “o trecho do córrego que seguia no imóvel retificando, mostrou-se “natural” e não canalizado, ou seja, salvo ledo engano, não houve obras de canalização do córrego no imóvel usucapiendo” (fls. 1361).

No que tange à conclusão do atual Perito de que o Córrego Ipiranga já não existia mais nos imóveis de 1.974, e que inclusive no dia da vistoria não foi encontrado nenhum curso d´água no local, os elementos evidenciam que, quando se iniciou o projeto de retificação do curso d´água do córrego para o canal central no eixo da Avenida Professor Abraão de Morais, o córrego sofreu diversas mudanças no desenho do seu curso.

Outrossim, cumpre aclarar que a questão de fundo não é a canalização do córrego dentro do imóvel, mas sim a existência pregressa de um trecho do Córrego Ipiranga dentro do imóvel, que foi desviado por obra do Município com vistas a retificar o curso do Córrego e canalizar no eixo central da avenida, surgindo, então, o álveo abandonado no imóvel retificando.

Apesar das respeitáveis críticas tecidas pelo atual Perito quanto à metodologia adotada pelo anterior Perito que realizou a perícia no Processo nº 827/93 (fls. 1190) e às plantas da Municipalidade como um todo, inclusive opinando “que o traçado adotado deveria ter sido outro” (fls. 1362), reconheceu que tanto no levantamento aerofotométrico de 1.952 (utilizado na metodologia adotada pela primeira perícia), como na “na planta do GEGRAN, de 1973/74, o córrego foi desenhado, dentro do imóvel retificando, de forma incompleta” e que o “desenho” do Córrego na referida planta “somente se deu numa pequena área do imóvel retificando” (fls. 1205) justamente no trecho do álveo abandonado – o que mostra que a perícia anterior se ateve sim a uma planta oficial.

Portanto, o laudo pericial atesta que um curso d´água “natural” do antigo leito do Córrego Ipiranga realmente cortava o imóvel retificando. E sendo assim, forçoso é de convir que a parte autora não se desincumbiu do ônus que lhe tocava de que comprovar o alegado surgimento de fato novo consistente na inexistência do Córrego Ipiranga no local.

No mais, com relação ao seguinte trecho do laudo pericial, in verbis:

“Daí a conclusão sobre estas constatações, ou seja, o traçado antigo do Córrego Ipiranga, já, desde 1974, não aparece mais na planta. Os estudos apresentados provam tal condição ficando evidente que aquele pequeno trecho do córrego, se deu, no mínimo, por engano. Por fim, este signatário também teve um claro entendimento de que o traçado antigo do córrego, se deu sobre o imóvel retificando, somente até meados dos anos de 1960, quando se inicia a retificação do córrego Ipiranga, naquela região de entorno do imóvel retificando. Que, portanto, dadas as provas apresentadas, o córrego Ipiranga não mais “transitava” no local a partir de 1974. Lembrando que o título que deu origem as Matrículas nº 133.178 e nº 133.729, foi registrado o ano de 1976, ou seja, dois anos além da data da planta, consolidando, ainda mais, a condição de inexistência do córrego no imóvel e no entorno. (…)” (fls. 1215), relevante salientar que “o córrego Ipiranga não mais “transitava” no local a partir de 1974” justamente porque, em virtude das diversas mudanças no desenho do seu curso que se fez por utilidade pública (retificação do curso do leito para a canalização no canal central no eixo da Avenida Professor Abraão de Morais), surgiu o álveo abandonado no imóvel retificando.

O Código de Águas define o álveo como “a superfície que as águas cobrem sem transbordar para o solo natural e ordinariamente enxuto” (art. 9º). É, em resumo, o leito do rio, que será público de uso comum do povo, ou dominical, conforme a propriedade das respectivas águas; e será particular, no caso de águas comuns ou águas particulares.

No tocante à propriedade do álveo abandonado, o artigo 10, e parágrafos, da mesma Lei, preconiza que o álveo abandonado de rio público ou particular pertence aos proprietários ribeirinhos das duas margens, nas proporções das testadas, até a linha mediana daquele.

O artigo 1.252, do Código Civil, dispõe: “O álveo abandonado de corrente pertence aos proprietários ribeirinhos das duas margens, sem que tenham indenização os donos dos terrenos por onde as águas abrirem novo curso, entendendo-se que os prédios marginais se estendem até o meio do álveo”.

Observe-se que o aludido dispositivo não distingue entre a corrente pública e a particular. Já o artigo 26 do Código de Águas preceitua que o álveo abandonado da corrente pública pertence aos proprietários ribeirinhos das duas margens.

O artigo 27, do Código de Águas, por seu turno, estabelece que “se a mudança da corrente se fez por utilidade pública, o prédio ocupado pelo novo álveo deve ser indenizado, e o álveo abandonado passa a pertencer ao expropriante para que se compense da despesa feita”.

Logo, na hipótese de mudança da corrente pública por obra de utilidade pública (no caso, a mudança artificial do leito do córrego se deu para viabilizar a canalização do Córrego Ipiranga no eixo central da Avenida Professor Abraão de Morais), o leito velho, ou álveo abandonado (no trecho do imóvel retificando, que comprovadamente o cortava), pertence ao ente público que, autorizado por lei, abriu para o rio um leito novo. E nesta situação de desvio artificial do leito, a acessão independe de prévio pagamento de indenização.

A respeito do tema, confira-se a ementa de precedente julgado pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça, em caso semelhante:

“Águas. Código (Decreto nº 24.643/34). Rio. Mudança da corrente (álveo abandonado). Indenização prévia (desnecessidade, no caso). Propriedade (pública).

1. De uso comum do povo, o rio é bem público (Cód. Civil, art. 66, I).

2. No caso de mudança da corrente pública pela força das águas ou da natureza, o álveo abandonado é regido pelo disposto no art. 26 do Cód. de Águas.

3. Mas, no caso de mudança da corrente pública por obra do homem, o leito velho, ou o álveo abandonado pertence ao órgão público (atribui-se “a propriedade do leito velho a entidade que, autorizada por lei, abriu para o rio um leito novo”). Cód. de Águas, art. 27.

4. Em tal caso de desvio artificial do leito, a acessão independe do prévio pagamento de eventuais indenizações. Conforme o acórdão estadual, “Não é premissa dessa aquisição que o poder público indenize previamente o proprietário do novo álveo”.

5. Recurso especial pela alínea a (alegação de ofensa aos arts. 26 e 27), de que a 3ª Turma não conheceu. (REsp n. 20.762/SP, relator Ministro Nilson Naves, Terceira Turma, julgado em 15/2/2000, DJ de 7/8/2000, p. 103.) (g.n.)

Desta feita, os elementos coligidos ao feito não comprovam, com a suficiente certeza, o desacerto do trabalho pericial complementar anterior, mais exatamente quanto à exclusão do antigo leito do antigo Córrego Ipiranga da área do imóvel retificando, e, por conseguinte, não evidenciam a existência de erro no registro tabular que justifique a retificação das matrículas, tal como pretendido.

Ademais, a retificação de registro visando o acréscimo da área do antigo leito do Córrego Ipiranga, que atualmente não integra as matrículas retificandas por expressa decisão definitiva proveniente de processo anterior, a bem da verdade, consubstancia aquisição de área que extrapola os limites do título, não podendo, pois, ser admitida, em sede de retificação de registro.

Nesse mesmo sentido, não destoa a jurisprudência deste Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo:

Processual. Retificação de registro imobiliário. Litigiosidade a partir de impugnação do Município de São Paulo. Contraditório amplo desenvolvido nos autos do procedimento originário, com instrução exauriente. Possibilidade de solução da questão discutida desde logo. Ausência de razão plausível para a desconsideração dos atos praticados e remessa dos interessados “às vias ordinárias”. Instrumentalidade das formas. Apelação da Municipalidade desprovida nesse particular. Retificação de registro. Via de circulação implantada em desacordo com o projeto do loteamento. Área originariamente destinada a tal fim que não perdeu todavia, a despeito disso, a vinculação ao domínio público. Impossibilidade de apropriação privada. Retificação que encobre, nessa parte, tentativa disfarçada de usucapião de área pública. Descabimento. Apelação da Municipalidade provida parcialmente, com exclusão da parcela correspondente. (TJSP; Apelação Cível 0138132-33.2006.8.26.0000; Relator (a): Fabio Tabosa; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Privado; SÃO PAULO-REG PUBL – 1. VARA REG PUBL; Data do Julgamento: 13/12/2011; Data de Registro: 14/12/2011) (g.n.)

Deste modo, a improcedência da ação é a medida que se impõe.

Ante o exposto, e por tudo mais que consta nos autos, JULGO IMPROCEDENTE a ação, extinguindo o processo, com resolução do mérito, nos termos do artigo 487, inciso I, do Código de Processo Civil.

A parte autora arcará com as custas e despesas processuais.

Ciência ao Ministério Público.

Com o trânsito em julgado, arquivem-se os autos, com as cautelas de praxe.

P.I.C.

São Paulo, 15 de maio de 2023.

Renata Pinto Lima Zanetta

Juíza de Direito. (DJe de 17.05.2023 – SP)

Fonte: Diário da Justiça Eletrônico.

Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias.

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